Sem redes de socialização, os jovens de hoje podem facilmente cair na rede da dependência pelos videojogos. Alerta, a Organização Mundial de Saúde quer classificar este vício como um distúrbio comportamental aditivo. Vários especialistas aplaudem a medida, em nome do diagnóstico e do tratamento, mas outros consideram que aquilo que a OMS quer apelidar de patologia é, simplesmente, um escape como tantos outros do mundo digitalizado. Grandes empresas tecnológicas como a Microsoft, com um exigível sentido ético quanto a boas práticas em relação ao gaming, preferem apostar na prevenção, através de sistemas de controlo parental e sensibilização para regras de conduta online
POR GABRIELA COSTA

“Quem se isola socialmente mais cedo ou mais tarde paga o preço que, em muitos casos, é a dependência” – Henrique Lopes, presidente da Sociedade Científica Ibero Latino-Americana para o Estudo do Jogo

Primeiro isolam-se de familiares e amigos, depois trocam as prioridades e desinteressam-se pelos estudos e pelos seus hobbies habituais. Surgem os maus rendimentos escolares, as mentiras para encobrir o exagero de tempo que passam em frente ao ecrã, muitas vezes os distúrbios alimentares e até de sono. São jovens viciados em videojogos, e todos estes sintomas são sinais de alerta que não devem ser descurados pelos pais, professores e amigos, pois têm uma dependência e precisam de ajuda.

O problema vai passar a ser classificado como um distúrbio comportamental aditivo pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na nova edição do seu manual de Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (ICD-11, na sigla em inglês), que será lançada em Junho deste ano.

Depois de monitorizar durante dez anos os transtornos causados pelos jogos de computador, a OMS concluiu que, em determinadas circunstâncias, jogar demasiado pode ser um problema de saúde mental. O vício do jogo causa dependência e essa dependência causa problemas por vezes graves, pelo que o mesmo passará, pela primeira vez, a estar incluído no manual de diagnóstico que fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas e causas externas para as doenças. De referir que esta classificação foi actualizada pela última vez há 27 anos, em 1990.

Ainda não se conhece a definição final deste distúrbio, mas para já o esboço do documento caracteriza-o por um padrão de comportamento de jogo “contínuo ou recorrente”, no qual o jogador não consegue controlar “o início, a frequência, a intensidade, a duração e o contexto em que joga”, e tende a aumentar a prioridade dada ao jogo, em detrimento da que dá a outros interesses e actividades diárias. Esta conduta persiste e intensifica-se, “apesar da ocorrência de consequências negativas”, conclui a OMS, para quem este comportamento de risco se torna evidente quando é continuado por, pelo menos, um ano. Se tal acontece, deve então ser diagnosticado, e agora com a ajuda de um conjunto de critérios que os médicos podem utilizar para avaliar se o hábito de jogo se tornou num problema de saúde mental.

A inclusão do distúrbio dos videojogos na lista internacional de doenças da OMS visa, assim, facilitar o diagnóstico e o tratamento de quem usa excessivamente este tipo de jogos, através de uma classificação que, como já afirmou publicamente Henrique Lopes,  presidente da Sociedade Científica Ibero Latino-Americana para o Estudo do Jogo e investigador da Unidade de Saúde Pública da Universidade Católica, constitui “uma forma de os profissionais de saúde comunicarem uns com os outros usando um sistema alfanumérico”. O que vem permitir um “avanço importante” em termos de segurança, já que existe agora “uma forma de comunicar entre os países”, ou seja, “o distúrbio de impulso para os videojogos” passa a querer dizer “a mesma coisa” para os profissionais de saúde de todo o mundo.

À opinião de Henrique Lopes juntaram-se, nos últimos meses e depois de conhecida a intenção da OMS, a de muitos outros especialistas nacionais e internacionais, mas nem todos concordam com esta medida: há quem considere que um tempo excessivo passado de volta dos jogos digitais e videojogos, mesmo que associado a algum isolamento ou desinteresse social, não constitui uma patologia, recomendando por isso cautela com o ‘diagnóstico’ da Organização Mundial de Saúde.

The Legend of Zelda: Breath of the Wild – © DR

Vigiar não é proibir

Para alguns especialistas, convém não esquecer que a utilização desta ferramenta de lazer estimula a memória, o raciocínio e o trabalho de equipa, por exemplo, e serve de escape na mesma medida que muitas outras actividades, como a utilização das redes sociais, o desporto ou o sexo. Os casos minoritários em que tal descamba em transtornos de comportamento aditivo não devem ser confundidos com a generalidade das utilizações que os jovens fazem dos videojogos.

