Jan Vandemoortele foi um dos “arquitectos” que, em 2001, definiu aqueles que viriam a ser conhecidos como os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. A menos de três anos do prazo para o seu cumprimento, o actual investigador traça, em entrevista, os progressos alcançados por este compromisso global, ao mesmo tempo que tece duras críticas à forma como o processo tem vindo a ser conduzido pelas elites mundiais. “A agenda pós-2015 deverá seguir uma abordagem muito mais inclusiva”, defende.
POR HELENA OLIVEIRA

© DR

“De co-arquitecto a amigo crítico dos ODM”. Foi assim que Jan Vandemoortele se apresentou na entrevista que concedeu ao VER. O antigo director do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e que viria a ser, em conjunto com o conselheiro especial de Kofi Annan, o autor dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, tem sido uma voz crítica no que respeita, em particular, à concepção errada que ainda se tem sobre o estabelecimento e alcance destes objectivos. Vandemoortele acusa ainda aqueles que clamam por uma estratégia geral para os ODM, argumentando que o que se pretende é “despolitizar o processo de desenvolvimento, reduzindo-o a uma série de intervenções estandardizadas de natureza técnica”. Actualmente investigador independente, escritor e orador convidado em conferências um pouco por todo o mundo, Vandemoortele alerta ainda para o facto de que o processo que levou à criação dos ODM não deverá ser repetido. “A formulação da agenda pós-2015 deverá seguir uma abordagem muito mais inclusiva”, defende.

Como se envolveu na “arquitectura” dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM)?
Fui responsável pelo Grupo de Pobreza pertencente ao Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas desde Abril de 2001. E essa foi a altura em que a Declaração do Milénio começava a perder a atenção devida no debate sobre o desenvolvimento. Ao longo de vários meses, o documento foi citado em inúmeros discursos, relatórios e artigos. Mas, e passado algum tempo, a atenção começou a desvanecer-se. E foi nessa altura que Michael Doyle – o conselheiro especial do secretário-geral da ONU [Koffi Annan] – e eu tivemos a ideia de colocar os objetivos selecionados na Declaração do Milénio numa categoria contínua para os resgatar do esquecimento. E, desta forma, passaram a ser conhecidos como os objectivos de desenvolvimento do milénio. Assumimos, conjuntamente, a presidência de um grupo de especialistas provenientes de todo o sistema das Nações Unidas – incluindo o Banco Mundial e o FMI, bem como a OCDE. A tarefa era extrair os principais objetivos da Declaração e traduzi-los num processo contínuo. E, na medida em que o grupo acabou por incluir pessoas pertencentes às principais agências, departamentos, fundos e programas das Nações Unidas, foram necessários seis meses até conseguirmos definir adequadamente os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio.

Escreveu recentemente que os ODM acabaram por ter significados diferentes para grupos de pessoas distintos e que existem concepções erróneas sobre os mesmos. O que queria dizer com esta afirmação?
Os propósitos subjacentes à criação dos ODM tinham dois objetivos por excelência: (i) salvar do esquecimento alguns dos principais compromissos inscritos na Declaração do Milénio e (ii) alargar o discurso do desenvolvimento para além do enfoque restrito no desenvolvimento económico. Dado o seu sucesso, foram muitos os actores que tentaram apanhar uma boleia gratuita neste comboio dos ODM.

Ou seja, tentaram apropriar-se, indevidamente, dos ODM, para seu próprio proveito. Ao se repetir continuamente que milhões de pessoas estavam a ser retiradas da pobreza, por exemplo, assegurou-se que a agenda dos ODM não perturbava a narrativa convencional e que não iria prejudicar a visão do desenvolvimento centrada nas métricas dos fundos e das ajudas. Os esforços foram bastante bem-sucedidos, na medida em que o debate continua a centrar-se, de forma muito estreita, no crescimento económico e no rendimento – ou seja, na pobreza. E este é um dos grandes paradoxos dos nossos tempos. A maioria dos observadores concorda que a pobreza é multidimensional, mas que a sua quantificação é unidimensional ou seja, avaliada de acordo com o dinheiro disponível. Mas os ODM não consideram a relação pobreza-rendimento como a pedra basilar do desenvolvimento, do bem-estar humano ou dos direitos humanos. Antes pelo contrário.

