Definir a missão do líder na sociedade actual foi um dos reptos lançados no 6º Congresso Nacional da ACEGE. E se, no geral, existiu unanimidade na eleição de alguns dos valores imprescindíveis a uma boa liderança – como a ética, a transparência e o respeito para com todos os stakeholders – na essência, cada orador optou pela sua própria visão face à temática em debate. O que resultou num desfilar de testemunhos honestos e inspiradores
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Se liderar não é tarefa fácil, fazê-lo à luz do amor ao próximo, mais complexo se torna. Foi com esta complexidade em mente que os oradores convidados para falarem sobre a missão do líder, e em tom intimista, partilharam com a audiência as suas principais dificuldades e desafios, em simultâneo com os princípios fundamentais de que não abrem mão no exercício de tal “obra”. Se João Pedro Tavares, vice-presidente da Accenture Portugal, elegeu a “liderança de serviço” como o caminho a ser trilhado pelos que carregam nos ombros o peso da responsabilidade, a administradora na CGD, Maria João Carioca, enfatizou que a “força deve ser sempre superior ao medo e à ambição”. Por seu turno, Vasco de Mello, presidente da Brisa, chamou a atenção para a importância da gestão de longo prazo, enquanto “legado” que a empresa deve deixar para a sociedade no seu todo. No painel em causa não faltou também um “gostinho histórico”, com o Pe. Vasco Pinto Magalhães a demonstrar que muitas das qualidades dos líderes “modernos” estão enraizadas nos traços de perfil dos “superiores gerais”, os religiosos eleitos para governar a Companhia de Jesus, traços estes incorporados e “ditados” pelo próprio Inácio de Loyola.

Errar é humano, acertar é muito mais humano

© Arlindo Homem - João Pedro Tavares
© Arlindo Homem – João Pedro Tavares

Foi o primeiro orador do congresso e também o primeiro a classificar de corajoso, e consistente, o tema “uma cultura de liderança e gestão à luz do amor ao próximo”. Num tom muito pessoal, o vice-presidente da Accenture Portugal deu início ao seu testemunho sublinhando o que designou como “fundações da sua vida” – aquilo que contribui para o que realmente é e não o que se afigura como efémero e temporal, como são os cargos e as responsabilidades que lhe são atribuídas. E defendendo igualmente o que muitos dos demais participantes iriam igualmente sustentar ao longo do dia, não há lugar à existência de duas éticas – uma pessoal e outra profissional – mas uma só, tal como não existem duas pessoas em uma.

Respondendo ao repto do tema do painel – a missão do líder na sociedade actual – João Pedro Tavares elegeu quatro grandes desafios, em conjunto com os princípios que lhes deverão estar adjacentes ao longo desta caminhada, aos quais adicionou, publicamente e no final da sua intervenção, o seu próprio compromisso de liderança.

O primeiro desafio prende-se com a criação de valor, considerando legítima a criação de riqueza e o facto de esta constituir uma das finalidades da empresa. Todavia, alerta, “que não se confunda criação de riqueza com lucro” – na medida em que a empresa deverá criar a primeira para os seus stakeholders – e nunca a “qualquer custo” ou “por curto prazo, comprometendo o futuro”. Recordando Bento XVI, o qual escreveu, na encíclica Caritas in Veritate, “(…) a actividade económica (…) deve ter como finalidade a prossecução do bem comum (…)”, o vice-presidente da Accenture Portugal defende a partilha do valor criado, “como primeiro exercício de distribuição e reconhecimento do outro – seja no mérito, no ganho ou no resultado”.

Como segundo desafio, o consultor optou pelas “pessoas como centro de uma comunidade que é a empresa” [tema discutido num outro painel], começando por confessar que, ao longo da sua carreira, sempre privilegiou a eficácia e a eficiência como o primado da organização. Todavia, ao longo do caminho percorrido, e apesar de lhes continuar a conferir importância, compreendeu igualmente que o centro, em qualquer que seja a organização, está nas pessoas, o que é diferente de o mesmo se focar nos profissionais. No que respeita à comunidade, João Pedro Tavares recordou ainda a origem da palavra “corpo-ration” – no sentido de “corpo” e também de “com-pany” – “com panis”, no sentido de “partilha do pão”.

O terceiro desafio enunciado pelo vice-presidente da Accenture está relacionado com o verdadeiro “serviço da liderança”. Afirmando que esta última, muito mais do que um exercício de poder ou de um cargo, tem de ser encarada como um “serviço”, João Pedro Tavares sublinhou ainda que o seu contrário se materializa na “ausência de responsabilidade pessoal e na falta de um motor próprio para lutar e transformar”.

Referindo um questionário sobre liderança no qual se interrogava sobre qual a característica mais apreciada num líder, 70% dos respondentes privilegiaram a honestidade, ou o carácter, este último fazendo parte da etimologia da palavra “ética”. E, como declarou também, “viver com ética e baseado em valores é viver com sentido de missão”, sendo que viver e compreender os valores das nossas organizações significa também entender o que se pode dela esperar, bem como das pessoas que a integram, “eliminando a dúvida, a falta de critério, a conveniência e o aproveitamento próprio”.

