Mesmo quando têm “capacidades comunicativas para, mantendo o rigor, apresentar como simples o que é complexo”, os cientistas “não são valorizados por este trabalho”. Contrariando este mindset, o programa Ethics, Science and Society aposta na divulgação “dos mais avassaladores progressos nos domínios científicos de fronteira”, investindo na literacia científica e interpelando à responsabilidade social de todos, incluindo empresas e instituições privadas. Para evidenciar que, se “o bem-estar social deve ser a finalidade da ciência”, o diálogo entre esta e a sociedade tem de ser “mediado pela reflexão ética”, como defende, em entrevista, a coordenadora do projecto, Maria do Céu Patrão Neves
POR GABRIELA COSTA

O projecto Ethics, Science, and Society é um programa de investigação académica, divulgação científica e responsabilização (sócio)política que, considerando o estado da arte do processo recente da convergência das ciências e da inovação tecnológica de ponta, visa ponderar a influência da intervenção da sociedade e aprofundar o impacto da reflexão ética na elaboração de políticas públicas de investigação científica.

No âmbito desta iniciativa da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), realizou-se, a 10 e 11 de Dezembro, um Simpósio internacional que reuniu em Lisboa o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, o presidente da Academia Europeia das Ciências, o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, vários representantes da Comissão Europeia e os presidentes da Fundação para a Ciência e Tecnologia e da Calouste Gulbenkian, entre muitas outras personalidades dos meios científico, académico e governamental.

Maria do Céu Patrão Neves, Professora Catedrática de Ética na Universidade dos Açores – © DR

Reflectindo sobre “os domínios científicos que hoje estão a evoluir de forma a produzirem maior impacto na sociedade e na vida de cada um”, como a Genética, Nanotecnologias, Robótica eInteligência Artificial, o evento estabeleceu “um amplo consenso” sobre a necessidade de reforço “de um pensamento e acção conjuntos da comunidade científica internacional em prol da defesa de uma ciência ao serviço da humanidade, sempre no aprofundamento dos valores nucleares das sociedades inclusivas e pluralistas”. E debateu “o exercício da responsabilidade social do cientista”, destacando que, se “o bem-estar social deve ser a finalidade da ciência”, “importa que a sociedade seja um parceiro activo no traçar dos seus desígnios, o que só será possível se se apostar seriamente na comunicação da ciência e na literacia científica”.

Acresce que “a relação entre ciência e sociedade é essencialmente de natureza ética”, já que “é em função do bem da maioria que a ciência e a tecnologia devem progredir”, como explica, em entrevista, a coordenadora do projecto Ethics, Science and Society, Maria do Céu Patrão Neves. Para a professora catedrática de Ética na Universidade dos Açores, “importa que a ponderação ética intervenha não apenas no fim do planeamento da actividade científica, mas se torne presente desde o início e ao longo do processo, como coadjuvante dos objectivos do progresso científico em prol do desenvolvimento social”.

Qual é a relevância de desenvolver um programa de investigação académica, divulgação científica e responsabilização (sócio)política como o projecto Ethics, Science and Society, num país onde os níveis de literacia são ainda baixos? Crê que a importância da ciência para o progresso da sociedade é ainda subestimada?

Não estou certa da importância da ciência para o progresso da sociedade ser actualmente subestimada. Creio que esta era uma realidade há algumas décadas atrás, quando uma ampla maioria da população portuguesa não se apercebia ainda do impacto do progresso científico na vida colectiva e sobretudo na sua própria porque, afinal, é quando esse impacto se reveste de uma dimensão pessoal que ganha também densidade para cada um.

Hoje, decorrente mais da revolução digital (no final do século XX) do que da revolução biotecnológica (desencadeada desde a década de 50 do século passado), o cidadão comum percebe que a inovação tecnológica está cada vez mais presente na sua vida quotidiana e nas suas relações com os outros e com o mundo… Basta manusear um telemóvel e lembrar a configuração e peso dos primeiros telemóveis e, principalmente, a sua função originária – a de telefonar – para perceber que todos estes aspectos foram largamente ultrapassados e reconhecer a presença constante e incontornável dos progressos científico-tecnológicos no nosso quotidiano.

