Em 2019, a Organização Mundial da Saúde estimava que 2,2 mil milhões de pessoas viviam com deficiência visual ou falta de visão, com mais de mil milhões de casos passíveis de serem tratados ou evitáveis. Foi a partir deste contexto que foi criado o ecossistema myEyes, que consiste numa plataforma na cloud, e em aplicações móveis para Android e iOS, o qual “lança” mensagens em voz alta para criar condições para uma plena integração social de invisuais e de pessoas com capacidade visual diminuída
POR FILIPE SILVA

A ideia de criar o myEyes surgiu de uma forma insólita, no decorrer de uma reunião no Santuário de Nossa Senhora de Fátima, onde se pensavam formas e medidas de inclusão para as pessoas com capacidade visual diminuída. Inicialmente o desafio que nos interpelava era introduzir a sinalética braile de forma generalizada e de fácil acesso em todos os equipamentos sociais, para ajudar as pessoas com esta incapacidade física.

Questionava-se nessa altura como é que uma pessoa com incapacidade visual poderia visitar um espaço público, amplo, com uma multiplicidade de sons e de cheiros, com poucos padrões diferenciados e uma total ausência de sinaléticas adequadas.

Logo à partida, deparámo-nos com um constrangimento, o qual consistia na dificuldade de localização das placas de sinalização: na verdade, caso as pessoas cegas estivessem a deslocar-se sozinhas, as placas seriam inúteis pois não seria possível localizá-las, e caso estivessem acompanhadas, as placas seriam inúteis pois o acompanhante poderia suprir essa dificuldade.

A partir deste momento e a fim de ultrapassar este obstáculo, começámos a conceber um sistema de fácil acesso e em tempo real que pudesse alertar as pessoas, nomeadamente um trigger de voz com informação, que permitiria uma orientação em termos de espaço e do local onde se encontravam.

Iniciou-se então um trabalho muito rigoroso que consolidou uma tricotomia de algoritmia informática, de comunicação e tecnologias diversas de IOT

Sem nenhum horizonte temporal à vista, contámos com a colaboração de um programador para desenvolver uma aplicação que pudesse tornar real este objectivo de “pôr o mundo a falar com as pessoas” e que fosse de fácil acesso a toda a população sem exceção.

À época todo o sistema baseava-se em coordenadas GPS mas, mais tarde e fruto do desenvolvimento tecnológico, foi possível usar outras tecnologias nomeadamente os “beacons” e “tags-NFC”, o que permitiria a utilização da mesma tecnologia para espaços interiores e espaços exteriores, aumentando a precisão e a disponibilidade.

Basicamente, o myEyes destina-se a fornecer a camada de informação relevante a uma pessoa com incapacidade assim que ela precise da mesma, quer seja num percurso para se deslocar, quer seja só para efeitos informativos, como por exemplo saber onde está ou quais são os objetos relevantes para si naquela zona georreferenciada.

O processo inicial foi muito singelo, mas muito motivador, cheio de descobertas do potencial tecnológico desta nova ferramenta.

Afinal poderíamos vir a criar uma espécie de um Waze, um sistema de localização geográfica personificado para pessoas cegas ou com baixa visão!!! Mas ainda faltava criar músculo e tração.

Não tendo na altura qualquer apoio, eu próprio investi bastante tempo e algum dinheiro de forma a tentar criar um protótipo que de alguma forma pudesse responder à questão inicial de partida: será possível, a partir de um simples smartphone, uma pessoa cega ou com baixa visão poder deslocar-se por espaços desconhecidos?

No entanto, os resultados entretanto obtidos nem sempre iam de encontro às nossas expetativas, mas e porque a tecnologia também foi evoluindo de uma forma exponencial, rapidamente se começaram a obter resultados satisfatórios e testados em ambiente hospitalar com pessoas cegas.

Sendo matemático por formação base, tinha as ferramentas essenciais para esse desenvolvimento, mas faltava tudo o resto.

Havia tecnologia, havia mercado, mas era importante tentar perceber o potencial desta nova tecnologia e a forma como poderia ser disponibilizada de forma generalizada a toda a população.

Após alguns contatos com a ACAPO, foi entendido que também havia um largo espectro de utilização desta possibilidade.

Começando a perceber como estavam organizadas as associações que davam suporte às pessoas cegas, começou a ficar claro que a ONCE, a homóloga da ACAPO em Espanha, poderia constituir-se desde logo como um importante parceiro de teste.

A deslocação da nossa equipa a essa instituição permitiu-nos verificar que estávamos num campo profícuo. Desde logo tivemos um feedback positivo e uma recomendação do uso desta tecnologia como um importante auxílio à integração de pessoas cegas no mundo atual, com as barreiras físicas e visuais com que atualmente o espaço físico público apresenta.