O vice-presidente da Accenture ofereceu também a sua interpretação no que respeita a viver solidamente ancorado a valores cristãos: “é não trocar a coragem da verdade pelo que é politicamente correcto; é não comprometer a honra e a honestidade pelo sucesso a qualquer preço; é procurar servir antes que me sirvam; é saber atender ao bem comum; é saber perdoar e ajudar os outros a construir apesar dos erros, pois se errar é humano, acertar é muito mais humano. Mas é também construir e assumir a partir dos meus erros e, com isso, pedir perdão”.

Defendendo ainda a relação biunívoca entre amor e verdade, enquanto uma cultura em que ambos se promovem mutuamente, João Pedro Tavares sublinhou ainda que a humildade é o caminho para se chegar ao próximo. E, perante vários dos seus colaboradores que se encontravam presentes na plateia, comprometeu-se, publicamente, a seguir os princípios que enumerou ao longo da sua exposição.

Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de João Pedro Tavares, clique aqui.

© Arlindo Homem - Pe. Pinto Magalhães
© Arlindo Homem – Pe. Pinto Magalhães

“Empresas são pessoas para as pessoas”

Remontando ao século XVI e ao reconhecimento da Companhia de Jesus como ordem religiosa, o Pe. Vasco Pinto Magalhães, também ele um jesuíta, fez um paralelismo histórico entre o perfil do líder cristão e os critérios de escolha do superior geral, o religioso eleito para governar, com carácter vitalício, a Ordem criada por Inácio de Loyola.

Afirmando que a própria Companhia de Jesus se assemelhava a uma multinacional – com os seus colégios, universidades e viagens, símbolos da sua orientação educacional e missionária – o Pe. Pinto Magalhães traçou os seis traços do perfil do superior geral para “se ser líder de pessoas e obras”. Seguem-se “as qualidades de liderança” segundo Inácio de Loyola, tendo em conta que, de acordo com o também co-fundador do Centro de Estudos de Bioética, “as empresas são pessoas para as pessoas”:

  • Espiritualidade ou união e familiaridade com Deus, quer na oração, quer na acção. “Como seria possível imaginar um líder cristão, por mais boa vontade e agilidade que tivesse, se não fosse reconhecido como pessoa aberta à graça de Deus, ao seu discernimento, sem ser um homem ou uma mulher de fé adulta?”, questionou.
  • Testemunho: “que seja exemplo de virtudes e nele deve resplandecer o amor ao próximo e à empresa/companhia”. Nesta característica inaciana, Pinto Magalhães alerta ainda para a importância da verdadeira liberdade interior: “que as paixões não perturbem o seu juízo”, ou, por outras palavras, que o líder seja capaz de delegar e de dialogar; que “ligue bem a exigência e a bondade” e que tenha a devida fortaleza para suportar as fraquezas dos outros e, ao mesmo tempo, empreender criativamente grandes coisas”. Ou, em linguagem mais empresarial, que seja “notável” nas relações humanas, que enfrente o fracasso e que não perca a visão de conjunto nem a sabedoria;
  • Grande inteligência e juízo, tanto nas questões especulativas como nas práticas: neste traço em particular, o Pe. Pinto Magalhães chama a atenção para três dimensões/capacidades por excelência – ciência, prudência e discernimento – que devem ser desenvolvidas incessantemente e sem as quais não é possível a avaliação contínua (que constitui uma das chaves da espiritualidade inaciana) dos líderes.
  • Perseverança: é considerada como uma das qualidades que maior importância tem para a execução, e significa “manter-se em acção de uma forma anímica e inteligente, sem se deixar levar nem pela euforia nem pela depressão”, ou seja, em ambiente corporativo, saber lidar com os altos e baixos;
  • Saúde, apresentação externa, idade: “convém que seja uma pessoa do seu tempo, culturalmente e no modo de estar, desempenhando o cargo para melhor glória de Deus e bem do reino, (…) que se note facilmente a pureza da sua intenção última”. Um convite à transparência, à negação de “jogos escondidos” nos objectivos e a uma vida sem máscaras, de que a corrupção é exemplo;
  • Atenção aos dons exteriores: “ao bom nome, à credibilidade para os de dentro e para os de fora e tudo o que possa favorecer a autoridade e o serviço da causa”. Pinto Magalhães recorda ainda que, longe do significado que lhe imputamos, “autoridade” significa ser autor (na medida em que a palavra tem origem em “autoria” e não em “poder”).

Para terminar e ainda de acordo com a lógica inaciana, se ao líder faltar alguma destas qualidades, “que não lhe falte uma grande bondade e amor à empresa/companhia, juntamente com um juízo recto e boas letras”. A importância da questão cultural ou “as boas letras” significam estar presente no mundo, não como um “extraterrestre” mas como alguém que encarna uma realidade concreta, tal como o 1º passo de Cristo é encarnar: “estar presente na realidade, estar no mundo sem ser do mundo, para transformar o mundo”. Adicionalmente, a prática inaciana possui ainda várias similaridades com algumas características obrigatórias presentes no ambiente corporativo actual: uma forte rede de intercomunicação e uma comunicação contínua entre todos os seus membros, o que fizeram, nas palavras do padre jesuíta, de Santo Inácio de Loyola “um grande gestor”.

Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra do Pe. Vasco Pinto Magalhães, clique aqui.

A importância da proximidade no exercício da liderança

© Arlindo Homem - Mª João Carioca
© Arlindo Homem – Mª João Carioca

Considerando o tema proposto como muito desafiante, Maria João Carioca identificou os três desafios iniciais com os quais se deparou no caminho que percorreu para falar neste congresso. Desde logo e no que respeita à missão do líder na sociedade actual, “quantas vezes definimos essa missão em torno do que o líder produz ou do que pretendemos obter em termos de resultados e de lucro” e “não de acordo com aquilo que pode oferecer e/ou dando condições aos outros para serem diferentes e atingirem a sua própria plenitude”. O segundo desafio identificado prende-se com o facto de, mais facilmente do que gostaríamos, a missão poder levar a “momentos de depressão e nem sempre nos lembrarmos de que esta é apenas um caminho, para o qual precisamos de todas as nossas forças e de nunca desistir”. Por último, a administradora na caixa Geral de Depósitos confessou igualmente que lhe é difícil falar de liderança na 1ª pessoa, na medida em que nunca se esquece de todos os que a inspiraram a ser uma líder melhor.

Enquanto princípios que defende serem menos comuns, mas imprescindíveis, para um bom líder na sociedade actual, Maria João Carioca elege o “cultivar da alegria”, num sentido basilar e profundo, sendo imperioso “saber dar graças pelo que somos e por quem temos”, na medida em que facilmente se resvala para a “picardia e para a agressividade”. Assim, a gestora define esta alegria como a capacidade para “arregaçar as mangas” e ter em mente que “a força é sempre superior ao poder do medo e à ambição”.

Assim, é dever do líder projectar nos outros essa força e perseverança – em conjunto com essa “alegria” que tanta falta faz no mundo empresarial. Também dever do líder é o de assumir a exigência e ser, em simultâneo, um “pilar de apoio para os que se lideram”: o primeiro a exigir, mas também o primeiro a dar guarda, elegendo a proximidade no exercício da liderança.

O “bom” líder deve ainda, de acordo com Maria João Carioca, “não subestimar o outro, não ser com ele exigente porque não acredita nos seus talentos e não lhe conferir o espaço necessário para que este atinja a sua plenitude”. Adicionalmente, o líder deve igualmente ser o primeiro a assumir a responsabilidade e a dar a cara. A dupla “exigência + responsabilidade” permite ainda, acompanhar “o nosso crescimento e o dos outros”.

Citando ainda o Papa Francisco e as suas ideias de bem comum e paz social, a gestora da CGD recorda ainda que “o tempo é superior ao espaço, que a unidade é maior que o conflito, que a realidade é mais importante que a ideia” e, finalmente, que “o todo é maior que as partes”.

Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de Maria João Carioca, clique aqui.

Vasco de Mello: Mais do que deixar impérios, o mais importante é criar valor de longo prazo para toda a sociedade

© Arlindo Homem - Vasco de Mello
© Arlindo Homem – Vasco de Mello

Para além da necessária maximização do lucro, o presidente da Brisa define como missão do líder “gerir e dar reposta a um conjunto alargado de desafios” e tendo em conta quatro grupos de stakeholders por excelência: accionistas, colaboradores, clientes e sociedade.

Enquanto missão concreta, Vasco de Mello elege o “desenvolvimento da missão e visão”, a “gestão dos recursos”, sempre escassos a seu ver, “conseguir inspirar, comunicar, envolver e motivar” as pessoas e “gerir pelo exemplo”, ajudando os colaboradores a se superarem na concretização dos objectivos que lhes são propostos.

No que respeita a uma criação de valores na empresa, com eco nos princípios fundamentais que também servem à sociedade, o responsável pela Brisa definiu ainda as expectativas face aos diferentes stakeholders. “Os accionistas esperam o justo retorno do seu capital, por forma a assegurar o crescimento”, diz, com a “plena consciência de que se não houver lucro, não existe capital e sem capital não há emprego”. Já os colaboradores podem – e devem – esperar um bom ambiente laboral, o reconhecimento do seu trabalho, tanto a nível individual, como em equipa, sem esquecer a componente de desenvolvimento pessoal e profissional, como actos contínuos. Também sem esquecer os clientes, Vasco de Mello colocou o ênfase não só na resposta às suas necessidades reconhecidas mas, e muito importante, sublinhou, “na antecipação de outras”.

Falando por último do stakeholder “sociedade”, esta espera que o líder, e a empresa, desenvolvam a sua actividade de forma ética e sustentável, sendo de maior importância a gestão de longo prazo.

E, a este propósito em particular, o presidente da Brisa afirmou ainda que, “mais do que deixar ‘impérios’”, o importante é, ao invés, “criar valor de longo prazo para toda a sociedade”, almejando sempre que esta seja mais justa.

Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de Vasco de Mello, clique aqui.

Valores, Ética e Responsabilidade