[quote_center]O cidadão comum reconhece a presença constante e incontornável dos progressos científico-tecnológicos no quotidiano[/quote_center]

É verdade que os níveis de literacia científica são baixos, o que constitui uma realidade genérica e não restrita a Portugal, mesmo que tenhamos a percepção de que este deficit é mais acentuado entre nós. Afinal, a maior parte das pessoas tem acesso à informação científica através da comunicação social que, por sua vez, apenas divulga avanços científicos quando os pode apresentar de forma sensacionalista. Não temos jornalistas especializados em ciência em número suficiente e podendo dedicar-se apenas à sua especialidade. Os cientistas – que deveriam ser os primeiros responsáveis pela divulgação científica –, mesmo quando têm capacidades comunicativas para, mantendo o rigor, apresentar como simples o que é complexo, não são valorizados por este trabalho, que os desviaria das tarefas contabilizadas para a avaliação a que estão sujeitos.

Neste contexto, um programa que aposta na divulgação dos mais avassaladores progressos que se estão a desenvolver nos domínios científicos de fronteira, que assim também investe na literacia científica e, consequentemente, interpela a responsabilidade social não apenas dos próprios cientistas, mas também do governo, contribui – creio – para mais e melhor ciência, tomando como critério de avaliação o impacto no bem comum.

Em que medida contribuem os projectos desta natureza para promover um pensamento crítico por parte dos diversos intervenientes, e em especial dos decisores, essencial para gerar uma intervenção social capaz de resolver os grandes desafios globais, como as desigualdades sociais, as migrações ou as alterações climáticas? Que papel cabe às empresas nesta matéria e como perspectiva a sua actuação, face a essa visão crítica?

Não tenho dúvidas que um maior nível de instrução e de formação são condições indispensáveis para a emergência de um pensamento crítico. Porém, não são suficientes, isto é, nem sempre conduzem a uma reflexão analítica e crítica, sendo frequentemente perturbadas por emoções – receios ou esperanças não raramente hiperbolizadas – e também por interesses sectoriais e pessoais que enviesam todas as apreciações e comprometem a honestidade intelectual.

Assim sendo, convicta de que o Simpósio contribuiu para o reforço desta capacidade crítica em relação às decisões a tomar quanto à orientação dos progressos das ciências em função das necessidades de desenvolvimento social, importa que as diferentes partes interessadas assumam diferentemente este papel para que, na convergência de todos os interesses, consigamos ir construindo uma humanidade mais feliz.

As empresas – que destaca – têm também um papel a desempenhar neste desiderato comum e, atendendo à sua importância na organização da sociedade, a sua acção é preponderante. Creio que hoje a maior parte das empresas já se consciencializou da sua responsabilidade social, isto é, da necessidade da sua acção não tomar a própria empresa como finalidade, mas sim o serviço da sociedade. Ou seja, a indispensável sustentabilidade da empresa não pode ser um fim imediato, em si mesmo, mas mediatizado pelo serviço à comunidade: é na medida que a empresa contribui para o bem social que vai obter o retorno necessário para garantir a sua sustentabilidade. A este nível, a responsabilidade das empresas tem de incidir, essencialmente, no bem-estar dos funcionários (saúde, formação, estabilidade financeira), na sua integração na comunidade em que exerce actividade (acções culturais, de promoção regional, mecenato) e na sustentabilidade ambiental (em acções adequadas à natureza da empresa).

Qual é o estado da arte do processo de convergência entre as ciências e a inovação tecnológica?

De uma forma muito sucinta, diria que podemos sistematizar três momentos sucessivos na relação entre ciência e técnica. Numa primeira, tradicional, a ênfase era colocada no conhecimento científico, teórico, fundamental, sendo que depois, por vezes, se tornava possível aplicar este conhecimento à realidade concreta na resolução de problemas previamente identificados. Então, a procura do conhecimento pelo conhecimento era valorizada e existia uma prioridade do saber em relação ao fazer.

