De acordo com um estudo elaborado pelo Banco Mundial e que analisou 131 economias de acordo com oito grandes indicadores, as mulheres estão a assistir, gradualmente, a um maior número de direitos que até então lhes estavam vedados. Tal não significa, como é óbvio, que a paridade entre géneros seja uma realidade. Em muitas economias e por exemplo, poder-se tirar um passaporte sem o consentimento do marido, administrar propriedades, ter direito a heranças ou abrir uma conta bancária é ainda uma novidade para muitas mulheres. Já no mundo mais ocidentalizado, são várias as vozes que, pelo contrário, estão a alertar para um retrocesso no caminho para a igualdade
POR HELENA OLIVEIRA

“(…) Enquanto líderes mulheres, apelamos aos líderes nos governos, no sector privado e na sociedade civil que reinvistam em políticas e em enquadramentos sociais e legais que possam garantir a igualdade de géneros e a inclusão. O nosso é um apelo para o redobrar dos esforços actuais que são insuficientes em muitos locais. Acima de tudo, procuramos sublinhar que o risco colocado por políticas que tentam travar e corroer a igualdade de género é um risco não só para as mulheres, mas para toda a humanidade na medida em que metade da população está impedida de explorar todo o seu potencial (…)”

Carta Aberta do Grupo de Mulheres Líderes para a Mudança e Inclusão

O presente excerto faz parte de uma carta aberta divulgada e assinada por mais de 30 mulheres, líderes mundiais, incluindo chefes de Estado actuais e anteriores, que alertam para uma erosão da igualdade entre géneros e com algumas acusações fortes face à masculinização do poder. Como declarou ao The Guardian Susana Malcorra, antiga ministra dos Negócios Estrangeiros da Argentina, em alguns países o impulsionamento para políticas que defendem os direitos das mulheres tem sido encarado como algo que “magoa” os homens, em vez de constituir uma oportunidade para mudar as expectativas face aos géneros de uma forma que possa ajudar toda a gente. “Existe um sentimento de que o poder estabelecido está a ser ameaçado pelo simples facto de as mulheres estarem a ganhar respeito”, afirma. A carta junta as vozes de mulheres que trabalham ou já trabalharam em governos e em organizações multilaterais no “apoio à promoção da ajuda humanitária, na defesa pelos princípios dos direitos humanos e respectivas políticas normativas e que lutam pelo desenvolvimento sustentável e na resolução de alguns dos mais complexos conflitos existentes no mundo”, de que são exemplo Helen Clark, antiga primeira-ministra da Nova Zelândia, Irina Bokova, a política búlgara e antiga directora da Unesco, Christiana Figueres, antiga secretária executiva da convenção para as alterações climáticas das Nações Unidas, a presidente da Etiópia Sahle-Work Zwede, a antiga presidente da Irlanda Mary Robinson, entre muitas outras. Malcorra alertou ainda para o facto de que a regressão dos direitos das mulheres estar a ser “clara como o cristal” em diversos países, em particular naqueles em que o populismo conduziu uma vez mais à ascensão do líder “do tipo macho”, e de que são exemplo o Brasil, as Filipinas, a Itália e outros países do leste da Europa.

Na mesma semana (a última de Fevereiro) e em antecipação ao Dia Internacional da Mulher que se comemora a 8 de Março, também Christine Lagarde, numa entrevista exclusiva também ao The Guardian, recordou que alguns países – em particular os que se posicionam na ‘metade com menor igualdade entre géneros’ – poderiam aumentar a dimensão das suas economias em 35% se abandonassem leis discriminatórias e retirassem vantagem das competências que as mulheres têm para oferecer. A responsável do FMI afirmou também que 88% dos países têm restrições contra as mulheres no local de trabalho as quais integram as suas constituições ou leis”. “Alguns [países] proíbem as mulheres de fazerem determinados trabalhos, 59 países não têm legislação contra o assédio sexual no trabalho e existem ainda 18 países que impedem legalmente as mulheres de trabalhar”, acrescentou.

