A exaustão pandémica. A banalização do sofrimento. A falta da expressão de solidariedade. A desistência. Em algumas pessoas, o medo que bloqueia ou paralisa. A repetição dos números cansa? Já não interessa? Banaliza-se? Centenas de mortos por dia, repetidos no telejornal enquanto jantamos? Este parece-me ser o maior problema de saúde mental que vivemos
POR MARGARIDA GONÇALVES NETO

Não, nunca estivemos assim. Tão mal assim.

A pandemia tomou conta das nossas vidas e dos nossos quotidianos.

Roubou-nos a espontaneidade e a proximidade dos afectos. Interferiu nas relações sociais e de trabalho. Afastou-nos dos idosos. Ao querer protegê-los, afastámo-los de nós, e eles ficaram mais sós.

Em março, a angústia e o medo tomaram conta das ruas. De forma espontânea, os pais deixaram de levar os filhos à escola e foram confinando por si mesmos. As autoridades reconheceram que era essa a expectativa e a necessidade, e tornaram o confinamento obrigatório.

Naquela altura, o medo conduziu os comportamentos. Algo que só conhecíamos dos livros de História ou das conversas dos nossos avós, ocupava agora o nosso quotidiano e invadia a nossa maneira de viver. O fantasma da gripe de 1918 tornou-se muito real.

Desse tempo, lembro a ansiedade vivida por todos. Alguma irracionalidade dos medos. Os gestos calculados e repetidos relativos às mãos, roupa, compras de supermercado. A percepção do medo é muito individual, prende-se com aprendizagens da infância, com estruturas de personalidade e com resiliência. Algumas pessoas foram tomadas por alguma irracionalidade e ficaram reféns de pensamentos e comportamentos obsessivos. O aumento da ansiedade gerou mais ataques de pânico e alguns medicamentos sedativos esgotaram-se no mercado.

Mas a ansiedade e o medo que ajudaram a cumprir regras desencadearam igualmente um movimento social de grande generosidade individual e colectiva, uma forma de sublimar o medo.

Lembro as palmas aos profissionais de saúde, a entreajuda e projectos criativos de solidariedade, o humor nas varandas. Por essa altura foi sentido pela maioria um forte sentimento de pertença à comunidade. A motivação para diminuir os números de casos através da famosa frase – é necessário achatar a curva – surtiu efeito e todos sentimos que o esforço individual contribuía para o sucesso de todos.

A sensação de que tínhamos melhorado no verão que se anunciava, provocou uma distensão social muito apetecida. Desconfinamento e regras mais flexíveis fizeram diminuir a ansiedade. Quem pôde, aproveitou a praia e o lazer em paragens diferentes, mais junto à natureza, descobrindo novos lugares no interior do país. Vivia-se num intervalo, com a ansiedade em suspenso.

Com o regresso dos doentes às consultas de Psiquiatria, compreendeu-se melhor como tinha sido vivido o confinamento. Histórias difíceis puderam ser verbalizadas.

Mais conflitos familiares, crises conjugais, cansaço dos pais perante novos papéis a desempenhar, ansiedade em relação ao futuro, insegurança em relação ao emprego, crise social e económica à vista, maior consumo de álcool.

Precisamos analisar os quadros clínicos entretanto surgidos, para termos certezas sobre o que aconteceu à saúde mental dos portugueses, com mais rigor. Sobretudo o impacto da solidão nos mais idosos. Têm aparecido mais quadros depressivos. Sabemos que a tristeza que pode conduzir à desistência.

O que aconteceu depois do verão?

O início do desligamento da realidade. Em Novembro, os sinais foram muito claros e os números de infectados começaram a subir, anunciando o que iria acontecer.

Ao nível individual e de grupo, assistiu-se a uma espécie de negação da realidade que, de alguma maneira, persiste.

Números incomparáveis relativamente a março. Muito mais infectados e muito mais mortos. O nosso comportamento não se adaptou, não se inquietou, não se cuidou.

Chegados ao Natal, com o ziguezaguear do governo e das orientações da DGS, talvez os portugueses tenham feito demasiadas viagens, à procura da família alargada e dos mais velhos, sem medir consequências ou responsabilidades.

O que está neste momento a acontecer é responsabilidade de todos. Observo negação, cansaço, descrença, impotência, dessensibilização.

O número de mortos anunciado diariamente parece não sobressaltar as pessoas. As terríveis imagens dos hospitais e dos cuidados intensivos a abarrotar, as filas de ambulâncias à porta dos hospitais, a exaustão dos profissionais de saúde, não têm mudado os comportamentos.

Anunciado o novo confinamento, não parecia haver grandes alterações. Os portugueses pareciam caber nas 52 excepções previstas. E permaneciam nas ruas.

Só o fim das aulas provocou alteração no trânsito, no movimento diário.

Que nos aconteceu?

Nunca estivemos ou vivemos assim.

Mas teremos bem consciência do que está a acontecer?

A repetição dos números cansa? Já não interessa? Banaliza-se? Centenas de mortos por dia, repetidos no telejornal enquanto jantamos?

E este parece-me ser o maior problema de saúde mental que vivemos.

A exaustão pandémica. A banalização do sofrimento. A falta da expressão de solidariedade que somos capazes de fazer, e já fizemos. A desistência. Em algumas pessoas, o medo que bloqueia ou paralisa.

Não pode haver indiferença. Sabemos como cada um, e em comunidade, pode fazer a diferença no que está a acontecer ou no que estará ainda para vir.

O momento é grave e triste. Deveria convocar-nos para generosidade, para a entreajuda. Esmagados pela tristeza não vivemos, não reagimos.

Ser mais pessoa, ser mais comunidade, ser mais família, acolher a esperança. Essa é a defesa contra o isolamento e contra a tristeza. O agir espanta o medo!

Com distância física, ser próximo no coração.

Com gestos, chegar onde é preciso chegar.

Um dia a pandemia chegará ao fim. Essa certeza também nos conduz.

Voltaremos à vida como a conhecíamos. Com feridas. Com aprendizagens. Com mudanças a fazer. Com memórias boas e más.

A saúde mental é a capacidade de fazermos perguntas a nós próprios, de lhes responder e fazer as mudanças que descobrimos dever fazer.

Médica psiquiatra na Casa de Saúde do Telhal - Instituto São João de Deus ; coordenadora da unidade de alcoologia e membro do gabinete de crise

1 COMENTÁRIO

  1. e como uma guerra de guerrilha, nao sabemos quando chega a nossa vez ,mas continuamos a lutar para nao morrer e sempre no positivismo.
    pensar que vamos morrer e que nunca ,e quando acaba o pesadelo que satisfacao de alegria se sente .MAS NUNCA VOLTAMOS AO QUE ERA.-…

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