Uma das promessas da economia digital consistia em fazer o bem, com todos e para todos. Todavia, esse ideal nunca se transformou em realidade. Pelo contrário. Num interessante artigo publicado na Stanford Social Innovation Review, duas especialistas em tecnologia e justiça digital elencam os males desta economia e propõem soluções sobre a verdadeira democratização da Internet e os direitos dos trabalhadores
Traduzido e adaptado por HELENA OLIVEIRA
© Stanford Social Innovation Review

A democracia, a liberdade e a prosperidade eram, originalmente, as promessas da Internet, com a rede mundial de computadores a mudar completamente o jogo tal como o conhecíamos. As pessoas podiam agora construir e criar, de forma colaborativa, o mundo que desejavam. Os ganhos seriam universais e, na nova economia da Internet, todos teriam um lugar. Aqueles que enfrentavam barreiras no mundo offline em termos de género, raça, etnia ou capacidades encontrariam novas oportunidades. Na verdade, estas tecnologias digitais permitiriam às pessoas transcender as fronteiras geográficas que limitavam a sua capacidade de levar a cabo as vidas que valorizavam, permitindo-lhes adquirir mais poder social, económico e político.

No entanto, a realidade actual está muito longe dessa visão idealista. Em vez de uma rede mundial de computadores democratizada, vivemos numa economia digital em que “o vencedor leva tudo”, em que os ganhos destes vencedores só aumentam e onde os perdedores são progressivamente mais miseráveis. 

A igualdade de condições em termos de concorrência – prometida tanto pelos fundadores como pelos investidores do sector tecnológico – não se concretizou. Os desafios que os trabalhadores há muito enfrentam foram agravados na economia digital. Na verdade, as promessas de mobilidade económica, acesso e flexibilidade que sustentaram as imaginações digitais sobre o trabalho e a segurança do futuro afiguram-se vazias. 

Em vez disso, as perturbações no mundo do trabalho trouxeram a precariedade económica, levaram os empregadores a excederem-se e trouxeram a normalização da azáfama sem fim para muitos. O trabalho em plataformas calcificou as desigualdades estruturais em todo o mundo, relegando particularmente as mulheres trabalhadoras, especialmente as dos países menos desenvolvidos, para os segmentos mais baixos do mercado de trabalho. Assim, a economia digital não só não cumpriu os seus objectivos, como também explorou hierarquias raciais/étnicas, de género e geopolíticas.

Como a tecnologia avança rapidamente e afecta negativamente os trabalhadores

Em 2021, a IT for Change, com o apoio da Ford Foundation, levou a cabo um grande estudo sobre a digitalização da economia para tentar compreender de que forma a Internet afectou o trabalho e os direitos dos trabalhadores. Foram entrevistadas mais de 80 pessoas, representando trabalhadores, académicos, sindicatos, o sector privado, a sociedade civil, filantropos e agências multilaterais. 

Nessas entrevistas, ouviu-se falar repetidamente de um conjunto de problemas interligados: que os ganhos da reestruturação da cadeia de valor global trouxeram poucas recompensas para os trabalhadores, ao mesmo tempo que reverteram direitos laborais conquistados há gerações; que as empresas acumularam fortunas desmedidas e um poder cada vez maior, enquanto os trabalhadores ficaram sem direitos, precários e atomizados; que a economia digital emergente está a provocar mudanças sistémicas, desde o aumento da deslocação de trabalhadores a trajectórias de desenvolvimento desiguais, levando a uma instabilidade crescente para os trabalhadores e para os mercados de trabalho no Sul Global.

Estas mudanças aceleraram, em muitos aspectos, devido à ascensão do “trabalho sob procura” baseado em plataformas, que foi “vendido” com a promessa de fazer de cada trabalhador o seu próprio patrão, com horários de trabalho personalizáveis. A economia gig revelou-se um motor para transformar empregos da classe trabalhadora, outrora estáveis – e, cada vez mais, também os empregos da classe média – em trabalhos inseguros e a pedido, com poucas protecções e recompensas cada vez menores. Em todo o mundo, os chamados “contratantes independentes”, cujo trabalho criou unicórnios em empresas como a Uber e a Instacart, lutam agora para sobreviver. Nos Estados Unidos e nas diversas plataformas em causa, um em cada sete trabalhadores por conta própria ganha menos do que o salário mínimo e um em cada cinco não ganha o suficiente para comer; as condições no Sul Global são exponencialmente piores, também devido ao enorme e historicamente mercado de trabalho informal, 

