Muita gente associa “Apocalipse” a algo de assustador, a um desastre, mas de facto não tem de ser assim. Apocalipse, do grego apokálypsis, significa revelação, o momento em que algo nos é revelado. Pode então ser o desmoronar de muita coisa porque passamos a ver o mundo com outros olhos, mas isso não tem de ser necessariamente uma tragédia. Pode ser a porta de entrada para uma vida melhor…se fizermos alguma coisa com a visão que agora temos
POR ANA ROQUE

Tenho pensado muito na quantidade de coisas que muitos de nós descobrimos nos últimos tempos, fruto desta situação de pandemia.

Redescobrimos o silêncio de uma paragem geral, semelhante ao tempo em que tudo parava ao domingo e em que estávamos todos em casa. Descobrimos (os privilegiados, naturalmente) uma nova forma de estar em casa, de nos relacionarmos com os outros – há casais e famílias que se redescobriram e perceberam a importância de estarem juntos de uma outra forma que não seja a azáfama do dia-a-dia com horas em filas de carros, almoços de pé ou na cantina da empresa e regressos tardios para jantar e ver uma qualquer coisa na TV antes de dormir.

Descobrimos uma outra forma de descansar e de pensar, de ter ideias.

Percebemos melhor o que nos alimenta e o que queremos que nos alimente factual e metaforicamente.

Descobrimos uma nova forma de consumir. O que nos dá mesmo prazer comprar, quanta roupa precisamos, de que roupa?

Passámos a fazer coisas que não fazíamos há muito, como jogar um jogo, conversar, ler um livro com calma.

Isto somos nós, os privilegiados, mais uma vez, mas os privilegiados do meio, a classe média que, ao longo do tempo, é quem tem estado à frente de muitas das revoluções.

Há alguns anos em Londres fui visitar o museu do lar. Logo no início havia um texto a explicar como tinha sido definido o lar/a casa cuja evolução ia ser retratada. E diziam que tinham escolhido a classe média porque a classe trabalhadora estava demasiado presa à subsistência para poder mudar e a classe alta estava demasiado acomodada para querer mudar. Foi então a classe média que foi mudando a casa e, de alguma forma, o mundo.

A classe média ao ver (como nos está a acontecer) um mundo que poderia ser diferente em tantos aspetos e tendo competências e conhecimento, tem a responsabilidade (se isto for verdadeiramente um apocalipse) de promover a mudança que uns não podem e outros não querem fazer. Trata-se de transformar a culpa que muitas vezes sentimos em relação à nossa “fortuna” numa responsabilidade, de assumir a nossa fortuna como uma possibilidade de estar também ao serviço dos outros.

Para que possamos fazer isso, parece-me, é importante fazer um ponto da situação: o que vimos da nossa vida e da vida dos outros, sobretudo dos que estão a passar maiores dificuldades, o que consideramos que tem de ser diferente e o que estamos dispostos a fazer para que assim seja.

Pode ser importante começar por fazer uma releitura de nós próprios, perceber qual é o nosso propósito, qual é a força que nos move.

Assumir, tal como refere Tolentino de Mendonça, que “Nós somos também um segredo para nós mesmos e temos de aceitar-nos assim. Somos um enigma, uma pergunta e temos de aceitar isso. Caso contrário não teremos paz”1. Aceitar isso e fazer a pergunta, tentar chegar mais perto do nosso segredo.

Perceber, por exemplo, quais são os nossos valores, sendo este exercício válido tanto individualmente como de um ponto de vista profissional ou empresarial.

Por valores podemos entender algo que gostaríamos de passar aos nossos filhos, algo que manteríamos mesmo que os outros (o mercado) censurassem, algo sem o qual temos muita dificuldade em imaginar o mundo2.

Pode ser o respeito, pode ser, por exemplo, a honestidade, pode ser o amor. O que são esses valores para nós? Quais são os sinais da sua existência ou da sua ausência?

Serão mesmo esses os nossos valores?

Atualmente não está muito na moda olhar para o passado, mas continuo achar muito reveladora a proposta que é feita no livro “Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes”, de listar todas as grandes decisões que tomamos na vida e tentar perceber qual é a razão dos nossos passos ou o que nos tem movido. Não quer dizer que tenha de continuar assim, como uma fatalidade, não quer dizer que estejamos de acordo com o nosso passado mas, parece-me, que conhecê-lo e refletir sobre ele é um bom ponto de partida.

Um outro exercício de autoconhecimento que fiz, durante uma passagem pelo Schumacher College em Inglaterra e que me foi muito útil foi fazer um circulo numa cartolina, dividi-lo em períodos de sete anos e, em cada um deles escrever o que de mais importante nos aconteceu – os factos marcantes da vida – e depois contar eventualmente a alguém a nossa vida através desses factos, desses marcos, rever a nossa narrativa, o sentido que as coisas tiveram.

Proponho estes exercícios porque me parece que o conhecimento próprio, o perceber melhor quem somos, é importante para percebermos onde queremos ir, qual a nossa visão de nós e do mundo e o que estamos dispostos a fazer para a atingir. Pode até, de alguma forma, permitir que nos reinventemos.

Descobrir, descobrirmo-nos é “desvelar pela primeira vez alguma coisa que já existia, como um físico ao estudar a radioactividade ou um astrónomo ao descobrir uma nova estrela”3. Inventarmo-nos ou reinventarmo-nos é “revelar pela primeira vez algo de novo como um telescópio, a bússola, ou um novo método de cálculo”.

Como é que nos podemos reinventar, reinventar o nosso trabalho, a nossa vida (a nossa empresa) para atingir o lugar onde queremos estar, o mundo onde queremos viver?

Pensar isso sem medos. Pensar isso sem as amarras dos impossíveis, pensar em como gostaríamos que fosse.

Contaram-me uma vez a história de uma experiência feita com raquetes e com diversas salas. Em cada sala eram colocadas duas raquetes e uma bola. Em algumas salas, eram postos dois adultos, noutras duas crianças. Ao princípio e independentemente de serem adultos ou crianças, ninguém fazia nada, as pessoas olhavam umas para as outras, travavam conhecimento. Depois, eventualmente, começavam a aborrecer-se e aí começavam também as diferenças.

Os adultos agarravam nas raquetes e começavam a jogar ténis ou algo semelhante e faziam-no até se aborrecerem do jogo, sentando-se de novo. As crianças também agarravam nas raquetes, mas faziam delas cavalos, asas de avião, pás para cultivar, antenas e ficavam o resto do tempo sempre a fazer coisas novas com as mesmas, todas elas possíveis, incluindo, eventualmente, jogarem uma espécie de ténis.

É esse o desafio em termos de pensamento, pensar sem medo, desenhar possibilidades para o futuro e pensar (com o conhecimento que temos de nós e com a vontade que eventualmente tenhamos de nos reinventar) no que estamos dispostos a fazer, assumindo, tal como defende Satish Kumar, que um líder não é um tipo especial de pessoa, mas que cada pessoa é um tipo especial de líder.


1 josé tolentino Mendonça, Uma beleza que nos pertence

2 Luc de Brabandere, La bonne idee existe.

3 Luc de Brabandere, La bonne idee existe

Activista da ética, investiga, escreve e desenvolve iniciativas no sentido de promover a reflexão ética e o pensamento crítico. Procura formas alternativas de promover a ética empresarial.