A empresa é essencialmente uma unidade de criação e distribuição de riqueza fazendo-o com propriedade e critério. Distribuir não é atirar dinheiro para cima dos problemas, é arranjar soluções para problemas reais. A vocação da empresa é ser instrumento da construção do bem e a do empresário é ser elo de ligação entre o talento recebido e o seu desenvolvimento para o bem da comunidade
POR JOÃO CORTEZ DE LOBÃO

O processo empresarial é mais virtuoso quando tem a criação e a distribuição de valor no alicerce da sua estrutura.

Entre as minhas mais gratas recordações estão os momentos passados com os meus avós. Cuidaram de mim com ensinamentos que estruturaram o meu ser e formaram o meu olhar. A minha vida profissional é também o resultado do cuidado que aprendi de quantos que me habituei a observar e admirar. Também em casa aprendi que a criação de riqueza começa por ser uma obrigação bíblica: “crescei, multiplicai-vos e dominai a terra” – gerir é tarefa que Deus confia ao ser humano.

Nesta equação, dois elementos me parecem essenciais: ligar a criação à distribuição.

  1. Criar implica perceber que não há soluções estáticas e definitivas.

Tudo ganha forma dinâmica em relação ao que se procura criar e na atitude de procurar o que mais falta faz na sociedade partindo dos recursos que temos à nossa volta. Só um empresário com visão pode ter sensibilidade para intuir o que falta. Henry Ford inventou um carro acessível a todos quando o cavalo parecia ser o melhor meio de transporte. Todos os recursos do mundo não servem de nada sem uma ideia fundamental. A inteligência consiste tanto em ignorar o que é irrelevante quanto a dar importância ao que faz a diferença. «Fazer como sempre se fez» é inibidor da criatividade e Deus chama-nos a ser criativos, vide a parábola dos talentos. Para isso é preciso pensar fora da caixa, mudar, desmontar resistências psicológicas, intelectuais e políticas: gerir com critério é um imperativo ético.

  1. A distribuição de valor.

Muitos dos bons exemplos que vemos estão nos EUA, país alicerçado sobre uma matriz profundamente cristã de partilha a partir da sociedade civil. Qualquer cidadão tem a obrigação social, à sua própria escala, de devolver à sociedade parte da realização do seu “sonho americano”.

A actividade dos empresários “é uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos”, diz o Santo Padre Francisco na Fratelli Tutti (123). E na sua homilia no Dia Mundial dos Pobres (15/11/ 2020) continua: “Servos bons, no Evangelho, são aqueles que arriscam. Não se mostram exageradamente cautelosos e precavidos, não conservam intacto o que receberam, mas usam-no. Com efeito o bem, se não se investir, perde-se, já que a grandeza da nossa vida não depende de quanto amealhamos, mas do fruto que produzimos”. Ser empresário é o oposto do job security.

Deus responsabiliza-nos por fazer crescer os bens e aumentar a riqueza: para partilhar; para acudir criativamente a quem está mais vulnerável. Não é com certeza para o entesouramento como na parábola do homem que deitou abaixo os celeiros para construir outros maiores a fim de armazenar a maior colheita.

A nossa fé abre-nos a perspectiva a uma visão mais lata e abrangente da vida. O processo empresarial é mais virtuoso quando tem a criação e a distribuição de valor no alicerce da sua estrutura. O empresário tem a ideia, trabalha essa ideia num sonho que quer concretizar, faz contas, mede possibilidades, constrói um plano, contrata colaboradores, entusiasma familiares, toma a decisão de correr os riscos inerentes, empenha-se pessoal e financeiramente, implementa o projecto comprometendo o seu nome e recursos, adapta o plano aos revezes e aos desenvolvimentos imprevisíveis, acarinha os vários stakeholders para tecer laços de comunidade, suporta e gera receitas fiscais – antes de ver a luz ao fundo do túnel… É todo um processo complexo e empenhativo para criar riqueza que envolve vários agentes que são já os primeiros destinatários da distribuição.  De certo modo, está-se sempre em ponto de partida. O processo não se conclui na etapa da criação, Antes pelo contrário. E é neste processo em que o sonhador ainda está fixado na criação, que têm de estar implícitos de uma forma mais ou menos consciente os primeiros sinais da distribuição. Não há a situação de “só começa a distribuição quando atingir determinado patamar”. Compreende-se como a Doutrina Social da Igreja no seu conceito de ‘destino universal dos bens’ repetido pelo Papa Francisco é uma ideia estranha a muitos.

