A citação não é de Michael J. Gelb, mas é utilizada por si na conversa que teve com o VER a propósito do livro “The Healing Organization”, recentemente lançado e escrito em co-autoria com Raj Sisodia, o pioneiro do denominado capitalismo consciente. De acordo com o especialista em inovação organizacional, as empresas são responsáveis por muitos dos males que assolam o mundo e viver de acordo com um capitalismo desenfreado que atropela e cilindra as pessoas e o ambiente já não é uma abordagem viável. Em entrevista, Michael Gelb fala da premissa e dos princípios que caracterizam as “organizações que curam”, as quais utilizam a sua capacidade criativa para encontrar formas mais humanas e inclusivas para operarem os seus negócios
POR HELENA OLIVEIRA

A imagem das empresas modernas há muito que tem vindo a ser moldada por um enfoque no lucro em detrimento das pessoas e do ambiente. Mas tal como o pioneiro do Capitalismo Consciente Raj Sisodia [já entrevistado pelo VER] e o especialista em inovação organizacional Michael J. Gelb demonstram no livro The Healing Organization: Awakening the Conscience of Business to Help Save the World, esta abordagem do capitalismo deixou de ser viável. Michael Gelb esteve recentemente em Lisboa para falar sobre as “organizações que curam” [em tradução livre) e conversou com o VER a respeito dos conceitos que integram a obra recentemente lançada.

Os autores foram inspirados a escrever The Healing Organization devido à “epidemia desnecessária de sofrimento relacionada com as empresas sem consciência” e responsáveis pela destruição do ambiente, pelo número crescente de pessoas que (sobre)vive à espera do ordenado ao final do mês (apesar de trabalharem a tempo inteiro ou em múltiplos empregos), pelas taxas crescentes de depressão e stress que originam problemas de saúde crónicos e devido à inimizade e desunião entre aqueles que defendem o capitalismo desenfreado e os que advogam que o socialismo está a exacerbar, em vez de resolver, os nossos problemas. Com base em entrevistas aprofundadas e em casos de estudo inspiradores, o livro retrata 25 histórias de empresas, de diferentes indústrias e geografias, que estão a conseguir “curar” ou regenerar os seus empregados, clientes, comunidades e outros stakeholders, ao mesmo tempo que são lucrativas. O resultado cifra-se em pessoas que gostam genuinamente do seu trabalho, em clientes “apaixonadamente” leais, no impacto positivo para as comunidades que servem e na preservação e restauração dos ecossistemas em que operam.

 

Qual o significado da palavra “curar” [healing] no contexto dos negócios?

Curar significa essencialmente “regressar à plenitude”. A palavra [em inglês] partilha a sua etimologia com as palavras whole [pleno] e holy [sagrado]. Whole significa completo, ileso, saudável. Holy significa consagrado, sagrado, divino.

A abordagem dominante dos negócios é a de que estes são prejudiciais para a sociedade enquanto um todo e para a maioria dos indivíduos. Neste contexto, as empresas focam-se estritamente na geração, o mais possível, de lucro e crescimento. E isto é feito através da geração do maior número de receitas possível, o que significa vender o maior número de produtos possível ao maior número de pessoas possível e ao preço o mais elevado possível, independentemente de as pessoas beneficiarem ou não destes mesmos produtos.

Na medida em que o lucro é equivalente à receita menos os custos, os negócios inconscientes procuram também minimizar os custos. E fazem-no gastando o mínimo possível com as suas pessoas, espremendo os seus fornecedores até ao limite, externalizando os custos para a sociedade e para o ambiente o mais que conseguirem e minimizando os impostos que pagam.

Esta forma de operar cria divisão e discórdia na sociedade, bem como stress e ansiedade nos indivíduos. Muitos seres humanos são magoados numa base diária devido às experiências no trabalho e muitos dos nossos problemas societais e ambientais são causados, ou tornados piores, por empresas que operam sem um sentido de propósito elevado e sem uma visão holística. Em simultâneo, muitas pessoas anseiam em tornar-se mais plenas à medida que vão progredindo na vida.

