Neste artigo, adaptado da Stanford Social Innovation Review, Susan Liautaud, especialista em ética e professora na Universidade de Stanford, toma como mote o famoso caso de doping do ainda mais famoso ciclista Lance Armstrong, alertando para os perigos de comportamentos que, apesar de ilegais, se normalizaram e que são alvo fácil de contágio
Adaptado por Helena Oliveira
© Stanford Social innovation Review

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“Quando as notícias sobre Lance Armstrong e as alegações de doping caíram que nem bomba no Verão passado”, escreve Susan Liautaud, especialista em ética e professora na Universidade de Stanford, “um amigo meu, honrado e informado, comentou, de uma forma bastante irritante, que não conseguia perceber qual o problema de toda a história. Se toda a gente o faz – e toda a gente mesmo, de acordo com ele – por que motivo não se há-de legalizá-lo?”. O que ele estava a dizer, como muitos outros o fizeram, é que ingerir drogas que aumentam a performance se tornou algo normal no interior do nosso sistema ético – mesmo que tal seja ilegal e uma violação clara dos regulamentos inerentes aos eventos desportivos.

A normalização do doping é um pensamento assustador, mas o verdadeiro problema é, na verdade, muito pior e muito mais disseminado que o próprio doping ou qualquer prática não ética específica. A verdadeira questão é o contágio de comportamentos não éticos na generalidade. Nem toda a gente negativamente afectada por uma crise ética similar à de Lance Armstrong irá envolver-se com doping. Contudo, muitos envolver-se-ão em outras formas de comportamento não ético, directa ou indirectamente, relacionado com o doping (a denominada “máfia”).

Mas como acontece este contágio? A pesquisa actual de Susan Liautaud tem como enfoque compreender o comportamento não ético em diferentes sectores (incluindo empresas, fundos de investimento e organizações sem fins lucrativos). O comportamento não ético é contagioso no interior das organizações e das equipas, nas indústrias e nos sectores, e também entre sectores (incluíndo os corporativos, os não lucrativos, os académicos, os governamentais e os multilaterais). E é um enorme desafio tanto para a sociedade civil como para os governos.

Os efeitos “cascata” e multidimensionais da crise de Lance Armstrong (ou dos escândalos da Libor, de Raj Gupta, das ditaduras africanas, etc) são extensos demais para poderem ser listados. Apesar de muito graves, os efeitos mais perturbadores não estão relacionados com os perpetradores de primeira linha– os treinadores, os médicos, os patrocinadores, a US Postal, outros atletas, a Volta à França, os Jogos Olímpicos, outros eventos desportivos, os media, etc. Algumas destas pessoas estavam directamente envolvidas em comportamentos não éticos: a maioria é vítima.

Nem são as vítimas de segunda ou terceira linha ou os perpetradores que mais preocupantes se tornam: os que apoiam financeiramente a Fundação Livestrong ou os que compram os produtos Livestrong como forma de apoio a um herói ou campeão supostamente ético; ou os contribuintes que financiam os procedimentos legais; ou os conselhos de administração das empresas dedicados a patrocínios e a Fundação Livestrong; ou a comunidade de apoio ao cancro, que involuntariamente utilizou fundos ilegítimos para uma boa causa, sem falar nas famílias de todos estes e inúmeras outras pessoas.

Ao invés, pede a autora deste artigo, consideremos o quão longe o contágio nos leva. As crianças e os jovens sentem-se encorajados a experimentar drogas potencialmente perigosas através de fontes ilícitas e sem supervisão médica. As denúncias preliminares (como as acusações efectuadas pelo jornal francês L’Equipe há uns anos) são rejeitadas a favor de uma reputação lendária protegida pelo poder financeiro e pela fama. O rumo descontrolado no sentido de uma cultura que normaliza a fraude – ou que coloca no plano da normalidade qualquer comportamento não ético – só porque “toda a gente o faz” –  acaba por se tornar… normal. E esse é que o principal problema.

“No actual estágio da minha pesquisa”, escreve Susan Liautaud, “ainda não tenho as explicações necessárias para os mecanismos de contágio ou sobre as melhores técnicas de prevenção, mas posso avançar já com algumas sugestões”, diz:

Em primeiro lugar, as empresas deveriam assegurar uma supervisão mais complexa da ética (e com diligências contínuas) comparativamente aos controlos de fachada habituais no que respeita aos patrocínios, à responsabilidade social corporativa e à filantropia. O que deverá incluir um pensamento orientado para o futuro e medidas pró-activas para protecção do contágio contra os comportamentos não éticos, interna e externamente, para os beneficiários do envolvimento corporativo.

Em segundo lugar, as organizações sem fins lucrativos deveriam reforçar igualmente este tipo de supervisão tanto ao nível do conselho de administração como no da gestão sénior. A autora afirma não ser defensora de uma aversão excessiva ao risco relacionada com potenciais oportunidades de envolvimento corporativo, afirmando, contudo, que a resposta às notícias contínuas sobre estes tipos de escândalos deveria ser feita através da análise, seguida de um bom julgamento, e não simplesmente tentar evitá-lo.

A abordagem não deverá ser a de uma eliminação total do envolvimento corporativo sob uma capa de independência. Uma questão chave é a do desafio do timing das políticas de aceitação de donativos, como por exemplo quando um comportamento não ético por parte do doador corporativo ou empresarial vem à superfície depois das diligências devidas terem sido efectuadas (como por exemplo, a aceitação por parte da Durham University de um enorme donativo de um primeiro-ministro do Koweit que haveria de ser deposto como resposta a acusações de corrupção).

Em terceiro lugar, porque nenhuma organização é imune a comportamentos não éticos, tanto as organizações com fins lucrativos como as que não os têm deveriam implementar políticas, estruturas de incentivos e culturas que recompensassem, de forma célere e responsável, reacções a episódios de comportamentos não éticos. A responsabilidade chega ao público, aos colaboradores e aos voluntários, aos clientes e aos beneficiários, aos accionistas e aos doadores, e a todos os que se comportam de forma não ética. Um reconhecimento aberto e uma resposta rápida são essenciais para evitar a “máfia” de contágio, em conjunto com a “tolerância-zero” para as camadas de mentiras.

Mas de regresso a Lance Armstrong, a autora afirma que a chave para se evitar o contágio neste caso reside no próprio Lance Armstrong. Existe, a seu ver, uma boa oportunidade para ele realmente sair da história como um herói. Será muito mais complicado do que o pântano do doping e exigirá muito mais coragem do que a Volta à França. Tem de ser ele a parar com o contágio, começando pela exposição clara de todos os aspectos inerentes ao seu comportamento não ético e assumindo a sua quota-parte de responsabilidade. E só depois é que potenciais remédios poderão ser explorados e implementados. Só depois é que as lições poderão ser apreendidas e aplicadas a outros tipos de comportamentos similares em outras áreas da sociedade civil.

Artigo originalmente publicado na Stanford Social innovation Review, assinado por Susan Liautaud, Outono 2012. Adaptado com permissão.

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