“Os registos sobre empreendedorismo estão cheios de exemplos daqueles que deveriam ser bem-sucedidos, mas não foram; de outros tantos que não deveriam encontrar o sucesso, mas que o atingiram; dos que quase caíram e pereceram, mas sobreviveram e levantaram voo; e dos que pareciam estar a voar bem alto e, repentinamente, perdem altitude e se despenham”. Uma reformulação do que realmente significa empreender, em Worthless, Impossible and Stupid: How Contrarians Entrepreneurs Create and Capture Extraordinary Value
POR HELENA OLIVEIRA

Não é só em terras lusas que o empreendedorismo está na ordem do dia. O fenómeno – que é quase tão velho quanto a própria humanidade – está em grande forma e multiplicam-se as incubadoras, os concursos de ideias, os cursos nas universidades, os livros e os artigos sobre aquela que parece ser a nova pedra filosofal, como escrevia o Economist, dos dias modernos: um “coisa” misteriosa que, supostamente, esconde o segredo para estimular o crescimento e a criação de emprego. A nível político, os países do G20 reúnem-se numa cimeira anual para o discutir, mais de 130 países (Portugal incluído) celebram a “semana do empreendedorismo”, nos Estados Unidos dezenas de milhares de pequenos estudantes participam no denominado “Dia da Limonada” e assim se vai aprendendo e empreendendo como se de uma nova corrida ao ouro se tratasse.

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Todavia e apesar de serem muitos os gurus da gestão que se viraram para este novo filão, publicando guias do que fazer e do que não fazer, em conjunto com os decisores políticos que arranjam forma de incluir o conceito nos seus discursos e programas, a verdade é que a definição de “empreendedorismo” não é linear, como também não são as ideias que dele se têm. Se uns assumem que empreendedorismo significa novas tecnologias, tenta-se criar novos Silicon Valleys em massa; se outros presumem que o termo se aplica a pequenos negócios, o enfoque recai sobre o estímulo de start-ups. Por outro lado, vários mitos foram criados em torno das características que definem um empreendedor, tal como o facto de serem jovens, de desejarem mudar o mundo, de serem profundamente inovadores, entre outras “obrigatoriedades” que tais.

No meio da colecção de livros existentes sobre a temática, foi publicada uma obra que tenta contrariar algumas destas ideias formadas, desmistificar os tais atributos obrigatórios e ainda levar o leitor a uma viagem à volta do mundo do empreendedorismo. O autor, Daniel Isenberg, tem currículo para tal. Com mais de 30 anos de experiência em ambos os lados da barricada, como empreendedor (falhado, em várias ocasiões) e como investidor, tem ainda a bagagem do ensino académico sobre o tema, primeiro enquanto professor em Harvard e actualmente no Babson College, onde é responsável pelo Babson Entrepreneurship Ecosystem Project (BEEP). Isenberg foi também e recentemente o conselheiro escolhido pela Casa Branca para a iniciativa “Startup America”.E, a começar, pelo título, este não é mais um livro sobre como sermos patrões de nós próprios, mudarmos o mundo e ainda ficarmos milionários. Em Worthless, Impossible and Stupid: How Contrarians Entrepreneurs Create and Capture Extraordinary Value , éapresentada uma nova definição de empreendedorismo e uma compilação, colorida e diversificada, dos casos de estudo sobre o tema que Isenberg coleccionou e utilizou ao longo dos 11 anos em que ensinou empreendedorismo na universidade de Harvard. Todavia, nem tudo é novidade, na medida em que os empreendedores têm, realmente, alguns traços em comum que os identificam como tal: o gosto pela independência, uma espécie de insatisfação crónica, a vontade de ganhar dinheiro e o desafio de fazerem algo que os outros não fizeram. Mas e mais importante que tudo isto, de acordo com Isenberg, o que realmente caracteriza o verdadeiro empreendedor é o facto de possuir uma estrutura mental “contraditória” ou um espírito de contradição, ilustrada pelo sempre actual exemplo dos que vêem o copo meio cheio onde outros o vêem meio vazio ou de escolherem uma direcção oposta à da esmagadora maioria.

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O empreendedor reconhece, semeia e colhe o valor que mais ninguém antecipou
Uma das “novidades” apresentada por Isenberg no seu livro é o facto de o autor reenquadrar o fenómeno do empreendedorismo em termos de criação e captura de valor e não limitá-lo ao facto de se ser dono de um negócio ou de um projecto per se. E argumenta: “os registos sobre empreendedorismo estão cheios de exemplos daqueles que deveriam ser bem-sucedidos, mas não foram; de outros tantos que não deveriam atingir o sucesso, mas que o encontraram; dos que quase caíram e pereceram, mas sobreviveram e levantaram voo; e dos que pareciam estar a voar bem alto e, repentinamente, perdem altitude e se despenham”.