O Pedro Almeida, cofundador, arquiteto de profissão, juntou-se nesta altura a este projeto para desenvolvermos a apresentação das sinaléticas, partindo da lógica: “se podemos ouvir as sinaléticas, porque temos que as ler?”

Nesta altura, o text-to-speech era já uma realidade e perto do que é hoje, ou seja, vozes artificias quase iguais a vozes normais.

O Santuário de Fátima adjudicou-nos o primeiro projeto em vésperas da vinda do Papa Francisco. Nessa altura, e tendo já o produto, foi o nosso projeto-piloto.

Assim, e antes da chegada do Santo Padre andámos a colocar beacons na Basílica de Nossa Senhora de Fátima, nos bastidores, nos locais sagrados e muito protegidos, tendo mapeado igualmente toda a zona envolvente. O caminho do Calvário Húngaro, por exemplo, é uma excelente oportunidade para qualquer pessoa poder experimentar esta tecnologia, permitindo acompanhar o caminho da via sacra com meditações e orações alusivas a cada estação.

A empresa, agora já mais madura, passou por uma série de provas, desde bootcamps, a competições de empreendedorismo ou programas de inovação e aceleração, de que são exemplo a Vodafone Big Smart Cities, o BGI Accelerator, Protechting 4.0, entre outras, o que nos permitiu adquirir experiência e know-how, vencer muitos destes desafios e abraçar a possibilidade de participar em projetos relevantes.

Um desses projetos consistiu na implementação da nossa solução em Vilamoura, na marina e praias, bem como no centro da urbanização, sendo de realçar que, com o tempo, a área mapeada sofreu várias expansões. O lançamento do projeto contou com a presença da secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência.

Ainda em 2017, a empresa iniciou o seu processo de internacionalização, inicialmente em Londres, onde se estabeleceram contatos muito importantes com instituições britânicas muito relevantes nesta área de intervenção, nomeadamente com o RNIB, Royal National Institute of Blind People. A participação num concurso, o Fast Track UK 2020, granjeou-nos o primeiro lugar entre centenas de empresas europeias, na área da saúde.

Entretanto, com a irrupção da pandemia do COVID 19 o plano de desenvolvimento e implementação do myEyes no Reino Unido teve de ser repensado, apear de esperamos que este projeto possa ser rapidamente retomado, pois trata-se de um mercado muito importante e exigente.

Adicionalmente, e considerando o potencial e a importância do mercado inglês, foram, desde já, disponibilizados meios financeiros e técnicos para a internacionalização, tendo inclusivamente ficado prevista a constituição de uma sucursal nesse país.

Como sabemos, e para além do descalabro de números de mortes e infetados como não há memória em tempos recentes, a pandemia trouxe também, e como consequência, enormes prejuízos financeiros para as empresas. E, na sua maioria, as empresas tiveram de adaptar-se para não morrer.

A nossa empresa, que antes do início da pandemia estava em velocidade de cruzeiro, também não ficou imune.

A pandemia teve um fortíssimo impacto nossa empresa, pois numa altura em que a inclusão era a palavra de ordem e tínhamos em carteira dezenas de projetos para avançarem para o terreno, de repente e como é compreensível, com as medidas de confinamento, estes projetos prioritários deixaram de o ser e passaram para último plano.

Assim, fomos confrontados com a premente necessidade de nos dedicarmos a outras frentes de ataque. Daqui emergiu, como forma de ultrapassar a crise financeira, uma oportunidade: a de pôr a nossa plataforma ao serviço do combate à disseminação do vírus da Covid19, surgindo assim o TalkTalk, já instalado em mais de 20 cidades portuguesas, todas as capitais de distrito, e também em Loulé, Tavira, Almada, Mirandela, entre outras.

A atual plataforma e após os investimentos iniciais, cresceu significativamente, desde o zero até à atual avaliação no valor de 2M €, com cedência de 15% de capital ao Banco Português de Fomento e ao Fundo Bem Comum.

Estamos agora a trabalhar num projeto de B2C, criando o KIT4Inclusion, projeto premiado com o Troféu Eng. Jaime Filipe do INR. Estamos também a reforçar o backoffice incorporando tecnologias de IA e aumentando a usabilidade, inclusivamente para pessoas com deficiência visual. Esperamos ter este projeto primordial em funcionamento durante 2021.

Resta-nos agradecer ao Fundo Bem Comum e ao Banco Português de Fomento terem acreditado na nossa solução, na nossa equipa e permitirem com isso que o sonho de ajudar estes milhões de pessoas tão necessitadas se torne mais próximo de ser realizado.


O myEyes é uma aplicação móvel que tem como objetivo ajudar as pessoas com incapacidade visual a “ver” o mundo. A partir de uma plataforma tecnológica pioneira, promove uma experiência virtual de comunicação que permite a qualquer pessoa cega ou com baixa visão, e apenas com um smartphone, dialogar com o espaço envolvente, recebendo informações relevantes como descritivos do local e notas históricas.

co-fundadores da myEyes