Com o fim da pandemia, esperava-se que os níveis elevados de burnout começassem a baixar. Mas e pelo contrário, tal não aconteceu e a exaustão profissional continua a ser um problema de grandes dimensões nas empresas. Dois investigadores que há 40 anos estudam esta condição afirmam que existe uma profunda inadequação entre os trabalhadores, o que fazem e o seu local de trabalho. E alertam para uma reorientação da atenção das organizações no que respeita a este flagelo
POR HELENA OLIVEIRA

 “Durante a maior parte do século XX, nas minas de carvão de todo o mundo, os mineiros levavam consigo canários em gaiolas para testar a qualidade do ar. A elevada sensibilidade do canário ao monóxido de carbono e a outros gases tóxicos significava que, se este começasse a balançar no seu poleiro, ou mesmo se caísse, os mineiros eram avisados com tempo suficiente para abandonarem a mina.

A prática terminou na década de 1990, mas para alargar a metáfora, digamos que a nossa esperança era manter mais pássaros a cantar nas minas. Qual seria a nossa melhor abordagem? Deveríamos tentar consertar o canário para o tornar mais forte e mais resistente – um pássaro velho e resiliente que pudesse aguentar quaisquer condições que enfrentasse? Ou deveríamos reparar a mina, eliminando os fumos tóxicos e fazendo tudo o que fosse necessário para tornar o local seguro para os canários (e os mineiros) fazerem o seu trabalho?”

O excerto acima consta do livro “The Burnout Challenge: Managing People Relationships with Their Jobs, escrito por Christina Maslach and Michael P. Leiter. Maslach, que é professora emérita de psicologia na Universidade da Califórnia-Berkeley, criou o Maslach Burnout Inventory, a primeira e principal avaliação do burnout, em 1981. Leiter, que foi professor de psicologia organizacional na Universidade Deakin da Austrália e ocupou a Cátedra de Investigação em Saúde Ocupacional na Universidade Acadia, tem vindo a investigar o burnout – e a colaborar com Maslach – há quase 40 anos. 

Continuando com a metáfora, o resultado, de acordo com os autores, é o de que se o canário “individual “estiver a sofrer visivelmente no contexto da mina, é um sinal de alerta de que esse mesmo contexto tem problemas – que afectarão não só o canário, mas todos os outros indivíduos que aí trabalham. Desta forma, poder-se-ia dizer que a relação entre o canário e a mina de carvão representa um sério desajuste entre o indivíduo (com a sua necessidade de oxigénio) e o local de trabalho (com o seu ar cheio de monóxido de carbono).

Como sabemos e em particular ao longo e pós-pandemia, o burnout começou a merecer a atenção devida no seio de muitas empresas. Obviamente que já era um problema anterior que, aliás, sempre existiu, mas apenas com a transformação radical do modo de trabalhar que surgiu ao longo da pandemia e que continua persistente, ascendeu a uma preocupação generalizada não só por parte das organizações, mas também de quem estuda os seus antecedentes e consequências. Vale a pena lembrar que, em 2019, a Organização Mundial da Saúde reconheceu o burnout, ou a exaustão profissional, como um fenómeno profissional legítimo que pode ter um impacto negativo no bem-estar dos trabalhadores no local de trabalho. Para a OMS, “o burnout é uma síndrome conceptualizada como resultante do stress crónico no local de trabalho que não foi gerida com sucesso”, caracterizando-se por três dimensões: sentimentos de esgotamento de energia ou exaustão; aumento da “distância” mental em relação ao trabalho, sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados com o mesmo e diminuição da eficácia profissional. 

Os autores do livro “The Burnout Challenge” identificaram seis áreas em que um mau ajuste – ou desajuste – entre o trabalho e a pessoa pode aumentar o risco de burnout. Este desfasamento consiste num ângulo pouco explorado, pelo menos até agora, e as seis incompatibilidades reconhecidas pelos autores incluem a sobrecarga de trabalho, a falta de controlo, as recompensas insuficientes, a ruptura com a comunidade [laboral], a ausência de justiça e os conflitos de valores.

De acordo com os autores, “qualquer uma destas seis áreas pode resultar num desajustamento cada vez mais grave entre a pessoa e o seu trabalho. Quanto mais uma ou todas estas seis condições se afastarem das aspirações dos trabalhadores ou das suas formas preferidas de trabalhar, maior será a sua vulnerabilidade ao burnout”.   

