“Mil milhões de mulheres violadas é uma atrocidade. Mil milhões de mulheres a dançar é uma revolução”. É com esta comparação que o movimento One Billion Rising convida, nos últimos 15 anos, mil milhões de mulheres e homens em todo o mundo a dançarem como forma de protesto e alerta para a violência extrema que, continuamente, é exercida contra as mulheres na esmagadora maioria dos países do planeta. Foi ontem, dia 14 de Fevereiro, e Portugal dançou também
POR HELENA OLIVEIRA

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Desde que a activista e dramaturga Eve Ensler lançou a campanha One Billion Rising para acabar com a violência contra as mulheres que lhe fazem duas perguntas recorrentes: é este um movimento de dança ou manifestamente político? Um protesto ou uma celebração global gigantesca? Depois do dia de ontem, 14 de Fevereiro, data escolhida por Ensler para celebrar o “dia do ‘levanta-te’”, a promotora da iniciativa global afirma nunca ter visto nada assim. A celebrar o 15º aniversário da campanha, cujo nome tem origem numa estatística da ONU que afirma que “mil milhões de mulheres — uma em cada três — serão violadas e agredidas no planeta durante a sua vida”, a iniciativa global propõe que um número igual ou superior de mulheres e homens se junte em todo o mundo, dançando, para combater a violência.

Com esta violência a incluir abusos domésticos, violações, mutilação genital feminina, tráfico, incesto, assédio sexual, guerra e todas as outras formas possíveis de violência, não é de todo surpreendente que a campanha tenha dado origem a diferentes tipos de manifestações em cada um dos 190 países nos quais são planeados os eventos do dia 14 de Fevereiro.

Em Portugal, estiveram marcados cerca de 20 eventos, do norte ao sul do país, e associações não-governamentais como a ComuniDária, que organizou um flashmob ou a Associação Portuguesa de Apoio à Vitima – que, por iniciativa da eurodeputada socialista Ana Gomes, criou o evento “@ menin@ dança?“, uniram-se na mesma luta, ou, melhor dizendo, na mesma dança pelo fim da violência contra as mulheres. Outros organismos como a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, a UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), a Amnistia Internacional (em Portugal) e a companhia Chapitô, em conjunto com vários organismos locais, entre escolas e associações, dançaram igualmente para alertar o mundo para os abusos contínuos que mulheres e raparigas em todo o mundo continuam a sofrer.

Um pouco por todo o planeta, as manifestações incluem desde o primeiro flashmob a ter lugar em Mogadíscio, na Somália, à ilha de Bute, na Escócia, sem esquecer as mulheres Maori, na Nova Zelândia ou as do Bangladesh que, estima-se, superaram os 25 milhões de participantes, passando por S.Francisco, S.Paulo, Nova Deli, entre muitas outras e com a Itália a bater recorde de participação, com 50 cidades aderentes.

Ensler teve a ideia para a campanha One Billion Rising depois de ter trabalhado no Congo, onde fundou a City of Joy, em Bukavu, uma associação que ajuda mulheres que conseguiram sobreviver à violação (infelizmente, muitas acabam por morrer). O Congo tornou-se tristemente conhecido como “ a capital das violações” e “o pior lugar do mundo para se ser mulher”, dados confirmados pela ONU, que participa igualmente no projecto desenvolvido por Ensler e cuja premissa afirma que mesmo a pessoa mais traumatizada e brutalizada não se pode limitar apenas a ser uma receptora de ajuda estrangeira, podendo almejar ser o que quiser na vida e, de preferência, líder politica. De acordo com dados da ONU, estima-se que desde 1998 pelo menos meio milhão de mulheres foram violadas no Congo e de formas particularmente brutais. E uma das respostas a esta brutalidade foi a construção da Ciy of Joy, um paraíso para as sobreviventes da violência de género, onde vivem pelo menos durante seis meses e recebem educação e formação. A organização é fruto de uma visão partilhada que afirma que as mulheres não precisam só de ajuda, mas também de poder.

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De regresso ao movimento One Billion Rising, Ensle revela que foi a combinação dos media sociais e dos movimentos feministas mundiais que deu origem à “descolagem” global desta campanha. No sul da Ásia, e três semanas depois do Natal, Ensle ficou chocada, como também o resto do mundo, com a violação em grupo de que foi vítima a estudante de medicina Jyotu Singh, em Nova Deli. E, apesar de dificilmente existir um pior motivo do que este, a verdade é que a mediatização do que aconteceu à rapariga indiana conferiu um novo ímpeto à campanha. “Na Índia, o One Billion Rising está no centro da maior exposição pública de violência sexual de que há memória”, afirmou a activista numa entrevista ao website Alternet.org.

Kamla Bhasin, uma activista feminina que acompanha a questão da violência contra as mulheres há mais de trinta anos, afirma que cada país desenvolveu uma abordagem diferente para não deixar passar o dia 14 de Fevereiro em claro. Desde o surpreendente movimento de massas no Bangladesh, preparado pela organização não-governamental Brac, uma das maiores do mundo, fundada em 1972, e que juntou, numa corrente humana, cerca de 25 milhões de participantes, até à timidez do evento no Afeganistão, que não contou com música nem com dança, mas com muita gente a querer dizer “basta”, o One Billion Rising tem marcado presença num número cada vez maior de locais no planeta.

