O Luís não aguenta ver uma criança infeliz sem mover montanhas para o contrariar; o Francisco, que vive eternamente a sorrir, chora quando uma menina lhe agradece um pequeno gesto e por isso está disposto a dar tudo o resto que tem; a Inês tem a filha em casa doente mas está aqui a comprar fraldas e boiões para crianças desconhecidas; o Vitalyi e a Sasha vêem família em todos os refugiados e não descansam meio minuto; a Catarina, que nos lidera, sente que nada do que faz é suficiente e todos os dias consegue arranjar forma de oferecer ainda mais; o Diogo não consegue aceitar o facto de se ir embora e todos os dias acolhe como suas as famílias que aqui estão e cada vez mais as que se estabelecem em Portugal; o Moita não consegue dormir e esfola-se de um lado para o outro para ajudar como pode. O João rendeu-se de início e vai cá ficar o resto do mês…
POR CARLOTA HENRIQUES

Duas semanas depois de Vladimir Putin ter invadido a Ucrânia e de o mundo assistir em directo ao êxodo de milhões de ucranianos com um saco na mão repleto de sonhos amarfanhados, um grupo de amigos portugueses, colegas na mesma empresa, decidiram que mais do que espectadores de tamanhas atrocidades, seriam antes actores voluntários de um dos bastidores mais emocionalmente desgastante desta guerra. A 13 de Março, e a partir de uma plataforma de recolha de fundos – https:gofund.me/9cf83969 -, o seu primeiro objectivo de angariar de dez mil euros para darem início a um plano já gizado foi atingido 24 horas depois. E este foi o princípio de uma missão à Polónia, cujo propósito assentava na esperança de trazer para Portugal o maior número de refugiados possível e ajudá-los na sua integração mediante formas variadas. Porque o testemunho na primeira pessoa é mais poderoso do que quaisquer outras palavras, siga o diário do que foram escrevendo ao longo de uma viagem marcadas por derrotas, sim, mas também por muitas pequenas e grandes vitórias, misturadas com sorrisos e muitas lágrimas… Esta missão foi cumprida mas não é possível terminá-la com um simples ponto final.

Diário da MISSÃO

15 Março (antes da partida)

Estamos completamente extasiados com todo o apoio que temos recebido. Tem sido incrível e muito acima das nossas expectativas! Assim, decidimos ir mais longe e trazer mais refugiados para Portugal do que o inicialmente planeado.

Temos estado em contacto com várias organizações e, depois de discussões detalhadas, concluímos que, com os fundos que já angariámos, seria mais eficiente trazer as pessoas via avião para Portugal e não seguirmos a ideia inicial, ou seja, partir de Portugal com três carrinhas de nove lugares levando três condutores cada uma, para transportar roupa, alimentos e medicamentos e, no regresso, 18 refugiados Ucranianos (6×3).

Assim, aumentámos as nossas expectativas e estimamos trazer cerca de 70 pessoas para Portugal. Adicionalmente, iremos trabalhar com instituições locais na Polónia para dar apoio em quaisquer logísticas transfronteiriças que sejam necessárias.

Como planeado, iremos para Cracóvia dia 18 e começaremos a pôr o nosso plano em acção ao encontrarmo-nos com as instituições de refugiados, apoiá-los no processo de confirmar e tratar da documentação necessária, marcar os voos, facilitar o transporte para o aeroporto e ajudar no check-in.

Do lado de cá, temos uma equipa a receber os refugiados no aeroporto e a levá-los em segurança para as instituições responsáveis pelo alojamento.

O dinheiro angariado será 100% utilizado no objectivo do GoFundMe e reforçamos que seremos totalmente transparentes a informar de que forma o dinheiro está a ser utilizado e clarificar que a nossa equipa irá pagar com fundos próprios os seus voos, refeições e alojamento.

Estamos muito contentes e entusiasmados com o impacto que este apoio extra proporcionou e não podíamos estar mais gratos por tudo o que nos estão a possibilitar fazer!

Todos os momentos desta missão serão relatado na nossa página de Instagram @iberia_aid_caravan , a plataforma ficará aberta e todos os cêntimos extra serão convertidos em bilhetes de avião extra.

Com o crescimento do nosso projecto, as instituições com quem trabalhamos pediram ajuda com a logística de alojamento e todos os contactos de organizações que estejam a facilitar alojamento serão muito bem-vindos.