.
.
Jan Vandemoortele
. .
.

Ninguém acredita verdadeiramente que os objectivos serão cumpridos até 2015. Na sua opinião, o que correu bem e mal ao longo da última década ou, utilizando a sua própria expressão, como podemos definir “o bom, o mau e o feio”?
É, na verdade, muito triste o facto de o mundo não conseguir alcançar os ODM. E isso também significa que temos vindo a fazer menos progressos desde os anos 1990 comparativamente ao que se passou nas décadas de 1970 e 1980, apesar de todos os denominados méritos que era suposto a globalização gerar. Mas, para o melhor e para o pior, os ODM mantiveram um poder significativo, estimulando o desenvolvimento humano em todo o mundo. Existem muitas críticas que se podem tecer relativamente aos mesmos, mas a indiferença não é uma delas. Os ODM mobilizaram inúmeros stakeholders e galvanizaram líderes de todo o mundo como nunca anteriormente tinha acontecido. Um inquérito recente realizado junto de organizações da sociedade civil nos países em desenvolvimento demonstra que, apesar das muitas questões que todos levantam relativamente aos ODM, a maioria deles pretende ter um plano similar para o desenvolvimento depois de 2015.

Os ODM estimularam igualmente estatísticas melhores no que respeita ao bem-estar humano. E contribuíram também para um trabalho mais eficaz entre os vários sectores. As pessoas que trabalham num determinado sector (por exemplo, no da saúde) têm agora um conhecimento mais apropriado do impacto do trabalho realizado em outros sectores, como o da educação, da água e das condições sanitárias, da nutrição, entre outros.

O mau, como anteriormente mencionado, foi o facto de ter havido uma má interpretação no sentido de que resultados similares poderiam ser atingidos igualmente por todos os países, caso fosse seguida uma mesma abordagem centrada no crescimento, na governação e nos fundos [da ajuda internacional] – (‘3G’ – growth, governance e grants).

A narrativa convencional propõe a seguinte fórmula: ‘crescimento económico rápido + governo democrático – mais/melhor ajuda = ODM’. Mas esta narrativa simplista está longe de ser suficiente para se realizarem as transformações fundamentais e necessárias para se alcançar os ODM, que transcendem “tecno-consertos”. O que estes pretendem é conferir uma prioridade mais elevada às pessoas mais prejudicadas e vulneráveis da sociedade, ou seja, às minorias étnicas, às mulheres iletradas, às crianças desfavorecidas, aos que vivem em bairros de lata, aos agricultores de subsistência ou aos agregados que se situam na base da pirâmide. Estas transformações nunca irão resultar a partir de uma aplicação normalizada de receitas que, muitas vezes, estão na origem destas próprias discriminações. Os ODM foram destorcidos e mal interpretados como objetivos que poderiam ser atingidos através de intervenções técnicas financiadas pela ajuda estrangeira, que visavam aumentar os investimentos e replicar lições aprendidas noutros lados. Aqueles que clamam por uma estratégia geral para os ODM pretendem despolitizar o processo de desenvolvimento, reduzindo-o a uma série de intervenções estandardizadas de natureza técnica.

E o que aprendeu o mundo desde 2000?
Aprendemos que os objectivos globais podem ajudar a uma concentração de esforços no desenvolvimento humano e nos direitos humanos. Que estimularam esforços para melhorar o bem-estar humano através do trabalho inter-sectorial e multidisciplinar. Uma condição chave é a de que os objectivos globais têm de ser encarados como “servos”, pois são maus “senhores”. Apesar de todos os erros e imperfeições, os ODM serviram bem a causa do desenvolvimento humano, incluindo todos os aspectos que não são adequadamente tidos em conta. Tal exige, contudo, que os objectivos sejam vistos como “servos” em todas as dimensões do desenvolvimento humano, incluindo aquelas que foram omitidas. O sucesso de ojectivos globais – como os ODM – está relacionado com a sua clareza, concisão e mensurabilidade. Os objectivos que realmente imprimiram uma verdadeira diferença no passado partilham as seguintes características: formulados com empenho, poucos em número, claros no que respeita à finalidade, ambiciosos mas realizáveis, e mensuráveis. E será de muita pouca utilidade formular uma agenda pós-2015 que seja tecnicamente fundamentada e concepcionalmente organizada, mas que ignore o público em geral e a maioria dos stakeholders.

