A subida terminou e sabemos que está ali adiante a capelinha, ainda encoberta por matagal e fetos gigantes; é quase uma selva toda esta envolvência. Mas não queremos perder a descoberta e exploração de um vale denso de vegetação que se nos oferece à esquerda do caminho. E sobretudo com o apelo do gorjeio de um ribeiro que se torna cada vez mais nítido.
POR PAULO OLIVEIRA

Percorrer Sintra, as suas imediações e mesurar a serra, embrenhando-me no Parque Natural Sintra-Cascais, remete-me às andanças de outrora no coração de África. Sinto-me novamente nas paragens das matas moçambicanas e dos países ali ao lado.

Nasceu assim um ‘hobby’ tornado pequena empresa, a Portugal Wild Trail, que me proporciona passeios pelo património que ultrapassam a parte natural e em que tropeço amiúde, com relíquias históricas, religiosas, arquitectónicas e arqueológicas. Alguns marcos fazem parte de percursos oficiais e são trilhos do Turismo de Natureza. Outros resultam de um trabalho de sapador, da procura da pepita perdida no meio do cascalho.

Começo por compilar informação, analisando mapas militares da série M888 e escala 1/25 000 e acompanhando fóruns de BTT, de fotografia aérea e os Google Maps e Earth: toda a panóplia disponível. A seguir parto para o terreno é a passada seguinte, examinando a coerência entre os vários pontos. Afiro a segurança, a viabilidade e a beleza da zona que atravesso. Consegue-se? Vale a pena? Se as respostas forem positivas, podemos vir a ter o trilho aprovado.

Dos locais mais esconsos, pouco percebidos ou divulgados, e que aprecio e visito viciosamente, brota a minha colecção de ‘lugares secretos’. Não tomo o nome que a TSF já usou em 2017 numa série de pequenos programas, pois já assim eu os classificava. E trago, ou acompanho-vos, até um deles, escondido nas faldas da encosta norte da serra de Sintra: o Senhor do Rio Velho, com ermida, vale, caminho e regato.

Talvez nem todos tenham ouvido falar do Caminho do Rio do Milho, do Caminho da Boca da Mata, das aldeias de Gigarós e da Eugaria, nem sequer do outro convento perdido na serra, o de Sant’ Anna do Carmo. É mais fácil apercebemo-nos do ‘convento em cortiça’, o dos Capuchos. Alguns já se terão deslumbrado do Penedo – a aldeia do Espírito Santo da Serra de Sintra – com o horizonte profundo azul e verde, o oceano e o campo fértil que orla o antigo rio das Maçãs. Todos estes nomes fazem parte da constelação em torno deste Senhor do Rio Velho que repousa em paz imensa espreitando o vale de Colares.

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Partindo do centro da vila de Colares estamos apenas a meia hora de caminhada saudável, não muito exigente, mato adentro e serra acima. Prefiro subir pelo Caminho da Fonte Velha, uma das vias de entrada neste verde luxuriante. De repente estamos dentro de um silêncio quase perfeito. Algum chilrear dos pássaros diz-nos que não estamos adormecidos, mas apenas embevecidos neste inebriante esplendor. A seca nunca se faz sentir nestes recônditos da encosta norte. O musgo, essa bússola natural, confirma isso mesmo, pois existe de forma perene e recobre mais a parte voltada a norte de rochedos e troncos, onde o sol não toca mas que mais recebe o vento húmido.

A subida terminou e sabemos que está já ali adiante a capelinha, ainda encoberta pelo matagal e fetos gigantes; é quase uma selva toda esta envolvência. Mas não queremos perder a descoberta e exploração de um vale denso de vegetação que se nos oferece à esquerda do caminho. Mais ainda, com o apelo do gorjeio de um ribeiro que se torna cada vez mais nítido. Não são os trópicos, não é África nem a Amazónia, mas há aqui espécies vegetais de um verde brilhante, luzidio, que não encontrei em qualquer outro ponto em Portugal.

Facilmente, e mesmo sem trilho aberto, conseguimos alcançar o fundo e a linha de água, o ribeiro que corre e cascateia. Há quem não resista em descer e tocar as águas da cascatinha do ribeiro. Sim, estamos a chegar, este é já o ‘Rio Velho’. Um ribeiro belo e sonoro que se ousa para dentro deste verde. Mais acima na serra chama-se é o ribeiro dos Capuchos, que nasce perto do convento. Aqui, toma o nome da ermida que buscamos. No vale que se expande no sopé da serra será já a ribeira da Abreja, quando se verte na de Colares, o antigo Rio das Maçãs.

Parece não haver força que nos descole da paz deste espaço idílico. Por fim voltamos a trepar e galgamos as poucas centenas de metros que nos separam da capelinha. Estamos na antiga ermida do Senhor do Rio Velho. Tudo em redor vem beber o nome a este ‘rio’ – Villa do Rio Velho, Quinta do Rio Velho, a ermida, o caminho…

Desta Ermida pouco se sabe, nem sequer a data, apenas que é dedicada a Nosso Senhor do Rio Velho, mas inicialmente dedicada a Santo Adalberto Drepanense, santo da ordem carmelita, que habitava no Convento de Sant’ Anna do Carmo aqui próximo.

O regresso? Deixo a cada um o modo de regressar a Colares. Seguindo pela direita, na versão curta, o Caminho do Senhor do Rio Velho leva-nos à Boca da Mata e ao Penedo, deslizando daí até Colares Velho, ao Pelourinho, contemplando quintas famosas como a do Pombeiro, a Mazziotti e a da Fonte Velha.

Aconselho sempre a ‘versão longa’, tomando o caminho da esquerda e subindo até à Relíquia ou ‘casa do mexicano’ como lhe chamam os locais, e à Quinta de Fora, contígua ao antigo Convento de Sant’ Anna do Carmo. É uma pintura a vista daqui de cima, o convento com Colares mais abaixo e o mar como pano de fundo. Na capela do convento jaz D. Dinis Mello e Castro, um dos impulsionadores da vila no século XVI, e a ele se deve a igreja da Misericórdia local e o palacete construído no local do antigo castelo. Aqui esteve gente de renome, como Alexandre Herculano que no local escreveu o poema Cruz Mutilada dedicado ao cruzeiro no pátio.

A Quinta de Fora e Sant’ Anna do Carmo – que poderá ser um hotel rural, mantendo a traça – foram recuperadas e estão hoje nas mãos de um americano, Daniel K Thorne, e a Fundação Thorne é uma das patrocinadoras do Global Heritage Fund para protecção do património e vida selvagem, assim como do Dian Fossey Gorilla Fund.

Os nossos passos levam-nos ainda a cruzar duas das ‘aldeias perdidas’ da serra de Sintra, duas pequenas jóias, Gigarós e a Eugaria, antes de apanharmos a estrada nacional que nos remete novamente a Colares. A elas voltaremos em breve noutro apontamento destes Lugares Secretos, afinal aqui tão perto.

Paulo Oliveira

Jornalista e Autor. Director da Portugal Wild Trail