Assim, e se o local de trabalho pudesse ajudar a preencher estes anseios? E se as empresas pudessem tomar a dianteira, regenerando o nosso ambiente e remediando as questões sociais, e se, tal como demonstram os dados compilados pelo meu co-autor, o professor Raj Sisodia, estas empresas que operam de uma forma mais holística fossem mais lucrativas? As organizações que curam [healing organizations] ajudam os empregados, os clientes, as comunidades e a sociedade a experienciar esse sentimento de plenitude, ao mesmo tempo que suplantam financeiramente as suas congéneres.

Qual a diferença entre uma empresa consciente e uma “organização que cura”?

Uma empresa consciente serve as necessidades de todos os seus stakeholders e está organizada em torno de um propósito mais elevado que vai além do lucro. A “Organização Que Cura” é uma empresa consciente com um propósito elevado e dedicado, em primeiro lugar, a aliviar o sofrimento e a aumentar a satisfação, ao mesmo tempo que promove um crescimento saudável. As “organização que curam” procuram melhorar continuamente as vidas de todos os seus stakeholders e, em simultâneo, geram lucro para que possam continuar a crescer e a trazer a “regeneração” para o mundo.

Qual a premissa da organização que cura e que traços particulares integra?

A premissa é simples. Quando compreendemos e vamos ao encontro das necessidades reais das pessoas, ajudamos a curá-las, enquanto nos curamos a nós mesmos e geramos abundância. Quando, pelo contrário, não percebemos os seus anseios, desejos e dependências, magoamo-las e, em última instância magoamo-nos a nós mesmos, bem como às nossas crianças e ao nosso planeta.

Todas as “organizações que curam” que descrevemos no livro partilham três traços em comum. Assumem a responsabilidade moral de evitar e aliviar o sofrimento desnecessário, reconhecem que os seus empregados são os seus principais stakeholders e definem, comunicam e vivem de acordo com um “Propósito de Cura”.

Escreve, no livro, que “não é possível ter uma organização que cura sem existirem líderes que curam [também]”. Que qualidades e comportamentos em particular têm este tipo de líderes?

Na Parte 3 do livro, identificamos e descrevemos onze qualidades dos líderes que curam. Uma das mais importantes e sobre a qual escrevi de forma extensa no meu livro anterior é “pensar criativamente e liderar a inovação”. A criatividade é a arte de gerar novas ideias que têm um valor subjectivo e a inovação é o processo de traduzir essas mesmas ideias em valor objectivo, ou seja, produtos ou serviços que respondam às necessidades dos humanos de uma forma lucrativa e sustentável. Os líderes que curam são orientados para as soluções, são pensadores criativos que inspiram e guiam os demais no sentido de responderem às necessidades de todos os stakeholders.

E como é que alguém se torna num líder que cura?

O primeiro passo é perceber que tal é possível. Depois, assumir a responsabilidade como o modelo a seguir. Muitas pessoas com posições de autoridade e poder não têm consciência do efeito que têm nos outros. As emoções e as atitudes são contagiosas, para o melhor e para o pior. Os líderes que curam modelam, de forma consciente, a criatividade, a empatia, a compaixão e a bondade em vez do medo, do narcisismo, da ganância e da mesquinhez.

Em que circunstâncias é que se sabe que uma organização está “magoada” e de que forma é que pode ser “curada”?

Níveis baixos de compromisso e taxas elevadas de turnover são sinais claros de que uma organização está a sofrer. O primeiro passo da cura é reconhecer e testemunhar as realidades da situação em causa. Para parafrasear o romancista americano James Baldwin, “nem tudo o que é enfrentado pode ser curado, mas nada pode ser curado até ser enfrentado”.

Quais são as práticas e regras mais danosas nas organizações da actualidade?