O modelo de plataforma que vemos em todo o lado adopta controlos algorítmicos para gerir os trabalhadores, desde a contratação, programação e correspondência até à avaliação do desempenho e rescisão. A transferência da gestão dos chefes humanos para a inteligência artificial (IA) deu origem a numerosos problemas, deixando os trabalhadores à mercê de sistemas digitais que criam horários de trabalho imprevisíveis, exigências de produtividade cada vez maiores e desumanas e decisões de disciplina e despedimento irresponsáveis, sem qualquer explicação ou vias de recurso e rectificação. Estes desenvolvimentos estão agora a alastrar-se muito para além das práticas das grandes empresas tecnológicas pioneiras na economia, com trabalhadores em armazéns, hospitais, retalhistas, escritórios e outros sectores que têm agora de enfrentar as mesmas decisões de gestão automatizadas e opacas que os trabalhadores da economia gig experimentam.

Por outro lado, os trabalhadores estão também sujeitos a uma vigilância substancialmente maior, sob formas variadas e perturbadoras. Longe das câmaras de segurança no local de trabalho, cada vez mais normalizadas, os trabalhadores estão agora a ser monitorizados digitalmente dentro e fora do trabalho, muitas vezes sem o seu consentimento informado e sem controlo sobre a forma como os seus dados pessoais são utilizados e comercializados pelos seus empregadores e por “corretores” de dados terceiros. 

Desde os programas de “captura” de teclas instalados nos computadores portáteis dos trabalhadores remotos até à exigência da instalação de aplicações da empresa nos seus telefones pessoais que acedem às suas câmaras e dados privados, estas mudanças orwellianas alimentam os programas de produtividade geridos por IA que rastreiam todos os locais e pausas dos trabalhadores para, e por exemplo, irem à casa de banho. Consequentemente, os trabalhadores têm vindo a perder progressivamente o controlo sobre os direitos fundamentais no que respeita à privacidade pessoal e digital.

Entretanto, o espectro da automatização contínua paira como uma ameaça constante que pode fazer descarrilar ainda mais a vida e a estabilidade dos trabalhadores em todo o mundo, uma vez que sectores inteiros do mercado de trabalho podem tornar-se obsoletos.

Estas questões, entre outras, constituem um problema mais básico: o facto de as tecnologias que sustentam a economia digital actual terem sido concebidas por e para as empresas e não para um conjunto mais vasto de partes interessadas e muito menos para os trabalhadores. 

A cultura tecnológica e o discurso que lhe está associado têm dado prioridade a narrativas de ruptura, novidade e eficiência, ao mesmo tempo que falam da inclusão, da equidade e da justiça. Como actores geoeconómicos cada vez mais poderosos, os titãs da tecnologia estão a fomentar novas formas de colonialismo digital: tanto no interior dos países ricos, onde a população está a ser rapidamente dividida entre os que têm e os que não têm, como no palco global, à medida que os países ricos do Norte Global reproduzem relações de exploração noutras geografias.

Rumo a um regime de inovação digital mais responsável

Tal como os países do Sul Global há muito que são pilhados em busca de mão-de-obra e de recursos naturais preciosos, a economia digital actual está também a extrair dados dos seus cidadãos. E à medida que os novos trabalhos “sujos” da economia digital são externalizados para o Sul Global – por exemplo, moderadores de conteúdos e etiquetadores de dados no Quénia e nas Filipinas que vasculham os resíduos das redes sociais para proteger o público de material extremo e gráfico – estamos a assistir à construção de uma nova era de fábricas digitais, onde o trabalho mais perigoso é externalizado para ser executado por trabalhadores com menos protecção.

A indústria tecnológica gosta de se apresentar como presidindo a uma nova revolução industrial que irá mudar o mundo para sempre. É uma comparação mais adequada do que se possa pensar. O Dr. Onoho’Omhen Ebhohimhen, do Congresso Laboral da Nigéria, defende que os efeitos da economia digital, como a gestão algorítmica dos trabalhadores, “é semelhante a reproduzir a primeira Revolução Industrial, em que os trabalhadores eram obrigados a ficar “presos”, trabalhando 20 horas ou mais por dia e sem direito a terem uma vida familiar”.

No entanto, não tem de ser assim. A inovação digital pode alterar as economias a favor de formas colaborativas e solidárias de trabalho digno e de qualidade, onde todos podem prosperar. Então, como podemos democratizar a economia digital para que os trabalhadores tenham poder de acção e possam moldar o futuro juntamente com os tecnólogos e os capitalistas de risco de Silicon Valley?

Eis três maneiras de construir o futuro do trabalho que queremos na era digital

  • Construir novas normas para o trabalho digno na era digital

 Colectivamente, há que organizar e apoiar o desenvolvimento de novas normas garantidas para o trabalho digno nesta economia, incluindo uma nova compreensão dos dados dos trabalhadores e dos seus direitos digitais; acabar com a gestão algorítmica opaca e irresponsável e com as formas abusivas de vigilância no local de trabalho; estebelecer novos quadros de governação para o papel da IA e de outras tecnologias emergentes no local de trabalho. 

