As Nações Unidas, o Banco Mundial, a OCDE. Conferências, reuniões, painéis liderados por especialistas, cimeiras mundiais, nacionais e regionais. Estratégias de combate à pobreza lideradas por mentes iluminadas que nunca souberam o que é ser pobre. Países ricos a ditar as prioridades dos países pobres. Na semana em que se assinala a erradicação da pobreza, um bom momento para se reflectir sobre uma proposta simples, mas ainda não aprovada: por que não perguntar aos pobres o que realmente lhes faz falta?
POR HELENA OLIVEIRA

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Na semana em que se assinala, a nível internacional, a luta contra a pobreza (dia 17 é o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza), faz sentido questionar não só em que estágio se encontram os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM), como também o que se irá passar depois de 2015, a data limite para que os mesmos sejam cumpridos. Todavia, poderá o leitor perguntar, se ainda estamos longe de atingir o que foi proposto para daqui a três anos, por que motivo se deverá antecipar a preocupação com uma agenda pós-2015? A resposta reside na inexistência de consenso relativamente ao enfoque que a nova agenda de desenvolvimento deverá ter nos próximos anos.

Neste momento, existe já uma lista de recomendações, em crescimento contínuo, com diferentes grupos a defenderem que esta nova agenda para o desenvolvimento deverá concentrar-se no emprego e no crescimento, ou na governança, ou na sustentabilidade ambiental ou na manutenção dos objectivos já existentes. De forma variada, o debate tem vindo a ser perturbado por visões significativamente distintas sobre o valor e o papel dos objectivos globais. Para alguns, a agenda pós-2015 deveria concentrar-se única e exclusivamente no desenvolvimento das prioridades que sejam transversais em termos de linhas globais, nacionais e regionais. Uma visão alternativa é a de que o enquadramento se deveria concentrar nos bens e desafios globais, de que são exemplo as alterações climáticas, as pandemias, entre outras questões.

Ou seja, e no que respeita a este exercício que terá de ser feito pós-2015, a questão central que permanece é a seguinte: será que os processos, formais e informais, liderados pelas Nações Unidas, irão ao encontro do que os pobres verdadeiramente precisam ou serão estes objectivos globais dominados pelas agendas de grupos com interesses específicos?

Para tentar aligeirar esta pressão, o processo liderado pelas Nações Unidas e que deverá determinar a próxima ronda de objectivos de desenvolvimento globais está já em funcionamento. Políticos, tecnocratas e burocratas foram eleitos para determinar o que deverá ser construído em substituição dos ODM existentes e esta “comunidade para o desenvolvimento” está já a planear um conjunto de conferências, reuniões e consultas em pelo menos 50 países em desenvolvimento, agendadas para os próximos seis meses. A ideia é que em Setembro de 2013, e numa reunião de chefes de Estado com a chancela das Nações Unidas, a direcção e a finalização dos objectivos em causa estejam definidos e acordados.

No que respeita às auscultações mencionadas, está já estabelecido um painel de pessoas com mérito reconhecido e a novidade é que as próprias Nações Unidas colocaram online uma plataforma que visa incluir as visões e ideias provenientes da sociedade civil. A plataforma, denominada “The World We Want 2015”, visa reunir as prioridades identificadas em vários cantos do mundo (56 países) e ajudar a construir uma visão colectiva, visão esta que será tida em conta pelas Nações Unidas e pelos líderes mundiais na delineação de um novo plano de desenvolvimento que seja baseado (também) nas aspirações dos cidadãos. As consultas nacionais, que se dividem em nove temáticas distintas – Desigualdades, Governança, Emprego e Crescimento, Saúde, Educação, Sustentabilidade Ambiental, Segurança Alimentar e Nutrição, Conflitos e Fragilidades e Dinâmicas Populacionais – pressupõem estimular um processo inclusivo e multi-stakeholder que reflicta as prioridades locais e nacionais dos 56 países em desenvolvimento, bem como uma partilha de ideias e possíveis soluções entre todos. Mais ainda, esta auscultação, e de acordo com a própria plataforma em causa, procurará assegurar que a visão “do mundo que queremos” leve em linha de conta as perspectivas de base alargada da sociedade civil, de grupos marginalizados e de outros sectores previamente deixados de fora nas discussões sobre as prioridades do desenvolvimento.

Alguém se lembrou de consultar os pobres?

No meio de tanta auscultação, de tantos painéis liderados por especialistas, de tantas conferências e reuniões ao “mais alto nível”, os beneficiários directos dos ditos objectivos de desenvolvimento globais nunca foram ouvidos. Desde sempre que foram os países ricos a ditar as necessidades dos países pobres e as estratégias de combate à pobreza provêm de muitas mentes iluminadas que nunca souberam o que é passar fome, o que significa querer aprender e não poder, o que é viver em zonas de conflitos violentos ou não ter água potável. Se é certo que não é necessário ser pobre para saber o que querem os pobres, a verdade é que nunca ninguém se esforçou para lhes dar voz ou de lhes fornecer a possibilidade de serem eles próprios a contribuir para o seu próprio futuro.

Até agora. A ONE, a organização sem fins lucrativos co-fundada por Bono dos U2 e por outros “pesos-pesados” do mundo empresarial, académico e político, que luta contra a pobreza extrema, particularmente em África e cujas campanhas de pressão junto dos líderes mundiais têm tido resultados consideráveis, contando já com mais de três milhões de membros, anunciou, em Setembro último, que a sua próxima “campanha de pressão” será, exactamente, centrada nas vozes dos pobres. A ideia é que, aproveitando-se a plataforma “The World We Want” seja realizado um inquérito massificado aos muitos pobres do planeta, com um conjunto de questões estandardizadas, que deverão ser respondidas globalmente e que cubram tanto os países em desenvolvimento como os desenvolvidos.

