Pensa nisto como uma busca no Google, mas em vez de procurarmos só o que as pessoas tornam público, também procuramos o que não tornam – emails, chats, SMS, tudo. Sim, mas quais pessoas? O reino inteiro”. A antestreia de “ Snowden”, o thriller político de Oliver Stone que retrata a vida do maior whistleblower do século XXI, trouxe a Lisboa o jornalista do The Guardian e autor do livro “Snowden Files” que passou semanas a decifrar os leaks do ex-analista da NSA numa sala clandestina. Para Luke Harding “Snowden fez um favor ao mundo”, alertando consciências contra a ambição de controlo das agências governamentais. Como apela hoje o próprio jovem norte-americano, “não digam a verdade ao poder”. Digam-na ao mundo
POR GABRIELA COSTA

#SOLDADO. TRAIDOR. ESPIÃO. HERÓI. HACKER. PATRIOTA. NÃO TEMOS DE ESCOLHER UM LADO. MAS VAMOS ESCOLHER

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O que levou Edward J. Snowden a perpetrar a maior divulgação de documentos classificados na história mundial? Quando o jovem ex-analista da NSA abriu os olhos do mundo, ao desvendar o complexo programa de vigilância da Agência de Segurança Nacional dos EUA, tornou-se num herói ou num traidor? Depois de ter fechado as portas do seu próprio futuro aos 29 anos, desistindo da sua carreira, da família e da terra natal em nome de uma verdade que não podia ignorar, o norte-americano deve ser perdoado?

Três anos depois de ter revelado aos jornais The Guardian e The Washington Post e à revista Der Spiegel milhares de documentos secretos do sistema de escutas ilegais e intercepções de comunicações escritas da NSA, cujo alvo eram milhões de pessoas, quer nos EUA, quer fora do país, a atitude do maior whistleblower do século XXI continua a ser questionada no mundo inteiro.

[su_youtube url=”https://youtu.be/QlSAiI3xMh4″ width=”400″ height=”200″]Este mês, a estreia mundial de “Snowden”, o filme de Oliver Stone baseado nos livros “Os ficheiros Snowden: a história secreta do homem mais procurado do mundo”, de Luke Harding, e “Time of the Octopus”, de Anatoly Kucherena, e que retrata a história verídica do norte-americano que encontrou exílio na Rússia e enfrenta nos EUA acusações de roubo de propriedade governamental e revelação de material classificado, veio reavivar o debate.

O escândalo que em 2013 envolveu políticos como Barack Obama, a chanceler alemã Angela Merkel e o então primeiro-ministro britânico, David Cameron, volta a gerar ondas de protesto com a película do premiado realizador, que conta com a participação de Joseph Gordon-Levitt no papel principal.

O filme traça a cronologia de um jovem nascido na Carolina do Norte que, impedido de servir o seu país nas forças armadas durante a guerra do Iraque, dedica o seu patriotismo como analista de sistemas tecnológicos e de vigilância contra o terrorismo. A trabalhar no Havai, o jovem acaba por roubar milhares de ficheiros secretos da NSA e fugir para Hong Kong, onde fornece ao jornalista do The Guardian, Glenn Greenwald, e à autora do documentário “Citizenfour”, Laura Poitras, a informação confidencial, com um relevo jornalístico sem precedentes.

No admirável thriller político de Oliver Stone que estreou em Portugal a 22 de Setembro, Snowden debate-se entre dois sentimentos contraditórios: o dever de protecção do Estado contra ameaças externas e a percepção crescente de que todos os limites, seguros e morais, sobre a vigilância foram ultrapassados.

© NOS Audiovisuais
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#SNOWDENTALKS: ESTARÁ ALGUÉM SEGURO?”
Webcams tapadas e smartphones longe das salas de reunião

A antestreia de “Snowden” a 21 de Setembro, no ISCTE, trouxe a Lisboa Luke Harding, jornalista do The Guardian e autor do livro “Snowden Files”. À conversa com Micael Pereira, do Jornal Expresso, o britânico que participou na investigação sobre os leaks que denunciaram as práticas de espionagem de agências e governos abriu o debate acerca do futuro da segurança digital e da privacidade dos dados na Internet, na era pós-Snowden.