Em Portugal e à semelhança do que aconteceu na Islândia, foi finalmente promulgada a lei que introduz medidas de promoção da igualdade remuneratória entre mulheres e homens por trabalho igual ou de igual valor e, num estudo publicado a semana passada pelo Banco Mundial, intitulado Women, Business and the Law 2019: A Decade of Reforms e sobre o qual versa este artigo, o nosso país encontra-se em 13º lugar num conjunto de 131 economias.

O estudo em causa visa desenvolver uma melhor compreensão de como o emprego e o empreendedorismo são afectados por discriminações legais e analisa 10 anos de dados relacionados com várias decisões económicas que as mulheres têm de fazer ao longo das suas vidas profissionais, seja o primeiro emprego, o equilibrar do trabalho com o crescimento de um filho, a reforma, o iniciar um negócio, o casamento, entre outras.

Os dados começam por ilustrar os enormes progressos no que respeita à igualdade de género em termos legais que ocorreram ao longo da última década. Em 131 economias, foram efectuadas 274 reformas a leis ou a regulamentações que conduziram a uma maior igualdade. Tal inclui 35 países que implementaram leis contra o assédio sexual no trabalho, protegendo mais de dois mil milhões de mulheres do que há dez anos. Todavia, e como nestes casos nunca há bela sem senão, a pontuação média global é de 74.71, o que significa que uma economia “normal” apenas concede às mulheres três quartos dos direitos auferidos pelos homens nas áreas avaliadas.

De acordo com o Banco Mundial, são ainda muitas as leis que continuam a impedir que as mulheres se juntem à força de trabalho ou que dêem início ao seu próprio negócio, sendo que é sabido que a discriminação pode ter efeitos duradouros na sua inclusão económica e na sua participação na esfera laboral.

Os dados também comprovam que as próprias leis podem ser ferramentas importantíssimas para que as mulheres ganhem poder e, feito o “economic case”, a ideia é encorajar os governos a garantir a sua completa e igualitária participação no mercado de trabalho.

© DR

Como evoluíram as leis da paridade ao longo da última década?

O estudo em causa foi elaborado tendo como base oito grandes indicadores, os quais se subdividem em várias questões complementares. A mobilidade, o primeiro emprego, a remuneração, o casamento, o ter filhos, o iniciar de um negócio, a gestão de activos e o acesso a pensões por parte do Estado constituem as oito áreas estudadas. Por exemplo, em muitos países ainda uma mulher não pode, efectivamente, procurar sozinha um trabalho ou ir a uma entrevista se não puder sair de casa sem permissão. E, mesmo que possa ir a uma entrevista, será que o empregador está disponível para a contratar? E, caso seja contratada, terá de se despedir caso contraia matrimónio ou engravide? Se não tiver de o fazer, terá, ao invés, de escolher um trabalho mais mal pago para que consiga equilibrar os seus deveres enquanto trabalhadora com os deveres de ser mãe? E se a lei não lhe permitir gerir os seus próprios activos, afectando a sua capacidade para abrir um negócio? E, no final da sua carreira, a probabilidade é a de que se tenha de reformar mais cedo – para cuidar dos ascendentes – o que implica que a sua pensão de reforma seja inferior à dos homens porque trabalhou menos anos e ganhou menos dinheiro. As questões são muitas e as respostas continuam a demonstrar um longo caminho a percorrer para que a paridade laboral seja uma realidade.

Todavia, o estudo apresenta alguns resultados interessantes. Por exemplo, são seis as economias que atingem a pontuação máxima neste índice elaborado pelo Banco Mundial. Com 100 pontos posicionam-se a Bélgica, a Dinamarca, a França, a Letónia, o Luxemburgo e a Suécia, o que significa que estes países conferem a mulheres e homens os mesmos direitos laborais nas dimensões avaliadas, sendo que há uma década nenhum dos mesmos chegava a esta pontuação, o que comprova a existência de várias reformas positivas ao longo deste período. Portugal, e como já enunciado anteriormente, ocupa a 13ª posição, com uma pontuação de 97.50, bem acima da média global dos países que não ultrapassa os 74.71. Todavia e face aos últimos 10 anos, os progressos são visíveis, com os valores reportados para 2009 a atingirem uma média de 70.06.