Para Isenberg, o empreendedorismo excepcional não tem a ver com a idade, com a dimensão, com a inovação ou até com a razão. E é através de histórias de verdadeiros construtores de negócios que são “como eu ou como o leitor” que o autor desafia os pressupostos sobre o que é necessário para se ser um empreendedor e estimula os “fazedores normais” a abraçarem o que é “sem valor, o impossível e o estúpido” e a transformarem-no em “valioso, possível e inteligente”.

Isenberg, que ajudou líderes em todo o mundo a criar políticas, estruturas, programas e culturas para a promoção do crescimento do empreendedorismo, acredita que esta redefinição facilitará aos seus praticantes, em conjunto com os decisores políticos, a terem mais impacto. E, como afirma, “existem algumas implicações importantes nesta reconceptualização, incluindo a relação existente entre o empreendedorismo e a desigualdade de rendimentos (que, de certa forma, caminham em conjunto), o papel dos governos e como este pode pesar nos empreendedores (na medida em que não torna o empreendedorismo necessariamente mais fácil), sem esquecer a relevância mínima da juventude e da capacidade de invenção”.

Num extracto do livro publicado pela revista Forbes, pode ler-se:

“O empreendedorismo é um processo ‘contrário’ no qual o empreendedor, de forma singular, percebe e colhe um valor extraordinário ao ver potencial onde outros não o vislumbram, principalmente porque a constelação particular de factores nesse momento é percepcionada por todos, com excepção para o empreendedor, como isenta de qualquer valor. Mas o valor extraordinariamente potencial acaba por se tornar real devido à capacidade do empreendedor para reconhecer, realizar (semear) e depois colher o valor que mais ninguém antecipou.

O empreendedorismo acarreta sempre o superar da adversidade a qual, na maioria das vezes, está relacionada com uma resistência ou desdém por parte do mercado (…). Não existe nada de comum no empreendedorismo. O empreendedorismo não está relacionado com tendências centrais, mas com extremos. O empreendedorismo não tem nada a ver com o que é provável, mas sim com aquilo que é possível. E não é sobre o ordinário, mas sim sobre o extraordinário. O denominador comum a todos estes empreendedores acessíveis reside na sua percepção ‘contrária’, criação e captura de valor extraordinárias. É o reconhecimento, o semear e o colher de valor que mais ninguém (o mercado) antecipou”.

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A adversidade é a norma, e não a excepção, do processo de empreender
No que respeita às adversidades que, de acordo com Isenberg, são parte obrigatória do processo de empreender, há que ter a noção de que pelo menos o primeiro ano do empreendimento em causa será o melhor e o pior das vidas de quem o ousa experimentar. E porquê? A principal razão reside no facto de se estar a nadar contra a corrente do mercado existente. Todos os empreendedores o fazem, assegura Isenberg, e quem não o faz é porque não é empreendedor. A verdade é que se o leitor ou os seus amigos são empreendedores, é porque estão a fazer algo de novo (mesmo que tenha partido de uma ideia já existente, ou seja, não tem de ser totalmente inovador), colocando no mercado algum produto ou serviço que ainda não existe, a não ser nas suas mentes. É igualmente verdade que, ao longo deste processo, se está a tentar dizer às pessoas que o serviço x que estão a usar ou o produto y que estão a comprar não é bom o suficiente, e a tentar convencê-las a alterar o seu comportamento, para lhe pagarem a si, empreendedor, o facto de lhes estar a melhorar a vida. (um pequeno, mas valioso aparte: a maioria dos aspirantes a empreendedores acredita que deve sempre terminar o seu pitch com a habitual frase “e esta é uma ideia pela qual me sinto verdadeiramente apaixonado!”, pois acreditam que expressar a sua paixão lhes confere mais oportunidades e valor – ora, sendo a paixão intrinsecamente irracional – o amor é cego – o empreendedorismo tem a ver somente com a criação de valor objectiva e racional).

Como insiste Isenberg, o processo de adversidade é a norma do empreendedorismo e não a excepção. É um processo contraditório que se repete, de uma forma ou de outra, inúmeras vezes em todo o mundo. E, subjacente à sua ubiquidade, reforça o autor, reside a questão que maior centralidade tem neste livro em particular: de que forma é que pessoas com ideias contraditórias são bem-sucedidas na criação e captura de um valor que se torna extraordinário? E será possível sermos nós também os “eleitos” para vislumbrarmos valor em situações que os outros não vêem?

Atentemos em mais um extracto do livro:

“Tenho assistido a este tipo de empreendedorismo em cada um dos cerca de 40 países que visitei ou nos quais trabalhei. E acabei por acreditar que o empreendedorismo faz parte da experiência humana, tal como a música, a arte, o teatro ou a literatura. Apesar de ser estatisticamente incomum (tal como a raridade estatística de um verdadeiro artista), o empreendedorismo pode ocorrer em qualquer sociedade, e não só nos míticos ‘hot spots’ (de que é exemplo Silicon Valley).