[quote_center]Um maior nível de instrução e de formação são condições indispensáveis para a emergência de um pensamento crítico[/quote_center]

Ao longo do século XX, e particularmente na segunda metade, verificou-se que todo o conhecimento científico, desenvolvido por equipamentos e utensílios cada vez mais elaborados e complexos, tinha sempre uma aplicação prática, antecipada ou não. Saber e fazer tornam-se indissociáveis. É a partir de então que se dilui a inocência do cientista no desenvolvimento de um conhecimento neutro. Todo o conhecimento é aplicável e nenhuma aplicação é axiologicamente neutra.

Hoje estamos a começar a viver um terceiro momento em que o desenvolvimento se verifica sobretudo no plano tecnológico, na utilização de recursos de intervenção que transformam a realidade, sendo que só posteriormente se aprofunda na razão ou justificação do funcionamento. Hoje o primado tende a concentrar-se no fazer.

Considerando esse estado da arte, que influência tem actualmente a sociedade nas questões mais prementes para a humanidade, no que respeita ao progresso e justiça social?

Enquanto não alcançarmos uma dimensão expressiva da sociedade com informação científica básica e, simultaneamente, com uma participação empenhada e responsável, esta influência efectiva não se vai verificar. Manter-nos-emos como hoje, com uma escassa informação científica divulgada pelos media não raramente equívoca, que acaba por moldar a opinião pública de acordo com interesses sectoriais que a sociedade desconhece… Teremos também, como hoje, políticos que, não obstante os seus interesses imediatos, legislam sobre matérias importantes cujo impacto é essencialmente futuro e que, dizendo respeito à identidade da humanidade, não podem ser exclusivamente decididas por alguns e carecem de uma legitimação social.

Actualmente, a opinião pública já tem um peso muito significativo no que se refere às questões relativas ao futuro da humanidade, mas enquanto esta não se exercer de modo informado e crítico, trata-se de uma influência instrumentalizada e, assim sendo, nefasta. 

Que impacto já tem a reflexão ética na elaboração de políticas públicas de investigação científica, e que esforços têm ainda de ser feitos para integrar a ética na sua elaboração, de uma forma transversal, sistemática e que produza resultados?

Depois de um longo período, que começa remotamente na modernidade e se declara ostensivamente na contemporaneidade, em que a ética é perspectivada como obstaculizando a ciência, travando o progresso científico, creio que vivemos hoje uma fase em que cada vez mais a comunidade académica reconhece a fecundidade de uma parceria entre ciência e ética. Não obstante, é ainda frequente a desconfiança dos cientistas em relação à ética como um obstáculo a vencer na aprovação dos seus projectos, a par de uma tendência de funcionalização da ética como meio para a integrar na actividade científica.

[quote_center]É na medida que a empresa contribui para o bem social que vai obter o retorno necessário para garantir a sua sustentabilidade[/quote_center]

Neste contexto diria que importa que a ponderação ética intervenha não apenas no fim do planeamento da actividade científica, mas se torne presente desde o início e ao longo do processo, como coadjuvante dos objectivos do progresso científico em prol do desenvolvimento social.

Defende que “o desenvolvimento científico-tecnológico depende de políticas adequadas, pelo que se reflecte sobre o papel de destacadas instituições portuguesas no desenho da política científica e de investigação”. Como caracteriza a política científica e de investigação nacional, comparativamente a outros países da Europa, e a nível mundial?

A União Europeia ainda tem um deficit de investimento em relação aos seus mais directos competidores, nos Estados Unidos, como na Ásia; Portugal tem um deficit de investimento em relação à Europa…, o que fala por si. Em todo o caso, Portugal está perfeitamente alinhado com as políticas europeias neste sector, apostando no progresso científico como motor de desenvolvimento económico e social.

Importa, entretanto, compreender que hoje o investimento em ciência e tecnologia não pode vir apenas do sector público, do Estado, sob o risco de ficar cronicamente escasso e insuficiente. Importa envolver também empresas e instituições privadas, o que compete diferentemente a todos os que se têm de aproximar e interagir, com benefícios recíprocos: a comunidade científica mais empenhada em servir a sociedade, as diferentes organizações sociais mais ousadas e ambiciosas no envolvimento da comunidade científica.