No livro em causa são detalhadas estas seis incompatibilidades – o que são, porque têm um efeito tão tóxico e como corrigi-las, tendo como objectivo melhores correspondências entre o trabalho e a pessoa. Como afirmam também Christina Maslach and Michael P. Leiter, se as incompatibilidades podem ser corrigidas ou melhoradas, então há formas de prevenir o esgotamento profissional e promover um maior envolvimento com o trabalho.

É necessária uma reorientação das empresas no que respeita ao burnout

A nível global, os estudos demonstram que apenas 20% dos trabalhadores sentem-se envolvidos com o seu trabalho. Em Portugal, estudos recentes revelam que, por motivos de saúde, os portugueses faltam ao trabalho, em média, o equivalente a 15,8 dias de trabalho e que cerca de 80% dos trabalhadores apresentam pelo menos um sintoma de burnout. 

Adicionalmente, um estudo recente realizado com cidadãos britânicos revelou que, enquanto trabalhavam, os seus níveis de infelicidade diminuíam cerca de 8% em relação à sua felicidade média em outras actividades da vida. A única coisa que associavam a uma maior infelicidade do que trabalhar era estar doente na cama.

Aparentemente, escrevem os autores, para demasiadas pessoas o trabalho é um lugar desagradável de cinismo e desespero, algo que deve ser suportado e não uma fonte de satisfação ou orgulho. A investigação feita para o livro pelos autores incluiu muitas conversas com um amplo espectro de trabalhadores sobre os seus locais de trabalho, as quais comprovam estes sentimentos.

Como também referem os autores no excerto publicado, factores sociais, políticos e económicos moldaram o ambiente de trabalho de tal forma que muitos empregos são cada vez mais stressantes. As pressões competitivas para reduzir os custos e aumentar os lucros resultaram, por exemplo, na redução de efectivos, deixando equipas mais pequenas a gerir as mesmas cargas de trabalho. Para muitos tipos de trabalho, os salários reais diminuíram e os benefícios profissionais foram reduzidos. O resultado é uma contradição fundamental nos locais de trabalho do século XXI. Por um lado, as empresas precisam cada vez mais da criatividade e do envolvimento dos seus trabalhadores. Por outro lado, as organizações introduziram mudanças que minam a capacidade das pessoas se empenharem no seu trabalho.

E existe aqui um paradoxo. Os ideais das organizações e as experiências dos empregados estão desconectados, ou mesmo em desacordo. Numa altura em que os líderes exaltam as virtudes dos locais de trabalho respeitadores e do trabalho de equipa envolvente, as queixas de incivilidade, abuso e intimidação são galopantes. “Mesmo quando consultores e gestores tocam incessantemente o tambor do compromisso, a insatisfação continua a ser uma preocupação intensa, incluindo nas profissões que oferecem as maiores possibilidades de um trabalho vibrante, dedicado e absorvente. Em todo o lado, há líderes atenciosos profundamente preocupados em ajudar os seus empregados a serem produtivos, realizados e saudáveis – e há provas de que parte do que fazem faz a diferença. Mas as provas também mostram que, com demasiada frequência, os seus esforços ficam aquém do objectivo”, concluem os autores.

E como ir mais além do que está a ser feito em empresas que se preocupam com o bem-estar psicológico das suas pessoas? De acordo com a investigação de Maslach e Leiter , este profundo desajustamento entre os trabalhadores, o que fazem e o seu local de trabalho requer uma reorientação da atenção da empresa. Em primeiro lugar e é neste âmbito que os resultados são inovadores, os autores defendem que deve haver uma mudança do que pode estar errado com a pessoa que está a sofrer de burnout para o que pode estar errado com a relação entre essa pessoa e o seu trabalho. “Pode ser mais fácil apontar o que está errado (e queixar-se disso) do que apontar o que seria correcto”, escrevem Maslach e Leiter, “mas trabalhar para gerar soluções positivas é essencial para que as coisas mudem para melhor”, defendem. 

O triunvirato do burnout

No excerto do livro em causa, os autores identificam três grandes tendências no que ao burnout dizem respeito: uma exaustão esmagadora, sentimentos de cinismo e alienação e uma sensação de ineficácia. Ou seja, a síndrome de burnout ocorre quando as pessoas experimentam crises combinadas em todas estas três dimensões – denominado pelos autores como um triunvirato – na maior parte do tempo. 