18 Março

Às seis da madrugada, o nosso grupo de amigos em conjunto com dois ucranianos voluntários que a nós se juntaram para ajudar a superar a barreira da língua, partiu rumo a Cracóvia, na Polónia.

19 de Março (Dia 1)

O dia começou muito calmo, apesar de meio perdidos numa imensidão de expectativas individuais. Optámos por ser romanos e dividir para conquistar – três equipas saíram do centro da cidade para identificar várias possibilidades de centros de acolhimento. Sabemos que existem bastantes instituições a apoiar refugiados, mas a sombra iminente de abuso desumano impede-nos de aceder a informações claras e objectivas.

Deparámo-nos com a realidade em que vivem já muitos refugiados, com fileiras de camas de exército com 20 cm entre a cabeceira e os pés, numa casa identificado com a familiar bandeira da Cruz Vermelha. Seguidamente, fomos até à estação de comboios, o ponto de ajuda que os refugiados normalmente procuram e onde tínhamos estado de manhã. As crianças andam felizes a brincar, sem perceberem que o que aí vem será uma vida completamente diferente da que conheciam.

A barreira linguística é, de facto um desafio, mas contamos com o Vitaliy e a Oleksandraa, que são incansáveis e sempre com um sorriso na cara, para a ultrapassar.

Em jeito de conclusão, o dia foi duro e cansativo, andámos muito e chegámos a muitos “não podemos ajudar”. Tocou-nos a existência de uma realidade imposta às pessoas abandonadas na estação, mas não nos aproximámos da guerra. Sentimos que existe uma crise humanitária, mas ainda não conseguimos perceber a real dimensão do que a causou.
Todavia, fomos dormir com um sentido de propósito e vitoriosos por termos potencialmente melhorado, num dia, 15 vidas – todas elas de avós, mães e filhos – que brevemente chegarão a Portugal.

21 de Março (Dia 2)

O segundo dia iniciou-se com a identificação de refugiados no terreno, marcação de hotéis, verificação dos pontos de contacto em Portugal, confirmação de documentos oficiais, validação dos alojamentos e, por fim, com a aquisição de voos. De seguida, accionámos a equipa de campo que se encontra com as famílias de refugiados – umas vão directamente para o aeroporto, outras juntam-se a nós no hotel, e uma parte vai para Varsóvia para obter um salvo-conduto na embaixada para viajar no dia seguinte.

Enquanto uns de nós asseguram a logística de voos, budget, hotéis e casas, outros estão com as famílias a garantir todo o apoio necessário. Despedem-se de forma emocionada nas partidas e ficamos todos numa expectativa enorme a aguardar a fotografia de chegada a salvo a terras lusitanas, onde a nossa equipa sedeada em Portugal tem trabalhado 24h para os poder receber da melhor maneira possível.

Ao lado de mães desesperadas com filhos bebés, a imensidão do impacto da guerra não deixa margem de compreensão para outros problemas. Ainda estamos a falar com as autoridades tanto em Portugal como na Polónia para perceber qual a melhor forma de ajudar, caso a caso.

Mas também nos deparamos com um caso que nos interpelou de forma diferente. Encontrámos, na estação de comboios, uma mãe com duas filhas gémeas de 10 anos, com os poucos bem que tinham em sacos, sem bateria no telefone, um único saco de comida e muito, muito assustadas. Falámos sobre Portugal, clarificámos os programas de ajuda, explicámos quem somos e o que estamos a fazer. A Natsya, uma das filhas, rapidamente percebeu o peso da decisão. Muito lingrinhas, de olhos azuis gélidos e chorosos, posicionou-se à frente da mãe e, com o beicinho a tremer, diz duramente que não. Mais tarde percebemos que as gémeas são as últimas filhas de um conjunto de cinco, dos quais dois estão na guerra, sendo assim impensável ir para tão longe. Choca-nos a seriedade imposta nestas duas crianças que a acolhem com coragem.

Assim, decidimos prestar um tipo diferente de apoio. Alojámo-las num dos nossos quartos do hotel durante uma semana, com abastecimentos de supermercado, jantar, brinquedos, lavandaria, e também com uma lista de instituições que ajudam a encontrar suporte e trabalho. Quando saímos para jantar, as meninas, anteriormente endurecidas pelo medo, voltaram a ser crianças e, mesmo que temporariamente, reentraram no mundo da fantasia onde reinam pinotes pelo quarto e muitas gargalhadas.

