Estarão as instituições do Velho Continente a alterar, sem hipóteses de retorno, a natureza do modelo social europeu? Esta é uma das questões que dá o mote a vários papers, estudos e relatórios que têm vindo a ser publicados acerca do impacto social da crise económica na Europa. Com o empobrecimento da classe média, com a emigração em massa dos jovens, com o colapso das redes formais de protecção social, as pessoas já não estão a lutar contra a pobreza, mas a lutar pela sua própria sobrevivência
POR HELENA OLIVEIRA

Com base em relatórios divulgados pela Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN, na sigla em inglês) e da própria Comissão Europeia, o VER resume os principais custos sociais da crise para a Europa que, longe de estarem contabilizados, começam agora a ser visíveis. Adicionalmente, se os governos e as próprias instituições europeias muito falam sobre a importância de se proteger os mais vulneráveis do impacto da actual recessão, existem muito poucos (ou nenhuns) sinais de que esta preocupação esteja a ser traduzida em medidas ou políticas orçamentais adequadas.

Apesar de terem sido publicados pelo menos dois grandes relatórios sobre os potenciais impactos sociais da crise nos estados-membros da UE, em 2009 e em 2011, apenas recentemente é que a Comissão Europeia e o Comité para a Protecção Social, responsável pela ligação entre os ministros dos assuntos sociais da Europa, começou a monitorizar e  a reportar os efeitos em causa com maior regularidade. Todavia, o próprio Comité já fez saber, em comunicado, que a maioria dos estados-membros da EU “não está em condições de providenciar uma avaliação geral do impacto da crise”, para além de ter admitido que “as estatísticas ficam muito aquém da realidade em constante mutação”, ou seja, não traduzem os verdadeiros males que estão a afectar milhões de cidadãos europeus.

O intransponível fosso da desigualdade
O aumento da desigualdade foi já reconhecido como uma das principais consequências da crise. E, a pergunta que se coloca é se a União Europeia poderá suportar custos económicos e sociais devastadores e de longo prazo, provenientes da consolidação fiscal e das medidas de austeridade, dado que estas só terão tendência para gerar um aumento ainda mais significativo da desigualdade em termos de rendimento.

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Os media têm-se concentrado, ultimamente e de forma significativa, nos denominados “novos pobres”. Todavia e sendo inquestionável que são muitas as pessoas que acreditavam estar seguras e que estão agora a cair na pobreza, são muitos mais os que estão a ser severamente afectados pela crise e que provêm dos grupos mais vulneráveis – em particular, pessoas que já se encontravam em situações de pobreza antes de a crise deflagrar, em conjunto com os jovens (espera-se que, em 2013, 75 milhões de jovens europeus não tenham emprego), com as pessoas com poucos estudos, os migrantes, as minorias étnicas, os mais velhos e os agregados monoparentais.

Os rendimentos dos mais pobres foram ainda mais encolhidos, devido a um conjunto de circunstâncias, bem conhecidas dos portugueses, como o aumento da carga fiscal, as reduções de salários, os cortes nas pensões e demais benefícios sociais. Adicionalmente, a erosão no poder de compra está igualmente a ser encarada como uma enorme ameaça. Em muitos países da Europa, o gás, a electricidade e a água, em conjunto com as rendas de casa e os custos com a alimentação, estão a subir e, em países como a Hungria e outros pertencentes à Europa central e de leste, estes impactos estão a ser devastadores. Como refere o relatório da EAPN e relativamente a estes países em concreto, “a maioria das pessoas que vive agora em estado de pobreza não se pode dar ao luxo de usar o gás para aquecimento, retirando madeira das florestas para se aquecer”. Por outro lado, a tendência para a subida de preços dos bens essenciais parece ter começado antes do eclodir da crise e pode também ter contribuído para o endividamento excessivo dos cidadãos e para a própria crise.

A rede europeia Eurochild alertou também recentemente para uma potencial “geração perdida”nas famílias desproporcionalmente afectadas pela crise. A rede alerta para os efeitos físicos e psicológicos nas crianças, agravados pelos cortes na educação, nos cuidados de saúde e nos subsídios para as ONG. As taxas de desemprego entre os jovens estão acima dos 20% em muitos países, atingindo proporções devastadores na Estónia, em Espanha e em Portugal (35,9%, de acordo com dados de Agosto). Os trabalhadores migrantes estão em risco particular num número alargado de países, com a agravante de poderem vir a perder o seu visto de residência face à iminência do desemprego. Também os grupos étnicos mais vulneráveis e, em especial, os cidadãos de etnia cigana, estão a ser crescentemente tratados como bodes expiatórios, nomeadamente na Eslováquia, na República Checa e em França.