Sentem-se cronicamente exaustas; retiram-se mental, social e emocionalmente do seu trabalho e perdem a confiança na sua capacidade de terem um impacto construtivo na organização. Basicamente, estes sintomas significam que estão a sofrer um stress elevado, que sentem estar a trabalhar num ambiente de trabalho hostil e que têm uma avaliação pessimista de si próprios. “Burnout é um termo adequado, que sugere um fogo outrora ardente que foi reduzido a cinzas: essas cinzas são os sentimentos de exaustão e falta de empenho que restam depois de uma chama interna inicial de dedicação até ao momento em que a paixão se extingue”, metaforizam mais uma vez Maslach e Leiter. 

Os autores recordam também de que forma é que o conceito de burnout foi evoluindo.

Como escrevem, o conceito de resposta do ser humano ao stress em relação a acontecimentos difíceis da vida (os factores que o induzem) foi desenvolvido na década de 1950. Antes disso, o termo burnout (ou esgotamento) era mais comummente utilizado em engenharia para descrever o resultado de uma carga excessiva sobre um equipamento, a qual arruínava a sua capacidade de funcionamento (como quando um motor, uma lâmpada ou um foguetão se queimam). Talvez a utilização do termo na engenharia tenha sido a razão pela qual a sua aplicação aos locais de trabalho teve início em Silicon Valley, onde as primeiras start-ups eram designadas por “lojas de burnout”. O termo começou igualmente a ser usado enquanto gíria para definir um toxicodependente crónico que “queimou a vela nas duas pontas”.

Actualmente, e segundo a análise dos autores, o burnout resulta do crescente desajustamento entre os trabalhadores e os locais de trabalho. E sublinhando a definição acima mencionada pela OMS, o fenómeno ocupacional do burnout é o resultado de stress crónico no local de trabalho que “não foi gerido com sucesso”. Se as condições e os requisitos estabelecidos por um local de trabalho não estiverem em sintonia com as necessidades das pessoas que aí trabalham, este desajuste na relação pessoa-trabalho fará com que tanto um como outro sofram. A investigação realizada por Maslach e Leiter identificou pelo menos seis formas de desajustamento que podem existir entre um posto de trabalho e a pessoa que o ocupa:

  • Sobrecarga de trabalho
  • Falta de controlo
  • Recompensas insuficientes
  • Desintegração da comunidade
  • Ausência de equidade
  • Conflitos de valores

Como garantem os autores, um mau alinhamento em qualquer uma destas seis áreas aumenta o risco de burnout. Por exemplo, consideremos a sobrecarga de trabalho. Se as exigências do trabalho não puderem ser satisfeitas dentro do dia normal de trabalho, os empregados têm de trabalhar horas extra, deixando de ter tempo para  outras partes importantes da sua vida (como os interesses pessoais, a família e os amigos e o sono). Os autores sublinham também que estas incompatibilidades têm frequentemente origem em pressupostos errados sobre o que motiva os trabalhadores, o que os recompensa e o que os desencoraja. E quanto mais uma ou todas estas seis condições se afastarem das aspirações dos trabalhadores ou das suas formas preferidas de trabalhar, mais os trabalhadores se tornam vulneráveis ao esgotamento. Importante também é não esquecer as relações estabelecidas entre o individuo e o contexto. 

Voltando ao triunvirato, e às dimensões relativas à relação “trabalhador-contexto laboral”, os autores explicam ainda o relacionamento existente entre elas: a dimensão da capacidade é regida pela carga de trabalho e pelo controlo; a dimensão social é conduzida pela recompensa e pela comunidade [laboral] e a dimensão moral assenta na justiça e nos valores. Quando qualquer uma destas dimensões se rompe, o burnout irrompe. 

A parte II do livro é dedicada a explicar o que pode ser feito para reparar cada uma das seis áreas (carga de trabalho, controlo, recompensa, comunidade, justiça e valores) em que ocorrem desajustamentos entre a pessoa e o trabalho. 

E como afirmam Maslach e Leiter, é preciso não esquecer o seguinte: Tal como o canário, uma pessoa que sofre de burnout pode ser considerada um prenúncio, um sensor que emite um alerta precoce de que algo está a correr mal de uma forma mais geral”.

“E para resolver os problemas do burnout, temos de prestar atenção à angústia do canário e investigar, tendo em mente tanto a mina como o canário”.

Editora Executiva