[quote_center]A escassa informação científica divulgada pelos media, não raramente equívoca, molda a opinião pública de acordo com interesses sectoriais que a sociedade desconhece[/quote_center]

Acredita também que “a interface entre ciência e sociedade é fortemente mediada pela ética enquanto voz daquilo que a sociedade pode e deve esperar da ciência e de como esta pode e deve promover o bem-estar dos cidadãos e o desenvolvimento social”, numa intersecção “que se exprime fortemente na responsabilidade social”. Pode explicar?

Eu penso que a relação entre ciência e sociedade é essencialmente de natureza ética, na medida em que consiste na concepção do bem comum como padrão para a orientação da ciência. É em função do bem da maioria que a ciência e a tecnologia devem progredir. Ora a interpretação deste bem comum é realizada pela ética enquanto racionalidade da acção humana, tomando em atenção a bondade dos fins propostos, a rectidão dos princípios fundamentadores e a lisura dos procedimentos seguidos. A noção de “responsabilidade social” exprime precisamente estas preocupações e as modalidades de lhes responder.

Quais foram os objectivos e os grandes temas debatidos no Simpósio “Ethics, Science and Society”, nomeadamente no que concerne os avanços das ciências mais impactantes da nossa época, como aGenética, Nanotecnologias, Robótica eInteligência Artificial? Que contributo trouxe à reflexão e debate produzidos no evento a participação de inúmeras personalidades de relevo, incluindo a nível internacional?

O Simpósio selecionou os domínios científicos apontados como sendo os que hoje estão a evoluir de forma a produzirem maior impacto na sociedade e na vida de cada um, desde as virtualidades da edição genética – na construção de novos seres humanos, seguindo um projecto preconcebido –, ao exercício da inteligência, não só numa dimensão extracorpórea (exterior), mas mesmo na ausência de todo o suporte material. Neste âmbito, o que se perfila mais revolucionário é a convergência destas e outras ciências, numa potencialização dos efeitos hoje ainda difícil de descortinar.

Creio poder adiantar que se estabeleceu um amplo consenso na necessidade de reforço da integridade científica e de um pensamento e acção conjuntos da comunidade científica internacional em prol da defesa de uma ciência ao serviço da humanidade, sempre no aprofundamento dos valores nucleares das sociedades inclusivas e pluralistas.

[quote_center]Matérias que dizem respeito à identidade da humanidade não podem ser exclusivamente decididas por alguns e carecem de legitimação social[/quote_center]

Não temos dúvidas que, além de ser impossível travar o progresso científico-tecnológico, tão pouco seria desejável tentar fazê-lo uma vez que, bem orientado, tem sido um factor determinante do desenvolvimento das sociedades e do bem-estar das populações. Por isso, o Simpósio contemplou também um debate sobre política científica, incluindo o seu financiamento. A par da unanimidade na necessidade de reforço do apoio às instituições, projectos e investigadores, sublinhou-se igualmente a pertinência da apresentação de resultados efectivos em termos de desenvolvimento social o que, aliás – afirmou-se – contribuirá também para uma maior compreensão da importância da ciência por parte da sociedade. Neste sentido, destacou-se os Objectivos da Agenda 2030 como novo quadro de avaliação dos impactos do progresso científico-tecnológico.

E, precisamente porque o bem-estar social deve ser a finalidade da ciência, importa que a sociedade seja um parceiro activo no traçar dos seus desígnios, o que só será possível se se apostar seriamente na comunicação da ciência e na literacia científica. Este foi também um tema em destaque, considerando-se que se integra no exercício da responsabilidade social do cientista – um tema amplamente desenvolvido no segundo dia do Simpósio e particularizado numa ampla pluralidade de domínios a que a ética da ciência e da tecnologia se dedica.

Em suma, o diálogo entre a ciência e a sociedade, mediado pela reflexão ética é, ele próprio, um imperativo ético.