É frequente ouvirmos dizer que o país X não irá atingir os ODM. De acordo com as suas próprias palavras, e enquanto um dos arquitectos deste “compromisso”, os ODM acabaram por se centrar nas métricas relacionadas com as ajudas internacionais e com os financiamentos e em frases generalistas desprovidas de verdadeiro conteúdo. Mas se não existirem objectivos que sejam comuns, concretos e comparáveis, como é que sabemos que tipo de sucesso foi já alcançado?
Uma das interpretações erróneas dos ODM é a de que os objectivos globais não podem ser confundidos com as metas nacionais. E, mais uma vez e infelizmente, os ODM têm sido mal interpretados quando são considerados como objectivos que precisam de ser alcançados por cada um e por todos os países. Mas é incorreto afirmar que o país X está fora da corrida para atingir as suas metas porque os objectivos globais estão estabelecidos para o mundo enquanto um todo. Ou seja, eles não foram estabelecidos com base nas tendências passadas de um determinado país, mas a partir das tendências observadas a um nível global. A Cimeira Mundial para as Crianças, que teve lugar em 1990, foi muito clara no que respeita à distinção entre os objectivos globais e nacionais. Foi declarado que “estes objectivos terão, em primeiro lugar, de ser adaptados às realidades específicas de cada país (…).Esta adaptação é de importância extrema para assegurar a sua validação técnica, a sua viabilidade logística, a sua acessibilidade financeira e para afiançar o compromisso político e um amplo apoio público para o seu sucesso”.

Mas este bom senso parece ter-se perdido entretanto. Uma aritmética simples implica que se todos os países fossem obrigados a atingir estes objectivos, então o mundo assistiria a um “excesso” dos objectivos estabelecidos – pois muitos países os irão ultrapassar. O enquadramento pós-2015 terá de ter uma cautela explícita no que respeita a esta má interpretação. Os ODM são objectivos colectivos; e não podem nunca ser equiparados às metas nacionais.

Escreveu igualmente que não é África que está a perder a corrida dos objectivos, mas que somos nós que estamos a perder a perspectiva. Que perspectiva é essa que não está a ser compreendida pelo mundo?
A pretensão de que a performance de África é pior comparativamente às demais regiões é factualmente incorreta. Na verdade e ao invés, a Africa está a contribuir mais do que a quota-parte pretendida para o progresso global. Mas ao se utilizar a fórmula “que serve para todos” para se medir a performance a um nível nacional ou regional, estamos a desvirtuar os progressos respeitáveis ocorridos em África e a considerá-los como um fracasso. O coro de vozes que afirma que África não vai atingir os objectivos é incorrecto e injusto. A África não irá, como é óbvio, atingir os objectivos, simplesmente devido às suas condições iniciais.

Todavia, os factos reais dão-nos um quadro muito diferente, nomeadamente aquele que nos diz que este continente tem feito progressos consideráveis. Apesar de a região não atingir os ODM, está provado que contribuiu de forma significativa para o progresso global da maioria dos objectivos estabelecidos. Mas, de forma sistemática, continua a ser sublinhado o facto de não conseguir atingir os objectivos propostos até 2015. As suas condições prévias, em 1990, eram demasiado negativas, sendo que os ODM globais colocaram uma fasquia demasiado alta e impossível de atingir. Adicionalmente, o fracasso em interpretar os ODM como objectivos colectivos faz esquecer essas condições iniciais.

A declaração repetitiva de que “África não vai atingir os objectivos” acaba por omitir o ponto importante de que a África não vai, não pode e não deve alcançar os ODM para o mundo poder atingir os objectivos em 2015. Os ODM não foram estabelecidos especificamente para África, mas para o mundo enquanto um todo. Em qualquer que seja o desporto, os homens não jogam contra as mulheres. E, nos ODM, de acordo com as interpretações convencionais e que ignoram as suas condições de partida, torna-se óbvio que esta visão é absurda, no sentido em que cria uma competição muito injusta.

.
.
© DR
.