(…) O empreendedorismo e os empreendedores no geral sempre constituíram um fenómeno enigmático. E fazem-nos pensar de onde são provenientes as suas aspirações, aquilo que fortemente se esforçam por atingir, o que os faz mover e continuar a tentar e como é que, na verdade, atingem estes resultados extraordinários. São muitas as receitas que existem por aí para empreendedores que desejam atingir o sucesso. Algumas delas funcionam, mas poucas têm como base uma pesquisa e prática alargadas. Mas, na verdade, as receitas para os empreendedores acabam por ser sempre um paradoxo, exactamente devido à natureza própria do empreendedorismo. O fenómeno do empreendedorismo significa contradizer as nossas expectativas, o que implica que a codificação do certo ou do melhor caminho para um empreendedor possuirá sempre uma qualidade intrinsecamente elusiva. No mesmo instante em que pensamos que o temos, a função do empreendedor é provar que estamos errados. O valor potencialmente extraordinário reside precisamente em demonstrar de que forma violar (ou simplesmente ignorar) as receitas comuns pode funcionar, muitas vezes, surpreendentemente bem.

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Conselhos e mitos
Ao enfatizar que os “contraditórios” bem-sucedidos precisam igualmente de uma boa dose de autoconfiança para desafiar o status quo e a determinação para superar obstáculos, Isenberg afirma também que alguns dos melhores empreendedores que conhece acabam por se distinguir mais pela sua capacidade de atingir o impossível do que pela originalidade do seu pensamento.

E no seu livro oferece igualmente dois conselhos preciosos para os decisores políticos que pretendem, de forma genuína, estimular o empreendedorismo.

Em primeiro lugar, deverão fazer todos os possíveis para remover as barreiras à entrada e ao crescimento, para todos os tipos de negócios, em vez de procurarem apostar em clusters particulares. Em segundo, devem reconhecer igualmente a importância do lucro enquanto motivação. De uma forma sarcástica, o autor recorda todo o alarido “da moda” que se faz em torno do empreendedorismo social – em que empreender parece apenas ter como estimulo o “fazer o bem” – assegurando, contudo, que o principal motivador para qualquer que seja o empreendedor reside na possibilidade de ganhar um bom dinheiro. É o dinheiro que estimula as pessoas a correr grandes riscos e a aguentarem anos de sofrimento e, em muitos casos, privações. E também é o lucro que encoraja os investidores a apostar em ideias de negócios as quais, à primeira vista, podem parecer “meio malucas”.

Importante também é a desmistificação de ideias feitas sobre o “verdadeiro” perfil dos empreendedores. Seguem-se as mais importantes:

 

  • Os empreendedores têm de ser inovadores. Nos dias que correm, e especialmente no cenário tecnológico, a inovação parece ser a fonte obrigatória da qual todos os empreendedores devem beber. E, apesar de ser obviamente importante, a inovação não constitui atributo obrigatório para o acto de empreender. Pelo contrário, esta pressão para que a ideia seja totalmente inovadora pode até asfixiar os empreendedores e impedi-los de irem para a frente com uma ideia que, apesar de não ser completamente original, pode ser uma excelente oportunidade de negócio.

 

  • Os empreendedores têm ser especialistas. À primeira vista, parece óbvio que umempreendedor conheça e perceba muito bem a indústria na qual pretende empreender. Certo? Sim e não, responde Isenberg. Este mito é fascinante na medida em que o autor admite que um número significativo de pessoas iniciou os seus negócios com uma quantidade enorme de experiência, a qual foi decisiva para os transformar em êxitos estrondosos. Mas e por outro lado, o autor dá igualmente exemplos de muitas pessoas que eram quase inexperientes no início da sua aventura e que acabaram por ser verdadeiros especialistas na indústria em causa. Ou seja, apesar de a experiência ser sempre uma boa aliada, não constitui, de acordo com Isenberg, uma variável crítica para ditar o sucesso de um empreendimento.

 

  • Os empreendedores têm de ser jovens. Este é um dos mitos mais comuns, apesar de não ter qualquer consistência estatística. E, para provar o seu ponto de vista, o autor aponta alguns exemplos insuspeitos, nomeadamente da poderosa indústria da fast-food: Harland Sanders já tinha entrado nos 60 quando eu inicio à Kentucky Fried Chicken (KFC) e o homem por detrás do sucesso da McDonald’s, Ray Kroc já tinha ultrapassado a faixa dos 50.Ou, em suma, os jovensde vinte e poucos anos, armados de calças de ganga e viciados em cafeína, não representam, de todo, a classe por excelência dos empreendedores.

O que é uma boa forma de terminar este artigo. Para empreender não há idade, mas apenas a vontade de fazer algo nunca antes realizado.

Editora Executiva