Muitos dos piores impactos sociais da crise não são ainda suficientemente aparentes, mas parecem não existir dúvidas de que as suas implicações serão sérias e de longo prazo. Os mesmos incluem a pobreza envergonhada, o aumento do desemprego, a erosão das condições de trabalho, as tensões familiares, o agravamento das situações de stress, de violência e das doenças crónicas, a perda de confiança e de aspirações por parte das crianças e dos jovens, bem como o medo de perder a casa, o aumento do endividamento e até potenciais situações de sem-abrigo. Muitas das redes pertencentes à EAPN referem, no interior dos países onde operam, índices preocupantes de carências várias, empobrecimento, aumento da violência doméstica e urbana. Ou, em suma, estamos a viver numa era onde uma maior competitividade por recursos mais escassos, sobretudo entre os mais pobres, poderá levar a um aumento preocupante dos níveis de intolerância, racismo e xenofobia.

Desemprego: quem sai não volta a entrar
O desemprego, sobretudo o que afecta os jovens, constitui indubitavelmente a face mais visível da crise. O desemprego entre os homens foi o que emergiu primeiro, mas as mulheres acabam por ser mais afectadas pela eliminação de empregos no sector social e no sector de serviços que está a abrandar na maioria das economias europeias. Os serviços são responsáveis por cerca de 70% a 80% do emprego, sendo que aqueles que salários menores pagam são dominados pelas mulheres. E, se existe uma concordância entre as várias redes anti-pobreza da Europa o principal problema é que quem perde o emprego, dificilmente o consegue recuperar.

Os estados-membros da EU permanecem aparentemente comprometidos com a ideia da “inclusão activa” enquanto estratégia integrada para abordar a exclusão social através da garantia de apoios aos rendimentos, acesso a empregos decentes e a serviços de qualidade. Mas e na prática, o resultado líquido deste compromisso não tem sido o de ajudar as pessoas a moverem-se da assistência social para o emprego mas, e como é visível, para a pobreza.

A avaliação do impacto social da crise feita pelo Comité da Protecção Social da Comissão Europeia demonstrou que as medidas para reduzir a despesa pública atacaram, antes de mais, os sistemas de protecção e inclusão sociais: diminuição dos períodos de subsídios de desemprego, benefícios reduzidos, redução de benefícios para adultos e crianças com incapacidade, abolição de subsídios de maternidade e de acção social escolar, cortes nos subsídios de doença, abonos de família, em conjunto com cortes no pessoal com lugar nos serviços sociais. E, apesar de nem todos os países estarem a implementar todas estas medidas, a realidade é que cada uma delas resulta num impacto gravemente severo nos que mais vulneráveis são.

A exclusão da segurança social por parte dos desempregados de longa duração e de outros sem historial de emprego é, há muito, um dos grandes problemas que a Europa enfrenta. Todavia e actualmente, e em nome da “modernização da protecção social”, as instituições europeias estão a encorajar a restrição da elegibilidade para os benefícios sociais mesmo em países ricos, como a Suécia, a Dinamarca ou a Holanda, possuidores de sistemas sociais relativamente generosos. Apesar de tudo, existem algumas excepções a assinalar: a Estónia, por exemplo, aumentou os seus benefícios sociais desde Janeiro de 2011 e o seu governo tem uma estratégia aparentemente adequada para investir no emprego. Existem igualmente alguns movimentos positivos no que respeita à educação e formação para desempregados na República Checa, na Suécia e na Finlândia. Todavia, os países que estão a apostar em formação o suficiente para fazer a diferença são mesmo uma minoria.

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2010: o ano em que a austeridade entrou na moda
Foi em 2010 que a tendência para os governos optarem por programas de austeridade centrados nos cortes dos benefícios e serviços se começou a formar. Dois anos passados e os resultados estão à vista. E sem contar que tenham sido só alguns países a adicionarem a estas medidas uma maior carga fiscal, como é o caso de Portugal.