24 de Março (Dia 3)

Corremos para o comboio que nos levará a uma nova cidade: Varsóvia, a capital da Polónia, uma cidade histórica e cuja arquitectura diversificada reflecte a sua história longa e turbulenta.

Ao chegar ao centro de Varsóvia, fomos directamente para o centro de refugiados. Deparámo-nos com uma imensa cordilheira de metal sem janelas para a rua, com alguns militares nas redondezas e confessamos que sentimos uma certa relutância na decisão de ir à procura de refugiados. A realidade, se bem que temporária, que vivemos em Cracóvia não preparou ninguém para o que encontrámos no centro da Varsóvia. A zona de dormida está separada da zona de ‘check-in’, à entrada vêem-se muitos carrinhos e cadeirinhas de bebés, pois não há espaço para as levar para o interior na medida em que as camas, estilo militar, estão muito juntas umas das outras em prol da optimização de espaço.

Embora o processo tenha sido demorado, sentimo-nos reconfortados na organização. Existe um protocolo, uma confirmação de quem somos e validação do que queremos fazer. Deixámos feitos o nosso pedido, ou seja, o de espalhar a mensagem de que estamos aqui para ajudar, e viemo-nos embora na expectativa de que amanhã teremos muitas viagens para marcar.

Seguimos para a estação central, onde chegam os comboios directamente da Ucrânia e de outras cidades da Polónia, e onde existe também uma enorme estrutura de apoio a refugiados. Há uma particularidade nesta crise humanitária que é uma verdadeira janela para a implacável frieza e crueldade da guerra: os refugiados que sofrem de frio no chão da estação sem qualquer tipo de perspectiva de um futuro próspero, ou seguro, ou até existente, são mães e filhos. Há uma imensidão de mães e avós, com crianças de todas as idades espalhadas ao redor de tendas erguidas pelos voluntários polacos, com expressões rijas nas bochechas tenras e círculos escuros à volta dos tristes e infelizmente sábios olhos azuis. Esta realidade é óbvia quando a Ucrânia tem a Lei Marcial instaurada para homens dos 18 aos 60 anos, mas não a sentimos, nunca tínhamos sequer imaginado quão profunda era esta dureza.

Trouxemos para o hotel 27 pessoas, maioritariamente com crianças e bebés. Mesmo que não venham para Portugal, foi decidido que o faríamos ao longo de todos os dias enquanto cá estivéssemos.

24 e 25 de Março (Dias 4 e 5)

É de louvar a Polónia, pois não há uma esquina da capital que não tenha mensagens de apoio ou bandeiras ucranianas. O país mobilizou-se para acolher o vizinho, numa partilha de mágoas face ao mesmo agressor.

No meio de mensagens de pedidos de ajuda, e dado que não é possível prever chegadas a Varsóvia por conta dos bombardeamentos intermináveis, tentámos ajudar na obtenção de salvo-condutos, certificados de refugiados do SEF, a par de preenchimento de formulários de trabalho e realização de testes Covid.

O Luís não aguenta ver uma criança infeliz sem mover montanhas para o contrariar; o Francisco, que vive eternamente a sorrir, chora quando uma menina lhe agradece um pequeno gesto e por isso está disposto a dar tudo o resto que tem; a Inês tem a filha em casa doente mas está aqui a comprar fraldas e boiões para crianças desconhecidas; o Vitalyi e a Sasha vêem família em todos os refugiados e não descansam meio minuto; a Catarina, que nos lidera, sente que nada do que faz é suficiente e todos os dias consegue arranjar forma de oferecer ainda mais; o Diogo não consegue aceitar o facto de se ir embora e todos os dias acolhe como suas as famílias que aqui estão e cada vez mais as que se estabelecem em Portugal; o Moita não consegue dormir e esfola-se de um lado para o outro para ajudar como pode e o João rendeu-se de início e vai cá ficar o resto do mês.