Adicionalmente, os trabalhadores devem conseguir moldar as condições emergentes e os modelos económicos que estruturam o tecido das suas vidas profissionais. As empresas devem considerar as consequências destas tecnologias ao longo dos seus processos de aquisição, implementação e governação e em parceria com as suas forças de trabalho. 

Os governos de todo o mundo devem estabelecer limites e trabalhar no sentido de construir futuros económicos alternativos, onde os direitos dos trabalhadores e as economias locais sustentáveis estejam no centro. As filantropias e o sector do desenvolvimento podem ajudar a promover iniciativas lideradas por trabalhadores e parcerias entre organizações de trabalhadores e comunidades tecnológicas, para que esses centros intersectoriais possam desenvolver novas soluções, desde plataformas detidas por trabalhadores a projectos de infra-estruturas tecnológicas. 

Os académicos podem ajudar a satisfazer a grande necessidade de estudos em várias áreas, por exemplo, sobre as tecnologias emergentes como a IA, que estão a transformar as economias e as formas de trabalho em expansão.

  • Construir uma economia digital dedicada às mulheres e aos mais marginalizados

É necessário investir na construção de uma economia digital com enfoque nas mulheres, onde o serviço e o apoio baseados na comunidade e uma rede de segurança social são prioridades. As mulheres e outros trabalhadores tradicionalmente marginalizados precisam de ser capacitados quando se trata do trabalho em plataformas: através de programas de formação e sensibilização, bem como de espaços dedicados onde possam articular as suas preocupações e impulsionar mudanças políticas mais amplas que exijam que os empregadores destas plataformas comecem a cuidar dos seus empregados. 

Há também a necessidade de novos modelos cooperativos de serviços de cuidados, incluindo sociedades de ajuda mútua, sindicatos, grupos comunitários e outros, e de oportunidades equitativas de requalificação e formação para os trabalhadores marginalizados que correm maior risco de perder os seus empregos para a automação. 

  • Construir melhor tecnologia ouvindo os trabalhadores

Depois das entrevistas realizadas a dezenas de intervenientes na economia digital, destacou-se uma lição clara: é imprescindível ouvir os trabalhadores, porque são eles que melhor compreendem os seus problemas e, muitas vezes, têm uma visão mais clara das soluções possíveis. Os mais afectados pelos fracassos da economia digital até à data, que sofreram os piores problemas a ela associados, são alguns dos maiores trunfos para criar um futuro do trabalho desejável. Para alcançar esse futuro, é necessário investir na experimentação e na inovação por, com e para os trabalhadores. Isto significa, em grande parte, colocar no centro aqueles que têm sido mais marginalizados e permitir-lhes moldar e conceber as intervenções de que necessitam. Em última análise, é possível construir uma tecnologia melhor através de um design centrado no trabalhador.

Os sectores do desenvolvimento e da filantropia podem desempenhar um papel importante através de investimentos catalisadores nesta nova agenda que protege os direitos dos trabalhadores e cria uma economia digital que funciona para todos – local e globalmente. No entanto, nada disto pode acontecer apenas com estes mesmos sectores.

Na construção de uma economia digital mais democrática e abrangente, o sector tecnológico e os investidores têm de aumentar os seus contributos – não através de generosidade ou caridade – mas assegurando que os inputs, processos e retornos da inovação, muitas vezes construídos com base no investimento público e no trabalho humano, revertem a favor das comunidades locais e globais que constituem a espinha dorsal da criação de valor. Mais importante ainda, os regimes baseados em direitos têm de ser desenvolvidos através da definição de normas globais. Será necessário que os governos, em especial os do Norte Global, abordem e melhorem as condições com que se deparam os trabalhadores nas cadeias de abastecimento (digitais).

Sobre as autoras:

Ritse Erumi é programadora-chefe na equipa da Ford Foundation’s Future of Work(ers). Lidera o trabalho da Ford Foundation no que respeita à promoção de economias mais justas através de novas abordagens à tecnologia e inovação, mudança narrativa e envolvimento empresarial.

Anita Gurumurthy é membro-fundador e directora executiva da IT for Change, onde lidera a investigação e a defesa da governação de dados e da IA, a regulamentação das plataformas e a narrativa sobre a justiça digital para as mulheres.

Foto:© Markus Spiske/Unsplash.com

Traduzido com permissão de “Building the Future of Work We Want”. © Stanford Social Innovation Review 2023.

Helena Oliveira

Editora Executiva

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