Mas é nos cortes de serviços que, a nível europeu, mais se está a sentir o impacto. As listas de espera nos serviços de saúde aumentaram consideravelmente, em particular, para as operações. Nos países da Europa central e de leste, os co-pagamentos nos cuidados de saúde estão agora mais disseminados, como resposta ao aceleramento do processo iniciado para a “transição” destes países para uma economia de mercado. Em alguns países da Europa ocidental, os cidadãos estão também a ser obrigados a pagar uma proporção dos custos dos tratamentos e operações, com o aumento das taxas moderadoras. E, mais uma vez, a rede EAPN alerta para o facto de estas medidas de contenção estarem a atingir fortemente os que têm rendimentos mais baixos.

Também em alguns países (e, mais uma vez, Portugal incluído), o acesso subsidiado aos serviços de transportes públicos foi revisto ou mesmo abolido, afectando em particular os estudantes e os seniores.

Na realidade, o recuo do “Estado Providência” na Europa tem vindo a ser defendido muito antes da crise de 2008 e, na verdade, são várias as vozes que afirmam que a crise forneceu a cobertura perfeita para a aceleração de estratégias impopulares que, mais cedo ou mais tarde, iriam ser encetadas.

A perda do contrato social implícito
Quando a crise deflagrou, existia alguma boa vontade, por parte de alguns estados-membros, para aumentar os serviços de protecção social de forma a prevenir os efeitos negativos da mesma. Boa vontade esta que foi progressivamente enfraquecida quando a prioridade passou a ser a redução dos défices públicos. Inicialmente, em 2008, a resposta da União Europeia incluía um compromisso no sentido de uma abordagem anti-cíclica, com o “aliviar dos custos humanos” através da manutenção dos empregos e do apoio aos mais vulneráveis via serviços de protecção social fortalecidos. Mas e à medida que a instabilidade financeira aumentou, em conjunto com as dívidas públicas e os défices, a prioridade foi a de salvar o euro a todo o custo e reforçar um plano de recuperação neoliberal com enfoque numa interpretação muito mais estreita da competitividade e da consolidação fiscal.

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Esta viragem acabou por reforçar o Pacto de Crescimento e Estabilidade que exigia aos membros da zona euro a redução célere dos seus défices abaixo dos 3% – mas com particular enfoque nos cortes da despesa pública e não no aumento de impostos. A competitividade na Europa deveria ser accionada por uma descida nos salários, pela flexibilização no mercado de trabalho e pelo aumento da idade de reforma. Para os países a necessitarem de resgates financeiros, este padrão de medidas – que é devastador para os direitos sociais – serviu de modelo para os restantes estados-membros. E está a tomar proporções cada vez mais gigantescas,  sob o olhar de milhões de europeus, apesar do lançamento, em 2010, de uma nova política global, a Estratégia para a Europa 2020, que pretende (ou pretendia) promover “um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo” e que estabeleceu, pela primeira vez, o objectivo de reduzir a pobreza e a exclusão social em pelo menos 20% até 2020.

Como parece ser visível, não existem evidências de uma abordagem integrada no que respeita à política declarada da UE para uma “inclusão activa” das pessoas excluídas do emprego. Na prática, esta está a ser interpretada como um condicionalismo endurecido para a concessão de benefícios, enquanto os serviços de apoio e os empregos necessários para tornarem a activação do plano uma realidade serem inexistentes. E, em toda a Europa, os cortes nos rendimentos, na saúde e em outros serviços de apoio significam uma atitude inaceitável para os mais pobres e vulneráveis. O que nos obriga a questionar o contrato social implícito e o modelo social europeu que assegurou a estabilidade e um certo nível de protecção a estes grupos mais vulneráveis desde os primeiros passos do movimento para a integração da Europa. Adicionalmente, abala fortemente a fé dos cidadãos relativamente à sua visão de uma União Europeia que deveria possuir um projecto democrático e social e não somente uma união económica como a sua principal finalidade.

A austeridade que acabou por ser a resposta política dominante à crise não se afigura como o caminho para se atingir o objectivo desejável para um crescimento de qualidade e sustentável na Europa, mas sim como o atalho mais curto para o aumento do risco de pobreza e para o empobrecimento material, e também psicológico, dos seus cidadãos.

Editora Executiva