No meio comercial, e por parte das marcas de electrónica, o ‘pânico’ que a proposta da OMS poderá levantar, em termos de proibição, demasiada vigilância ou mesmo autodiagnóstico por parte dos pais em relação aos filhos, também não deverá ser propriamente vantajoso. Grandes empresas tecnológicas como a Microsoft, com responsabilidades acrescidas nesta matéria e, portanto, com um exigível sentido ético quanto a boas práticas em relação ao gaming, preferem apostar na prevenção: para esta gigante, “ajudar a manter as crianças protegidas é uma prioridade”. Pouco tempo depois do anúncio da intenção da OMS em classificar o uso abusivo de videojogos como um distúrbio, a empresa veio a público sublinhar isto mesmo, e recordar que tem “sistemas de controlo parental” nos seus dispositivos e serviços de gaming que “auxiliam os pais a escolher definições adequadas às suas famílias, no que diz respeito a conteúdos, comunicações e partilhas”.

Em comunicado, a Microsoft sublinha que “para muitos, o mais importante é que as crianças usem contas de menores cujo controlo é feito pelos pais”, pelo que na sua página de suporte disponibiliza informação sobre como fazê-lo. “Também encorajamos os pais a assumirem um papel activo na vida dos filhos através de três passos: usarem as definições de controlo disponíveis na Xbox, falarem com os filhos relativamente às suas actividades online e definirem regras de conduta online dentro da família”, conclui.

Concretamente em relação à consola Xbox One, é possível definir uma restrição etária para acesso a conteúdos, bloqueando conteúdos para adultos e seleccionando recomendações predefinidas de acordo com a idade dos utilizadores (as restrições do menor estarão definidas de acordo com a idade associada à respectiva conta Microsoft). As aplicações ou jogos bloqueados poderão ser aprovados pelos adultos da “família Microsoft”.

Também é possível aprovar as compras dos menores na Microsoft Store através da Xbox One, activando uma definição em que um encarregado de educação fica responsável por aprovar os itens que as crianças e jovens pretendam comprar, à excepção daqueles que são comprados com cartões de oferta ou saldo das respectivas contas Microsoft.

Bloquear Websites inadequados na consola é outra das funcionalidades de segurança que a Microsoft disponibiliza, adicionando filtros que permitem controlar o tipo de páginas na Internet a que o menor pode aceder. Esta funcionalidade está automaticamente activada para crianças menores de 8 anos de idade. É possível escolher o nível desejado de filtragem Web, sendo que sites específicos só podem ser adicionados à lista “sempre permitido” na conta da “família Microsoft”.

Entre muitas outras funcionalidades de prevenção, a Microsoft permite ainda configurar tempos de ecrãs, definindo limites de tempo de utilização para os menores na Xbox One e em dispositivos com Windows 10, desde que iniciam sessão. É possível utilizar o mesmo horário para todos os dispositivos (contudo, o tempo de ecrã é por dispositivo, ou seja, conceder ao menor uma hora significa uma hora no PC e uma hora na Xbox One, num total de duas horas), ou definir horários separados. Esta função define durante quanto tempo o menor pode utilizar os dispositivos, por dia, e em que horário os pode utilizar. Inclui a possibilidade de seleccionar um tempo de ecrã máximo agendado, e uma notificação do sistema, para avisar os menores na Xbox quando o tempo de ecrã está a terminar.

Owlboy – © DR

Prevenir é o melhor remédio

No âmbito do seu vasto programa para a Educação a nível global, a Microsoft Portugal desenvolve várias iniciativas que promovem boas práticas de navegação online, incluindo de prevenção para a dependência da Internet.

É o caso das acções de sensibilização que vem realizando no âmbito do Dia Europeu da Internet Segura, que este ano se assinalou a 6 de Fevereiro. Em parceria com a Guarda Nacional Republicana (GNR), a empresa promoveu em todo o país uma campanha com várias sessões dirigida às crianças e jovens, encarregados de educação, população sénior e agentes educativos, com o objectivo de abordar temas como o ciberbullying, o furto de identidade, a privacidade, a incorrecção das fontes de informação, os vírus informáticos e os riscos da utilização abusiva da Web e de dispositivos e serviços electrónicos, como os jogos digitais. Durante quatro dias e pelo quinto ano consecutivo, foram mobilizados milhares de alunos e centenas de escolas, em acções realizadas por militares e por cerca de mil voluntários da Microsoft.

A empresa integra ainda o projecto Internet Segura, da responsabilidade de um consórcio coordenado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e que também envolve a Direcção Geral da Educação, a Fundação para a Computação Científica Nacional e o Instituto Português do Desporto e Juventude. Com a missão de combater conteúdos ilegais e lesivos, minimizar os seus efeitos, promover uma utilização segura da Internet e consciencializar a sociedade para os riscos associados à sua utilização, a iniciativa integra um portal com conteúdos informativos, formativos e interactivos – caso do SeguraNet.pt, dirigido ao ensino básico e secundário; uma linha de atendimento de denúncias de conteúdos potencialmente ilegais (LinhaAlerta.internetsegura.pt), uma linha de apoio anónimo e confidencial ao uso das tecnologias online e problemas associados, como bullying e assédio (LinhaInternetSegura); e uma rede de partilha de acções de sensibilização da sociedade civil e sectores público e privado, funcionando ainda em articulação com entidades europeias como o Insafe e o Inhope.