De acordo com a sua experiência, o que tem presenciado à medida que os países caminham para atingir estes objectivos?
Mais de 60 países integraram os objectivos globais nos seus planos de desenvolvimento nacionais, nas suas estratégias de redução da pobreza ou em outras estratégias nacionais. Muitos países adaptaram-nos ao contexto nacional. Os ODM influenciaram o estabelecimento de prioridades locais, definiram os orçamentos nacionais e sub-nacionais e conduziram a uma participação comunitária mais significativa. Infelizmente, as análises globais negligenciaram estas dimensões.

Mas o impacto dos ODM foi muito mais notório do que o que é expresso em meras mudanças nos indicadores nacionais. Um facto lamentável consiste no aumento das disparidades presente em todas as dimensões do bem-estar humano na maioria dos países. As crescentes desigualdades existentes entre os países constituem a principal razão para que o mundo não atinja os objectivos propostos para 2015. E a agenda pós-2015 tem de integrar esta dimensão de equidade. O espírito dos ODM não é só o de gerar uma velocidade suficiente, mas também o de promover um padrão equitativo de desenvolvimento, em linha com o princípio dos direitos humanos da não-discriminação.

Um padrão equitativo e inclusivo do progresso é preferível não só na perpectiva dos direitos humanos, como também do ponto de vista da eficácia. Assim, a preocupação em torno da equidade não pode ser ignorada como uma engenharia social ou como a prática da política da inveja. Apesar das desigualdades estarem a receber uma atenção crescente, o ponto de viragem ainda não foi alcançado. O trabalho árduo de se integrar a equidade nas reformas políticas e nas intervenções operacionais ainda está por fazer. Exemplos de países que levaram a cabo progressos respeitáveis no sentido dos ODM e que foram capazes de transformar esse progresso num processo muito mais equitativo incluem o Bangladesh, o Brasil e o Malawi. Esperemos que o seu exemplo possa contagiar outros países a replicarem este feito louvável.

Num recente paper que publicou, afirmou que o processo através do qual os ODM foram criados não deverá ser repetido quando se formular a agenda pós-2015. O que pensa que irá acontecer a seguir a 2015 e o que deverá o mundo fazer de diferente na altura?
O processo que levou à criação dos ODM não deverá ser repetido. A formulação da agenda pós-2015 deverá seguir uma abordagem muito mais inclusiva. Uma agenda pós-2015 que advenha de um processo participativo, inclusivo e da base para o topo será muito diferente daquele que é definido por um grupo de tecnocratas e académicos. A premissa é a de que o primeiro é preferível, apesar de muito mais desafiante. Antes de se decidir a agenda pós-ODM, os líderes mundiais só terão a beneficiar se escutarem as opiniões de um conjunto mais amplo de stakeholders. Algo  que não é habitual.

As vozes das pessoas têm de ser ouvidas e não podemos voltar a cair no erro de repetir um processo demasiado tecnocrata e centrado no financiamento. Até à data, existem poucos exemplos de processos internacionais que envolvam cidadãos e demais stakeholders para influenciar tomadas de decisão globais. Mas também já assistimos a grandes avanços nos métodos participativos, tanto a nível digital como face a face. As novas tecnologias e abordagens apresentam enormes oportunidades para um planeamento inclusivo pós-2015, anteriormente inimagináveis. Reuniões camarárias nas cidades, assembleias de cidadãos, os media sociais, os inquéritos globais, os focus groups e as redes eletrónicas podem aumentar sobremaneira o grau de participação. As assembleias de cidadãos, em particular, oferecem caminhos promissores para integrar a inclusão no centro das discussões em torno das prioridades do desenvolvimento global. E já existem em inúmeros países, como por exemplo na Austrália, Bélgica, Canadá, Holanda, Nova Zelândia, Filipinas, no Cone Sul, na região de Sahel e na Venezuela. E podem agir potencialmente como um antídoto contra um mecanismo de responsabilização que está enviesado a favor dos segmentos mais bem posicionados da sociedade, referido muitas vezes como “a captura das elites”.

E as questões que se levantam são: como equilibrar o papel dos especialistas e das demais pessoas em causa? Como equilibrar a voz da elite e a dos cidadãos comuns? Como equilibrar a influência dos países em desenvolvimento e dos países desenvolvidos? De que forma é que o poder de cada um deles deve ser controlado? Parte da resposta reside num processo o mais alargado possível, que permita capturar as visões do maior número possível de stakeholders. Especialmente nos países em desenvolvimento.

Editora Executiva