Contando vários detalhes sobre o processo de divulgação dos muitos milhares de documentos que o ex-analista da NSA, com quem mantém o contacto, revelou em 2013, Harding defendeu que “Snowden fez um favor ao mundo, porque ficámos a saber que a ambição da NSA é saber tudo e controlar tudo”. Na sua opinião, “sem dúvida que a privacidade que tínhamos nos anos 80 e 90 desapareceu ou está a desaparecer”. Isto é, continua a ser invadida. Porque, apesar do “caso Snowden” ter “alertado consciências” para uma discussão que até então era, convenientemente, uma espécie de ‘não-assunto’, a verdade é que “pouca coisa mudou no mundo” depois das revelações do jovem: a diferença é que hoje sabemos de que é capaz a Agência Nacional de Segurança americana, concluiu.

Portanto, apesar de, na opinião do escritor, Snowden ter “prestado um serviço público” quando decidiu mostrar ao mundo que a NSA espiava boa parte da população mundial através de complexas redes de vigilância, nada de estrutural aconteceu na forma de actuação das agências governamentais, que, de resto, “muito provavelmente” continuam a espiar vários líderes mundiais, acusou Harding.

Desconfiando dos governos mas também das grandes tecnológicas, o escritor admitiu mesmo que tem alguns comportamentos de precaução, como tapar a webcam do computador portátil para evitar “programas capazes de a invadir e espiar através dela”, e não ter conversas confidenciais junto ao iPhone: “ainda esta semana, eu e alguns colegas deixámos todos os nossos smartphones numa sala e reunimos noutra, para não corrermos o risco de sermos escutados”, confessou.

Ainda assim, e até porque este tipo de riscos é necessariamente maior em certas profissões (como a sua) e em certos grupos da sociedade, Luke Harding defende que não nos devemos deixar consumir pela paranóia. Antes, devemos contribuir para continuar a alterar a mentalidade dos utilizadores, não deixando cair por terra a necessidade de nos questionarmos “sobre o que fazer com a nossa privacidade no universo digital”. Cientes de que a mesma “poderá deixar de existir em cinco ou dez anos, se não fizermos nada a este respeito”.

[quote_center]Não corro o risco de ser escutado – Luke Harding[/quote_center]

Quanto ao tão falado perdão por parte de Barack Obama (ou o seu sucessor, em breve) ao ex-analista, que está acusado de espionagem nos Estados Unidos e arrisca até 30 anos de prisão, o autor de “Snowden Files” considera o cenário bastante improvável, recordando que o norte-americano irá sempre representar um risco suficiente para que a NSA e outras agências governamentais queiram fazer uma marcação cerrada, “não com dois homens grandes à porta de casa, mas de forma mais discreta”, ironiza.

Recorde-se que, para além da recente petição lançada por ocasião da estreia mundial do filme de Oliver Stone, exigindo que o Governo norte-americano perdoe o antigo militar e consultor da NSA, três dos jornais que estiveram na linha da frente da recepção e divulgação dos movimentos secretos da agência partilhados por Edward Snowden – The Guardian, The New York Times e The Intercept – estão também a pedir o perdão do jovem, em asilo político há três anos na capital da Rússia.

Para Luke Harding, o actual momento afigura-se como “uma era de ouro para o jornalismo de investigação”. Ainda assim, e quando se projectam os interesses da espionagem e da vigilância na era digital do futuro, “ninguém vai parar de espiar ninguém”, lamenta o jornalista britânico.

O sacrifício da privacidade pela cultura de eficácia

“Se não temos nada a esconder, porque nos vamos preocupar?” À questão colocada pelo moderador, Micael Pereira, para aprofundar o debate sobre o eminente desequilíbrio entre segurança e privacidade digital, Pacheco Pereira responde, na perspectiva de historiador, que “a discussão sobre a privacidade online é uma enorme hipocrisiano actual contexto.

Criticando a pertinência do próprio tema em análise, o ex-ministro enquadrou as décadas de preocupação em torno das questões de segurança, defendendo que a Internet, em si, não constitui uma justificação para a falta de privacidade: existe é uma “cultura contra a privacidade, tendência” que vem vigorando “nos últimos 20 a 30 anos”. De resto, “não se percebe (sequer) porque nos últimos 200 anos a sua conquista está intimamente ligada à do direito à liberdade, “um direito adquirido” que, afinal, pertence apenas a alguns. Uma questão para reflectir à luz da evolução das estratificações por estatuto social e económico e das expressivas migrações dos meios rurais para a cidade dos tempos modernos, conclui.