A França é o país que, entre os performers de topo, acusa os maiores desenvolvimentos, com uma pontuação de 91.88 há uma década e atingindo agora os 100 pontos, em particular devido à implementação de uma lei contra a violência doméstica, estipulando sanções penais para o assédio sexual no local de trabalho e introduzindo uma licença de paternidade paga. Das 39 economias que pontuam acima dos 90 pontos, 26 pertencem a países da OCDE, oito são da Europa e da Ásia central, duas estão situados na América Latina e Caraíbas (Paraguai e Peru) e as três restantes fazem parte do leste asiático e Pacífico (Taiwan), e do Médio Oriente e do Norte de África – Malta – e África Subsaariana (Maurícias).

Por seu turno e se a média global das 131 economias auscultadas significa que numa economia típica as mulheres têm direito a apenas três quartos dos direitos legais dos homens, no Médio Oriente e no Norte de África, e em média, 17 de 35 indicadores analisados não conferem igualdade de oportunidades entre ambos os sexos, o que se traduz na média mais baixa de todas as regiões analisadas – 47.37.

Em termos da dimensão das reformas, é a África Subsaariana que mais se destaca nos progressos para a promoção da igualdade de género. Seis das economias que mais reformas fizeram incluem a República Democrática do Congo, a Guiné, o Malawi, as Maurícias, São Tomé e Príncipe e a Zâmbia, ao que se juntam mais três fortes “performers” pertencentes ao leste da Ásia e pacífico, à América Latina e Caraíbas e ao sul da Ásia, respectivamente Samoa, Bolívia e Maldivas.

A maioria destes “top reformers” introduziu leis contra o assédio sexual laboral bem como leis não-discriminatórias no acesso ao crédito, com um terço dos mesmos a removerem restrições no que respeita ao trabalho nocturno e a certos tipos de trabalho. Não esquecer, contudo, que estes mesmos países se encontravam também entre aqueles que maiores fossos apresentavam entre homens e mulheres nos indicadores avaliados.

Principais reformas por indicador

  • Mobilidade

O primeiro indicador do estudo do Banco Mundial avalia os constrangimentos em termos de liberdade de movimentos, incluindo se as mulheres podem decidir, de forma independente, onde ir, viajar e viver. E, o longo da última década, este indicador foi o segundo entre os oito, a sofrer menos reformas (com apenas nove).

Mas há boas notícias. O Afeganistão eliminou a exigência de as mulheres casadas terem de ser acompanhadas ou levarem uma autorização escrita dos seus maridos para tirarem o passaporte. A Costa do Marfim também já não exige um certificado de casamento para que as mulheres possam tirar o seu passaporte, o que é um enorme passo em frente numa economia em que muitos casamentos não são formalizados. Também o Iraque e o Kuwait introduziram reformas positivas em termos de passaportes, com o primeiro a deixar de exigir um guardião para o efeito outrora obrigatório para mulheres com menos de 40 anos e o segundo a “deixar” que as mulheres casadas possam tirar um passaporte separado sem o consentimento dos maridos.

A República Democrática do Congo, a Costa do Marfim, as Honduras, a Nicarágua, o Ruanda e o Togo reformaram também as suas leis de família para que a mulher possa escolher livremente o sitio onde quer viver, na medida em que anteriormente esta decisão recaía apenas no marido.

  • Começar um emprego

É o indicador que maiores reformas sofreu ao longo da última década, com quatro economias – a Bolívia, a República Democrática do Congo, a Costa do Marfim e o Togo – a permitirem finalmente que as mulheres tenham um emprego e possam seguir uma profissão sem permissão de outrém. As leis de protecção contra assédio sexual no trabalho foram introduzidas em 35 países, apesar de na Argentina, no Bangladeche, na Geórgia, na Malásia e na Moldávia não existir legislação que inclua penalizações criminais de espécie alguma contra os perpetradores. Adicionalmente, nove países introduziram leis que obrigam à não-discriminação no acesso ao trabalho com base no género.

