A economia de mercado é uma construção social e histórica extremamente complexa assente no dinheiro. É esta ferramenta que facilita as transacções, permite os intercâmbios nos mercados e significa valor nas mãos dos cidadãos para o uso que bem entenderem. Tornou-se também num símbolo de desigualdade, mesmo que não a tenha originado
POR PEDRO COTRIM

No mundo mercantilista do século XVI ao fim do XVIII, a riqueza era concreta: o dinheiro era ouro, prata ou outro metal que tivesse as características particulares de ser apreciado como belo e nobre, de ser raro e resistente à passagem do tempo. As pessoas tinham «alguma coisa» quando tinham dinheiro. Se houvesse infortúnio do estado ou da casa real que tivesse cunhado o dinheiro, seria sempre possível reutilizar o ouro ou a prata da moeda. Quando o preço facial ultrapassou o valor do metal, descobriu-se uma espécie de teoria quantitativa do dinheiro: se a quantidade de dinheiro em circulação aumentasse, os preços subiriam. A situação foi recebida com agrado, dinamizando o comércio e reduzindo as taxas de juros, consequências que os comerciantes e a realeza, grandes consumidores de capital, muito apreciaram. A moeda não era o elemento neutro da economia.

A indexação do valor ao valor foi desaparecendo gradualmente e em Agosto de 1971 Richard Nixon deu-lhe a machadada final, renunciando oficialmente à conversão do dólar em ouro: o fim da ideia de qualquer dólar apresentado à Reserva Federal poder ser trocado por ouro. Encerrou-se assim o lento processo de desmaterialização do dinheiro. O rei ficou nu e em todo o mundo o dinheiro foi reduzido à sua essência: o poder de compra que representa, e por esta razão a gestão do dinheiro tem assumido importância crescente. A sua tutela é confiada a instituições públicas especializadas: os bancos centrais.

Para o dinheiro funcionar, o seu valor tem de ser reconhecido por todos. Ser proprietário de uma mesa, de um quilo de feijão, de um carro ou de uma casa tem valia própria: torna possível a alimentação, dispor de um sítio para viver ou para produzir bens ou serviços. Um maço de notas ou um código num computador representam apenas poder aquisitivo potencial, sendo que o dinheiro apenas pode funcionar na medida em que se acreditar globalmente que o pedaço de papel ou o grupo bits num disco permitirão adquirir os bens e os serviços necessários.

A confiança no poder de aquisição tem uma relação próxima com a quantidade de dinheiro que circula na economia; muito dinheiro acessível corrói a confiança no seu valor, conduzindo à inflação. Se não for travada, esta perda de poder aquisitivo corre o risco de afectar o cenário macroeconómico e bloquear as transacções: os produtores preferem manter consigo o seu produto porque deixaram de ter confiança no valor do dinheiro que podem conseguir na venda.

O dinheiro passa a desempenhar um papel passivo que apenas espelha a actividade económica. Não tem existência real própria e a teoria económica clássica foi capaz de se desenvolver ignorando as questões monetárias. O excesso de dinheiro e a inflação causada pela situação não é a única disfunção possível. Num mundo onde a quantidade de dinheiro posta em circulação depende de uma infinidade de actores, as flutuações na criação de dinheiro podem conduzir à recessão e à deflação. É responsabilidade do Estado evitar que haja muito dinheiro em circulação, mas também que haja muito pouco.

Na teoria, a situação é simples: basta garantir que a oferta monetária, o dinheiro que os actores económicos podem despender nas suas transacções, aumente constantemente pela quantidade apenas o suficiente para que a actividade económica se desenvolva de forma equilibrada, sem inflação. Contudo, há obstáculos no caminho.

A criação de dinheiro é um processo descentralizado que depende essencialmente da atitude dos bancos comerciais em relação aos seus clientes privados e a outros participantes no mercado financeiro. É um processo complexo. Os problemas começam antes de chegarem ao estágio das ferramentas a serem implementadas: qual é, na realidade, o volume a ser tido em conta para acompanhar a quantidade de dinheiro em circulação na economia? Moedas, notas e depósitos em contas correntes estão entre eles e estão imediatamente acessíveis aos actores económicos que os detêm. São a liquidez em estado puro.

Embora o conceito de oferta monetária seja interessante, a sua aferição apresenta problemas significativos e crescentes. Os contornos tornaram-se mais instáveis e flutuantes a ponto de colocar em questão a sua natureza operacional. Acrescente-se que para determinar a evolução ideal da oferta monetária não basta determinar com rigor os seus contornos: é igualmente necessário estabelecer uma relação entre o seu valor agregado e o volume total de transacções que deve permitir na economia. Os bancos centrais fazem os ajustes das taxas de juro e da indexação para a definição de sua política monetária.

Não existe um indicador monetário reconhecido e indiscutível que possa justificar uma política monetária. Um modelo pragmático, ao estilo americano, orientado para o crescimento e para a redução do desemprego, enquanto garante a limitação da inflação através da monitorização dos desenvolvimentos salariais e do uso de capacidades produtivas, não tem, apesar das aparências, fundamentos menos científicos do que as políticas baseadas em objectivos monetários quantificados e precisos. A política seguida pelo BCE nos últimos anos foi adaptada a uma sociedade muito dependente da banca e onde a evolução dos juros foi regulada centralmente. Talvez se tenha tornado muito rígida, desnecessariamente desfavorável ao crescimento e ao emprego, numa sociedade onde os mercados financeiros tomaram um lugar crescente e a regulação dos juros se tornou mais ténue. Que indicadores precisarão de ser monitorizados agora para orientar a política monetária? Talvez seja a pergunta do milhão de quilos de ouro indexado ao ouro.


Bibliografia

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