[quote_center]O custo de estarmos mais seguros é um falso argumento para aumentar a vigilância – Pacheco Pereira[/quote_center]

Para Pacheco Pereira “estamos a perder privacidade” não por causa da tecnologia, mas “por causa do comportamento das pessoas, pelos negócios e por causa dos nossos governos”. Veja-se, por exemplo, o quanto remete para uma noção contrária à mesma “tudo o que se vende hoje aos adolescentes”, sugere. Se actualmente “tudo é possível de espionar, com os meios próprios”, ou seja, “através de mecanismos tecnologicamente desenvolvidos”, certo é que as pessoas têm menos respeito pela sua própria privacidade.

O programa e-factura ilustra bem a permissividade dos portugueses face à intrusão da máquina fiscal na sua vida, em nome alegadamente de “uma cultura de eficácia que sacrifica o valor da privacidade”, critica ainda: trata-se de uma das maiores violações do Estado português sobre os cidadãos e “que tem permitido monitorizar as pessoas” relativamente a tudo aquilo que adquirem, que comem ou para onde se deslocam, através de “um mecanismo dispensável do ponto de vista fiscal” que escrutina tudo e todos.

O fisco é “o mais próximo que temos de um estado policial em Portugal”, acusa, concluindo que “o Estado não tem o direito de querer saber estes dados”. Mas, lamentavelmente, “substitui-se hoje o trabalho dirigido a sectores e pessoas de risco por uma facilidade de acesso aos dados que atinge todas as pessoas”. Trata-se de “um enorme retrocesso nos mecanismos do Estado”, remata.

Na opinião do político e comentador do programa “Quadratura do Círculo”, o problema maior está na atitude dos cidadãos, que todos os dias aceitam complacentemente diminuições da sua privacidade” graças a “tudo o que permitem aos Estados, em nome da segurança”. Quando, de resto, a ideia que os terroristas, regra geral, “usam tecnologias muito sofisticadas” quando pretendem actuar “é um mito”, aponta ainda.

Na realidade, o custo de estarmos mais seguros não passa de “um falso argumento para aumentar a vigilância sobre os cidadãos”. Porque ainda há 200 anos, no Reino Unido, por exemplo, “não havia passaportes nem controlos (de fronteiras) e, de um momento para o outro, aceitámos todo o tipo de sistemas de vídeo vigilância, etc”. É neste contexto que, como já dizia George Orwell, no seu “1984”, “deixámos de ter consciência de que a privacidade é uma luta civilizacional”, conclui Pacheco Pereira.

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A opaca transparência da era pós-Snowden

Num painel intitulado “A Privacidade digital: são as empresas e os Estados uma ameaça para os cidadãos?”, que reuniu também Sandra Miranda, Chief Technology Officer (CTO) da Microsoft Portugal, Pedro Veiga, coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança e o fundador do portal Tugaleaks, Rui Cruz, o debate sobre os desafios na utilização dos dados pessoais partiu das ligações entre as grandes tecnológicas e a NSA.

Demarcando-se da ideia de que a Microsoft colabora com programas de recolha maciça de dados conduzidos por agências governamentais, a CTO da empresa em Portugal insistiu que a gigante “não participa voluntariamente” nestas iniciativas, até por “razões puramente lógicas”: isso seria uma forma de “assassinar o modelo de negócio”.

[quote_center]A Microsoft não participa voluntariamente em programas de recolha maciça de dados – Sandra Miranda[/quote_center]

Apesar de “todas as grandes tecnológicas” serem “obrigadas a obedecer às imposições legais que lhes são apresentadas”, os únicos dados cedidos pela Microsoft são sempre “muito específicos” e “fazem parte de contas isoladas referidas em ordens de tribunal”, garantiu. À defesa da postura da multinacional Sandra Miranda associou ainda a ideia de que a Microsoft se adaptou a uma ‘era pós-Snowden’, através de medidas como “a publicação dos casos judiciais em que a empresa se opõe à libertação de dados (três desde 2013)”, a “complexificação dos níveis de encriptação dos seus serviços”, a criação de “centros de transparência para os governos”, e o reforço da protecção digital dos cidadãos “contra possíveis vigilâncias não autorizadas”.