A RESPONSABILIDADE DOS MAIS RICOS NA SOCIEDADE 

Um estudo do Banco Mundial constatou que nos países com mais milionários, as classes mais baixas têm maiores rendimentos per capita, especialmente quando a riqueza dos mais ricos foi criada por eles mesmos, com inovação empresarial, e não herdada ou obtida por meios políticos.

Ainda que haja uma grande diferença entre mais ricos e mais pobres, a riqueza gera oportunidades para um maior número tirando assim mais pessoas da pobreza. O valor criado – seja dinheiro ou bens – é sempre escasso. No último século já se caminhou muito tirando do limiar da pobreza uma parte substancial da humanidade mas há ainda muito trabalho pela frente.

A empresa é essencialmente uma unidade de criação e distribuição de riqueza fazendo-o com propriedade e critério. Distribuir não é atirar dinheiro para cima dos problemas, é arranjar soluções para problemas reais. A vocação da empresa é ser instrumento da construção do bem e a do empresário é ser elo de ligação entre o talento recebido e o seu desenvolvimento para o bem da comunidade.

Na relação com os colaboradores, a meritocracia é um critério essencial mas a atenção da empresa para com cada um deve ir muito para além dessa relação estrita. Somos chamados a gerir integrando critérios de amor pois a vida toda por inteiro está comprometida. Programas como Pagamento na Hora ou e+fr que todos conhecemos na ACEGE potenciam essas ligações. E como diz o Papa Francisco, ninguém se salva sozinho, mas como parte de um povo que caminha.

Inspirada na estrutura familiar e empresarial, a distribuição de valor passa a ter um âmbito global porque pode chegar a qualquer ponto onde se detenha o nosso olhar. Perante a dignidade de cada um e o dever de atender a quem mais precisa, surge urgente o grito: “Deus fez-se Homem: nada do que é humano me pode já deixar indiferente”.

Esta forma de cuidar não acaba com um primeiro movimento generoso e altruísta ou um gesto solitário, é uma atitude permanente do coração. A relação é tecida a partir das circunstâncias que a vida lançou e não acaba no primeiro impulso. Procurar a excelência é ter a coragem e a ousadia de imitar Deus que tudo o que cria é bom.

Um dos exercícios que sempre faço é imaginar Cristo como cliente, stakeholder. Cuidar tem muito a ver com compreender-se como um elo de uma corrente de acções que nos responsabiliza por cada um e nos liga entre todos. Diz o Concílio Vaticano II: “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade”.

O BELO E A PLENITUDE

Tendo feito o necessário, somos chamados a ir mais além. A vida não se resume à sobrevivência. Os processos económicos e políticos não esgotam a nossa missão na terra. Fomos criados para a plenitude. As respostas que damos enquanto comunidade às grandes perguntas da História, em particular sobre a origem e o destino do ser humano e a forma ética de vida, dão corpo à cultura que é a nossa. Essas respostas variam com o tempo e a geografia. Por isso, partilhar as respostas que ao longo dos tempos melhor responderam a essas perguntas é um dever de caridade para permitir aos nossos contemporâneos e às gerações vindouras beber desse manancial e crescer a partir dessa grande herança. Só esta dimensão dá a medida da transcendência que é constitutiva do nosso ser. Assim, quando depois de ter partilhado os bens essenciais, partilhamos o acesso à beleza, a possibilidade de purificar o olhar e a imaginação com gestos, arte, música, … com as maravilhas da natureza estaremos a corresponder mais inteiramente ao mandato de Deus.

NOTA: Este artigo resulta de uma síntese do capítulo “O Cuidado Como Obrigação Empresarial” incluído no livro “ A Sociedade do Cuidado”, obra que apresenta uma reflexão multifacetada sobre o cuidado – o cuidado com os outros, com o mundo e consigo próprio”, contando com a visão de 30 autores de prestígio. A sua pertinência foi reforçada pela pandemia do Covid-19, a qual acentuou natureza social, global e interconectada da humanidade, e que se entende como estruturante para o futuro da sociedade humana global.

Editada pela Universidade Católica Editora, a obra pode ser adquirida aqui

João Cortez de Lobão

CEO da Herdade Maria da Guarda