  • Remuneração

As leis relativas a salários e que representam um dos mais importantes fossos entre homens e mulheres no local de trabalho estão também, e progressivamente, a serem “corrigidas” num número crescente de países. Para além de Portugal (sobre o qual o estudo não fala no que a este indicador diz respeito), também a Albânia, Bélgica, Bolívia, Guiné Equatorial, Libéria, Líbia, Maurícias, Montenegro, Sérvia, África do Sul, Vietname e Zâmbia introduziram leis que obrigam ao salário igual para trabalho igual.

Adicionalmente, 22 economias introduziram igualmente reformas para remover restrições de acesso a determinados tipos de trabalho que mantinham as mulheres fora de certos sectores da economia, de que são exemplo a construção, energia, minas, transportes e água, sendo que na maioria dos casos estas reformas estão relacionadas com a introdução de tecnologias nestas mesmas indústrias.

  • Casamento

As principais reformas relacionadas com o casamento ocorreram através da introdução de leis contra a violência doméstica, com 47 economias a dar este tão necessário passo em frente. Por seu turno, a Bolívia, o Equador, Malta e Nicarágua garantiram ás mulheres os mesmos direitos dos homens para voltarem a casar, com Malta e Timor-Leste a garantirem também o direito ao divórcio. A República Democrática do Congo acabou com a obrigatoriedade legal de as mulheres obedecerem aos seus homens, com a Costa do Marfim, as Honduras, a Nicarágua, o Ruanda e o Togo a permitirem que as mulheres possam ser “chefes de família”.

  • Filhos

Este indicador analisa as leis que afectam o trabalho das mulheres depois da gravidez, com 57 reforma ao longo da última década. Dezasseis economias aumentaram a licença de maternidade para as 14 semanas de lei estabelecidas pela Organização Mundial do Trabalho e 33 introduziram a licença de paternidade paga. A Austrália, o Chile, França, Montenegro, Nova Zelândia, Polónia, Portugal, Singapura e o Reino Unido introduziram a licença parental paga, permitindo a cada um dos progenitores tomar conta dos filhos. Finalmente, a Geórgia, as Maurícias, o México e Samoa proibiram o despedimento de mulheres grávidas.

  • Iniciar um negócio

Mais uma vez a República Democrática do Congo aparece como um dos países que mais reformas na igualdade de oportunidades entre homens e mulheres tem feito, na medida em que também era um dos países onde estas tinham menos direitos. No caso do indicador que analisa os constrangimentos para as mulheres iniciarem e gerirem um negócio, o país em causa já permite que estas registem negócios, abram uma conta bancária e assinem contratos da mesma forma que os homens. Adicionalmente, também proibiu a discriminação de género no acesso ao crédito, tal como fizeram 23 outras economias de todas as regiões com excepção do Médio Oriente e do Norte de África.

  • Gestão de activos

O indicador em causa examina as diferenças entre géneros em termos de leis relativas à propriedade e às heranças, sendo aquele que menos reformas sofreu ao longo dos últimos 10 anos. O Equador passou a garantir às mulheres direitos de propriedade iguais aos dos seus pares masculinos e o Mali reformou a sua lei de heranças para conceder a filhos e filhas e a homens e mulheres que sobrevivam aos cônjuges direitos iguais de herança. Timor-Leste passou a garantir também os mesmos direitos de propriedade e a assegurar que os homens não sejam os únicos administradores das propriedades, o mesmo acontecendo com o Togo, que também confere agora os mesmos direitos de herança a filhos e filhas. Os autores do estudo sublinham, contudo, que este indicador está ainda muito aquém do desejado em vários países.

  • Acesso a pensão de reforma

Em muitos países, a idade de reforma para homens e mulheres é diferente, com os primeiros a reformarem-se mais tarde. Todavia, o que poderia ser considerado um benefício para o sexo feminino é, pelo contrário, mais uma discriminação, na medida em que as pensões das mulheres são geralmente muito inferiores às dos homens. Assim, e ao longo da última década, 22 economias igualizaram, ou estão gradualmente a fazê-lo, as idades em que homens e mulheres se podem reformar tendo acesso à totalidade da pensão, enquanto oito outras economias estão a fazer o mesmo para a reforma com pensões parciais. Muitas pensões de reforma que estão a beneficiar a igualdade de género resultam, contudo, do esforço necessário a uma maior sustentabilidade fiscal.

Editora Executiva