Todas estas “preocupações” alegadamente decorreram das fugas de informação de Edward Snowden, no âmbito das quais a Microsoft foi uma das empresas listadas num documento que evidenciava colaborações entre corporações e a NSA, nos leaks que visavam o programa do sistema de vigilância global, o PRISM.

Com a globalização da Internet, também em Portugal os perigos de vigilância, espionagem e roubo de identidade colocaram todos os utilizadores à mesma distância de uma “hipotética ameaça”. Mas para o coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança, a prioridade continua a ser melhorar as redes de segurança: “a nossa preocupação é garantir que as redes públicas estão seguras. Como em qualquer outra área, há espaço para melhorar”.

[quote_center]O Estado tem de segurar bem a informação, para que não seja violada – Pedro Veiga[/quote_center]

A experiência de Snowden revela, na sua perspectiva, a ameaça que a espionagem industrial constitui. Para Pedro Veiga, “melhorar as redes de segurança da Administração Pública é uma obrigação do Estado”, que “tem de segurar bem a informação”, para que a mesma “não seja perdida nem violada”. Reconhecendo que em nenhuma área deste sector há “protecção absoluta”, o coordenador do Centro gerido pelo Gabinete Nacional de Segurança insiste que “há níveis que precisam ser melhorados” e exemplifica a facilidade com que pode ocorrer uma falha de segurança: “na Ucrânia, um ataque cibernético a uma infra-estrutura eléctrica [uma das mais frágeis, apesar de crítica para o bem-estar] foi suficiente para a deitar abaixo”.

Em Portugal, o estado da segurança cibernáutica é satisfatório, diz, e ao Centro de Cibersegurança, que “tem a responsabilidade de assegurar que estas coisas não acontecem aos serviços públicos”, compete, “juntamente com as empresas e reguladores, proteger os dados das entidades que os gerem”, reafirma.

Do lado oposto à ‘teoria do medo’ que dita que a ameaça está na espionagem, o ‘hacktivista’ Rui Cruz acredita que todos os perigos residem na vigilância. Na era digital, “ninguém está seguro na Internet”, mesmo quando o acesso é feito a portais de empresas credibilizadas, “com o dever de assegurar a privacidade dos seus clientes”, como os bancos.

Não obstante os inúmeros riscos da navegação, existem infinitamente mais utilizadores da Internet ‘normais’ do que “pessoas com intuitos maliciosos na rede”, sublinha o também criador do site de informação sobre segurança informática Hackers Portugal, rejeitando uma posição de paranóia face à cibervigilância e à invasão da privacidade.

[quote_center]É mais fácil matar o mensageiro que a mensagem – Rui Cruz[/quote_center]

O responsável pela divulgação de várias fugas de informação praticadas por piratas informáticos em Portugal retratou a sua experiência no seguimento do exílio de Julian Assange. O caso inspirou-o a somar à sua longa experiência como empreendedor da Internet uma atitude de ‘hacktivismo’ que o levou a replicar o WikiLeaks numa versão nacional. Em 2012, Rui Cruz foi constituído arguido no âmbito de uma publicação onde dava a conhecer o conteúdo de um email do Movimento Cívico Antipirataria na Internet. O processo foi arquivado, mas, três anos depois, o blogger foi detido e impedido de aceder à Internet durante 299 dias, como medida de prevenção. “Quase pensei que era censura”, ironiza. A sua história demonstra como tantas vezes “é muito fácil matar o mensageiro, em vez de combater a mensagem”, conclui.

Admitindo que está a ser trilhado algum caminho no sentido de garantir a protecção de dados por parte das infra-estruturas que regem o sistema judicial (como a Procuradoria Geral da República) e da Administração Pública em geral, Rui Cruz esclarece que “falta ainda isso acontecer”. Ao mesmo tempo, “as próprias empresas combatem os movimentos cívicos, anónimos” que surgiram desde 2010, inspirados em casos internacionais como o de Edward Snowden.

Perante estes factos, estaremos seguros? Não.