São as más ideias que têm vindo a dominar a governança corporativa e que têm de mudar para que se alterem igualmente os comportamentos que as mesmas originam. Uma lista curta destas más ideias inclui:

  • Os seres humanos são estimulados apenas pelo auto-interesse e são maximizadores racionais do valor económico.
  • Os negócios existem apenas para maximizar o lucro para os seus accionistas.
  • O trabalho apenas interessa para a vida das pessoas como forma de geração de rendimento.
  • A melhor forma de motivar as pessoas é utilizando uma combinação de “cenouras e paus”.
  • A função do líder é motivar, pressionar e coagir as pessoas a comportarem-se mediante formas que sirvam para atingir os seus próprios objectivos.
  • A melhor forma de aumentar os lucros é “espremer” os empregados e os fornecedores.
  • É aceitável maltratar as pessoas e poluir o ambiente se se doar muito dinheiro para a caridade.

E estes pressupostos têm de mudar antes que tenhamos de abordar as suas manifestações.

Escreveu também que “as empresas criam, mas também destroem, pelo menos oito espécies de riqueza: financeira, intelectual, social, cultural, emocional, espiritual, física e ecológica”. Pode nomear algumas práticas ou princípios que ajudem as organizações a evitar esta destruição?

Existem muitos princípios e práticas que podem ajudar mas gostaria de enfatizar uma em particular. Chamamos-lhe “alquimize o seu próprio sofrimento”. Toda a gente experiencia o sofrimento. Muitas pessoas são maltratadas em alguma altura das suas vidas, seja pelos pais, irmãos, colegas de escola, professores, chefes ou outros. Muitas crianças crescem com traumas associados ao divórcio ou a algum tipo de comportamento aditivo, abuso ou alcoolismo. E algumas pessoas transmitem, inconscientemente, esse mesmo trauma à geração seguinte. Alguns chefes difundem também os abusos que sofreram, perpetuando e exacerbando mais sofrimento desnecessário. E algumas pessoas “acordam e conseguem “alquimizar o seu sofrimento”. Ou e por outras palavras, aprendem a agir com compaixão e amor, utilizando a sua experiência de sofrimento para serem mais sensíveis, empáticas e bondosas para os outros.

O “propósito” está a ser crescentemente utilizado como uma buzzword, na medida em que toda a gente fala nele. Qual é a sua definição de propósito e como antevê esta transição da primazia do accionista para os benefícios para todos os stakeholders?

Qual é o propósito do negócio? Não é, tal como Peter Drucker escrevia, “criar e manter o cliente” e também não é, como proclamado por Milton Friedman, o de gerar lucro. Criar e manter clientes, bem como gerar lucro são medidas importantes para avaliar o sucesso, as quais são muitas vezes consideradas, erradamente, como propósito. O propósito das empresas neste momento, e mais do que nunca, terá de ser o de aliviar o sofrimento e aumentar a satisfação servindo as necessidades de todos os stakeholders, incluindo empregados, clientes, comunidades e o ambiente.

As organizações que curam criam e mantêm clientes, e geram lucro, para continuarem a crescer e a curar o mundo. E estão organizadas em torno de um sentido claro de propósito com algumas características em comum. Muitas delas estão expressas no acrónimo HEALING: heróicas, evolutivas, accionáveis, amáveis, inspiradoras, naturais e enraizadas.

Existe alguma acção em concreto que um líder possa implementar de imediato para começar a transformar a sua empresa numa organização que cura?

Uma boa parte do livro retrata 25 histórias inspiradoras de “organizações que curam”. E a forma mais simples de iniciar esta jornada é partilhar essas histórias e outras similares. Elas recordam-nos o que é possível fazer e inspiram-nos a lutar pelo que o filósofo Charles Eisenstein chama “o mais belo mundo que os nossos corações sabem ser possível”.

 

Sobre Michael J. Gelb

É pioneiro nas áreas do pensamento criativo, da liderança inovadora e dos negócios conscientes. É autor de 16 livros, incluindo o bestseller internacional How to Think Like Leonardo da Vinci. Os seus livros foram traduzidos em 25 línguas e venderam mais de um milhão de cópias em todo o mundo. Gelb ajuda também organizações em todo o mundo a desenvolverem culturas mais criativas, solidárias e conscientes. O seu novo livro, escrito em co-autoria com o Professor Raj Sisodia intitula-se The Healing Organization: Awakening the Conscience of Business to Help Save the World.

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