A ideia de dançar para colocar um ponto final na violência contra as mulheres começou por atrair vários opositores, mesmo entre os activistas despertos para esta atrocidade. Mas, no meio de centenas de vídeos filmados para o efeito, um deles consegue demonstrar de que forma a ideia de Ensle inspira e atrai cada vez mais seguidores: aquele que lançou o hino da campanha, escrito e produzido pela activista em conjunto com a vencedora de um Grammy , Tena Clark, intitulado Break the Chain e posteriormente coreografado, para efeitos de flashmob em todo o mundo, pela reconhecida bailarina Debbie Allen. Alguns nomes sonantes de Hollywood também se uniram ao movimento, como é o caso de Robert Redford ou Jane Fonda.

Todavia, os governos ainda não reconheceram o dia 14 de Fevereiro – escolhido para dar um verdadeiro sentido não ao comercial dia dos namorados, mas à capacidade de amar – como aquele em que se assinala a violência contra as mulheres. Mas a verdade é que 15 anos depois, Ensle pode orgulhar-se de poder contar com activistas, escritores, pensadores, artistas e celebridades que se juntam aos milhões de apoiantes em todo o mundo, mulheres e homens – que lutam pela aprovação de leis e políticas que possam eliminar, de vez, a violência contra as mulheres.

Movimentos da sociedade civil são os que maior impacto têm
De acordo com um artigo publicado na Social Innovation Review, da Universidade de Stanford, as políticas de combate à violência contra mulheres variam consideravelmente de país para país. E os estudos que tentaram perceber este tipo de diferenças apontam, invariavelmente, para a proliferação de factores culturais, económicos e políticos. Todavia, muito pouco se conhece no que respeita à forma como as actividades da sociedade civil conseguem imprimir algum progresso nesta questão particular de direitos humanos.

Uma nova análise realizada pelos cientistas sociais Mala Hutn, da Universidade do Novo México e por S. Laurel Walden, da Universidade Purdue , demonstra os excelentes feitos e impactos que a sociedade civil tem vindo a produzir nesta área. Num estudo intenso e extenso, que abarcou 70 países, ficou claro que a mobilização por parte de movimentos feministas autónomos possui o impacto mais duradouro nas políticas para eliminar a violência contra as mulheres.

Este estudo faz parte de um projecto alargado apoiado pela National Science Foundation, cujo principal objectivo é analisar as leis e políticas relacionadas com a igualdade de género em todo o mundo. Adicionalmente à questão da violência contra mulheres, Htun e Weldon elegeram áreas como os direitos reprodutivos, o direito da família, as licenças parentais, os cuidados na primeira infância e os mecanismos com vista à promoção da representação política.

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Htun e Weldon reuniram uma equipa de pesquisa para levar a cabo um questionário de dimensões gigantescas, cujo objectivo é o de seguir as políticas de desenvolvimento durante um período de 30 anos em cada um dos 70 países. A partir da utilização de informação retirada de documentos governamentais, de relatórios provenientes de organizações internacionais e de literatura secundária, a equipa conseguiu pintar um retrato global das políticas de combate à violência contra as mulheres.

As alterações nas políticas progressivas relacionadas com esta área têm como origem não só os movimentos sociais de mulheres, como afirma Htun, “mas essencialmente os movimentos que, de forma explícita, tentam elevar o estatuto das mulheres e expandir as suas oportunidades”. E uma das descobertas deste estudo rompe com uma ideia convencional: conseguir que mais mulheres sejam eleitas para cargos políticos não se correlaciona com resultados melhores no que respeita à igualdade de géneros.

“Considero que estes resultados são de particular importância”, comenta, no artigo já mencionado, Anne-Marie Goetz, conselheira para o organismo da ONU relacionado com a paz e segurança para as mulheres. “Os decisores políticos em todo o mundo tentam encontrar a bala de prata, a solução tecnocrata que irá fazer toda a diferença. Mas o que Htun e Weldon querem reafirmar é o facto de os únicos lugares nos quais é possível encontrar uma verdadeira mudança nas políticas – e nos resultados – são aqueles onde existe um eleitorado político significativo para imprimir essa mudança”.

Este estudo, em conjunto com outros que fazem parte do projecto, ilustra o facto de que a igualdade de género não é apenas uma questão singular mas, ao invés, muitas questões singulares diferentes. Por exemplo, as políticas de direito da família são mais determinadas pela relação existente entre o Estado e a religião organizada do que pelos movimentos feministas. “O nosso principal argumento no projecto diz respeito ao facto de as políticas que conduzem à mudança diferirem de questão para questão”, diz Htun. “E estas questões são completamente diferentes no que respeita aos actores em causa, aos interesses em causa e, consequentemente, ao que é necessário para as políticas se alterarem”.

Goetz afirma que o tipo de análises de dados realizadas por estes tipos de estudos são “absolutamente cruciais” para os decisores políticos, para que estes saibam as condições mediante as quais poderão alcançar progressos nos resultados das políticas implementadas. O estudo levado a cabo por Htun e Weldon “reforça o argumento para a construção de capacidades nas organizações de mulheres e assegurar que estas têm um ambiente operacional que lhes permita avançar com o seu trabalho”.

NOTA: Visualize o pequeno filme da campanha e partilhe-o. Ao fazê-lo, está a ajudar o movimento OneBillionRising.

https://ver.pt/Lists/docLibraryT/Attachments/1600/hp_20130213_LevantaTeEdanca.jpg

Editora Executiva