No que respeita à área de jogos digitais e de vídeo, o projecto adverte que, perante a proliferação de consolas cada vez mais sofisticadas, com ligação à Internet e funcionalidades para a interacção com milhões de jogadores – como a Nintendo DS, a Wii U, a Playstation 4 ou a Xbox One -, “jogar online pode ser uma experiência pedagógica e positiva”, mas “há riscos sociais e tecnológicos associados”, tanto maiores quanto “os jogadores investem grandes quantidades de tempo, energia e até dinheiro”, o que faz desta actividade “uma janela de oportunidade para fins ilícitos”.

Neste contexto, há que vigiar e acautelar várias situações, para garantir a segurança do principal target deste passatempo cada vez mais popular: os jovens.

Antes de mais, avaliar os indícios de dependência ou vício, já que muitos jogos – particularmente os que permitem viver a experiência de um personagem (a qual pode ser melhorada pela compra de objectos ou outros artigos), podem desenvolver um comportamento aditivo.

Depois, ter presente que se existem jogos associados a assinaturas pagas, muitos outros que são publicitados como gratuitos exigem ou sugerem créditos para comprar bens virtuais associados a dinheiro real enviado por via de SMS, Paypal ou cartão de crédito, em troca do artigo que se pretende. Alguns websites e redes sociais tornam bastante fácil a compra de componentes associados ao jogo, e as aplicações gratuitas que se podem comprar e instalar via sistema IOS e Android são as que têm mais itens pagos para progredir no jogo e obter benefícios extra, alerta o projecto Internet Segura.

Darkest Dungeon – © DR

Na Internet nem toda a gente é quem diz ser

Acresce que muitos jogos – principalmente aqueles que geram comunidades online de jogadores, conhecidos por MMORPG ou MMO (massively multyplayer online role-playing games) – provocam “interacções arriscadas”: uma grande maioria dos actuais jogos permite interagir com outros jogadores através de chats, mensagens instantâneas, fóruns, etc., e “na Internet nem toda a gente é quem diz ser”, avisa o consórcio. Portanto, é importante não fornecer dados pessoais ou sobre familiares, pois “há quem se aproveite destas informações para fazer roubo de identidade e usá-la para fins ilícitos”.

De igual modo, é prudente não fornecer o nome próprio para criar personagens virtuais, e associar uma password forte ao perfil de jogador online. Os casos de assédio online ou agressão devem sempre ser denunciados “a quem faz a gestão do jogo” e às autoridades competentes, e nunca se devem marcar encontros reais a partir de relacionamentos virtuais, apela o projecto.

Por outro lado, e como é do senso comum, há que adequar o jogo à idade do jogador. Os videojogos não são apropriados para todas a idades, nem para todos os públicos, e os seus conteúdos não devem nunca criar uma situação desconfortável para a criança ou jovem, provocando-lhe “ansiedade, choque ou frustração”. Existem sistemas de classificação como o PEGI – Pan-European Game Information, “que está presente em todas as caixas de jogos de vídeo vendidas na Europa” e refere, com recurso a ícones, “a idade mínima recomendada para o jogo, assim como conteúdos problemáticos associados (sexuais, de violência, etc.)”.

E a propósito, à data de fecho desta edição ficamos a saber que o Governo pretende limitar o acesso a dados de crianças na Internet, incluindo plataformas de jogos online, já a partir de 25 de Maio, data em que entra em vigor o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD). A proposta de lei (que ainda não é pública mas está a circular entre vários ministérios, segundo o jornal Público), visa que os dados de menores de 13 anos só possam ser tratados pelas empresas que sejam responsáveis por serviços online se existir consentimento dos pais ou dos respectivos representantes legais. Em causa estão serviços dirigidos exclusivamente às crianças mas, ao contrário das plataformas de jogos online, ficam excluídas as redes sociais.

A questão faz parte de um debate bem mais alargado sobre a segurança e a privacidade dos menores na Internet, impulsionado recentemente pelo novo regime jurídico da Comissão Nacional da Protecção de Dados, e que inclui, por exemplo, a polémica com a publicação de fotos de menores pelos pais nas redes sociais (as quais, mesmo depois de apagadas podem ir parar a sites de redes de pornografia, como vem afirmando  Tito de Morais, fundador do Miúdos Seguros na Net).

Redes essas que não são – muito pelo contrário – incólumes relativamente à dependência dos jovens pelos videojogos. Como comenta Henrique Lopes, numa sociedade “cada vez mais isolacionista”, onde “a digitalização dos actos da vida” (com expoente máximo no Facebook ou no Instagram) acabou com “a história de ir brincar para a rua”, “aquilo que faz que uma parte da população seja dependente é uma fragilidade nas redes de socialização”.