29 de Março (Dias 6 e 7)

O fim da missão aproximava-se. Ninguém conseguia decidir quando sairíamos da Polónia pois todos tínhamos, no mínimo, uma família cujo futuro e segurança dependia de esperarmos por eles, ajudarmos a tratar de documentação e facilitarmos a sua chegada a Portugal. Como é que esta decisão se toma? Todos os dias chegam-nos mensagens trágicas que não podemos nem queremos ignorar… E como é que se volta para a ‘vida normal’? Encostarmo-nos na limitação dos fundos que conseguimos angariar livra-nos a consciência de uma decisão que não queremos tomar. Os últimos dias na Polónia foram muito difíceis. Sabíamos que tínhamos de regressar à nossa vida profissional, mas ninguém conseguia abandonar o que até então tínhamos alcançado. Queríamos todos ir para a estação central acolher famílias, mas a nossa resiliência emocional encontrava-se também perto de um ponto de ruptura.

A chegada a Lisboa traz um conforto amargo. Há dias que ansiávamos por estar nos braços das nossas famílias e descansar na segurança da nossa casa, mas a inquietude incómoda da falta de propósito pesa-nos.

Não conseguimos perceber se carregamos a tristeza do que vimos ou do que deixamos por fazer. O sucesso da missão realizada até agora não nos é suficiente para conseguirmos fechar este projecto, e as famílias que nos continuam a contactar e que continuamos a ajudar tão pouco o permitem. Esta solidão alheia-nos da rotina diária, é difícil explicar algo que nem nós sabemos o que é e que nos impede de sentir alegrias anteriormente garantidas.

Felizmente, há um alívio quando estamos todos juntos. Não sei se é a partilha melancólica da experiência que nos permite respirar fundo ou se a possibilidade de podermos voltar. Sabemos que nunca teríamos conseguido ajudar tanto sem o apoio que nos foi proporcionado através desta plataforma, sem o suporte da Embaixada de Portugal na Polónia e sem as variadíssimas instituições portuguesas que se propuseram a apoiar o nosso projecto.

Não temos como agradecer suficientemente o que este apoio nos permitiu aprender e o impacto que teve na vida de mais de 150 refugiados. Foi através desta ajuda sem preço que o projecto foi lançado e a única coisa que podemos dizer é que não irá certamente ficar por aqui.


A equipa, os resultados e as entidades que apoiaram o projecto iberia_aid_caravan
Equipa Polónia: Carlota Almeida Henriques, Catarina Francisco, Diogo Monteiro, Francisco Moita, Francisco Romeiras, João Correia, Luis Baptista, Inês Tinoco
Vitaliy & Oleksandra (voluntários)
Equipa Portugal: Joana Andrade e Mafalda Cosmelli

Resultados obtidos (até ao dia 29/03 )

  • Refugiados apoiados – 151
  • Voos para Portugal – 103
  • Pessoas acolhidas em Portugal – 86

Reporte de custos incorridos (até 29/03)

Despesas totais – 19.040€

  • Voos: 48%
  • Alojamento provisório na Polónia: 39%
  • Outros: 13% [alimentação para refugiados; despesas com voluntários ucranianos e kit de boas-vindas a refugiados a Portugal]

Agradecimento pelos apoios recebidos :

  • DOCUMENTAÇÃO
    Embaixada de Portugal na Polónia, com um agradecimento especial a Jorge Vieira Rodrigues, incansável na obtenção da documentação necessária para as famílias poderem viajar;
  • ALOJAMENTO
    CIPU, Centro Social de Bairro e Associação aPalavra, na identificação de alojamentos e famílias de acolhimento;
  • IDENTIFICAÇÃO E TRANSPORTE DE REFUGIADOS
    Helping Ucrania, Cascais Task Force, Together with Ukraine e I Help Ukraine Portugal;
  • RECEPÇÃO
    Oh Maria das Flores, que recebeu as famílias no aeroporto de Lisboa com flores maravilhosas.

PASSOS QUE SE SEGUEM:
Já não estamos na Polónia, mas estamos a preparar uma nova viagem. Não iremos baixar os braços pois todos os dias continuamos a receber pedidos de ajuda que temos conseguido continuar a apoiar. Ainda há muito trabalho a fazer. E estaremos cá para o cumprir.


©FOTOS: FRANCISCO ROMEIRAS

Carlota Henriques

Strategy Consultant na Mastercard. Nos tempos livres dedica-se a causas humanitárias e é entusiasta de desporto