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A ideia surgiu a Ben Leo, director de políticas globais da ONE, a propósito da Cimeira Rio+20 e como resposta aos inúmeros milhões de dólares, euros e yens gastos pelas Nações Unidas, pelo Banco Mundial ou pela OCDE, quando se reúnem para tratar “destes assuntos dos pobres”. A proposta de Leo é realmente simples e poderá revelar-se extremamente eficaz. “Se imaginarmos que é possível canalizar uma porção desse dinheiro para sondagens de opinião inovadoras nos países em desenvolvimento, questionando as massas directamente e não optando por outros ‘representantes’ que falem em seu nome, ficaríamos com uma ideia muito mais fidedigna das verdadeiras necessidades e desejos mais prioritários dos pobres”, afirmou num artigo de opinião.

O especialista em desenvolvimento, que já trabalhou com a União Africana, sustenta a sua proposta com dados e iniciativas já existentes, como é o caso do Afrobarometer, que conduz este tipo de inquéritos a um espectro alargado de agregados na África Subsaariana e cujas respostas são, por vezes, surpreendentes. A título de exemplo, as fracas infra-estruturas (estradas e electricidade) constituem a principal preocupação para um em cada cinco agregados auscultados, quando apenas um em 20 elege a saúde como a sua principal prioridade. E sim, quem poderia imaginar?

Desta forma, é neste sentido que a ONE propõe a realização de inquéritos similares como contributo essencial para o debate sobre os “ODM 2.0.”, uma ideia que apesar de parecer óbvia, ainda não está na agenda, mas que, de acordo com a ONE e com outros grupos similares, deverá ser colocada em prática o mais rapidamente possível. A organização ONE já revelou até a forma e a fórmula para se realizar este inquérito (v.Caixa).

Para demonstrar a sustentação da sua ideia, em conjunto com o tipo de questões que um inquérito desta natureza poderia desvendar, a ONE realizou uma análise extensa sobre inquéritos similares feitos a agregados na só da África Subsaariana, mas também na América Latina e na Ásia Oriental. E se os resultados sublinham a necessidade de um inquérito muito mais abrangente, os mesmos reforçam igualmente a “sabedoria” de incluir os cidadãos “reais” no processo. O relatório já está online e o VER sumariza, de seguida, as principais conclusões retiradas.

Rendimento familiar no topo das prioridades
As questões relacionadas com o rendimento dos agregados – desemprego, em particular jovem, níveis dos salários, indigência – aparecem em primeiro lugar, e destacados, na lista das preocupações na África Subsaariana, América Latina e Ásia Oriental. Cerca de um em cada três respondentes elege estas questões como as que maior pressão exercem nas suas vidas. Em 45 dos 47 países examinados, estas temáticas aparecem em primeiro, segundo ou terceiro lugar como a preocupação mais premente dos entrevistados. O que não é de todo surpreendente: parece óbvio que as famílias conseguiriam fazer face às suas necessidades bem como a objectivos aspiracionais caso existisse uma geração de rendimentos adequada. Por outro lado, há que sublinhar que, em grupos demográficos específicos, de que é exemplo a juventude urbana de África, melhores salários e outras preocupações relacionados com os rendimentos possuam um peso ainda mais superior em termos de temas prioritários. Estas evidências sugerem, assim, que as pessoas estão a reivindicar – e tendo em conta a agenda pós-2015 –um enquadramento que coloque como prioridade o rendimento como o catalisador primário para assegurar a liberdade e flexibilidade para abordar as suas necessidades e aspirações.

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Para quem já visitou o chamado mundo em desenvolvimento não será surpreendente o facto de a agricultura e a segurança alimentar aparecerem relativamente destacadas como prioridades para as regiões auscultadas. Um em cada sete respondentes cita-as como a sua prioridade de topo, na medida em que a agricultura permanece como a principal, ou a mais importante, fonte de emprego e rendimento para a maioria das pessoas que vivem nestes países. Adicionalmente, existem variações significativas entre os países, que podem dever-se às economias extremamente dependentes da agricultura e aos países que mais vulneráveis são aos eventos climáticos extremos (secas ou cheias, por exemplo). Por outro lado, se os agregados rurais forem capazes de aumentar a produtividade das suas pequenas culturas, bem como o acesso aos mercados, os meios que terão à sua disposição para uma panóplia de outras prioridades imediatas – como a educação e a manutenção da saúde dos seus filhos – serão significativamente melhorados. Ainda a título de exemplo, dois terços dos cambojanos e mais de metade dos habitantes da Malásia colocam a agricultura e a segurança alimentar como a sua primeira prioridade.

O acesso a serviços sociais é um item que, habitualmente, não consta das principais prioridades neste tipo de inquéritos regionais. Questões relacionadas com a saúde apenas surgem como prioridades destacadas em três países detentores de rendimentos médios: Botswana, Brasil e Chile. E a educação não surge como preocupação elevada, ou relativamente elevada, em qualquer dos países africanos, latino-americanos ou asiáticos. Estes resultados são similares entre diferentes grupos demográficos, mas tal não significa que os agregados não estejam preocupados com questões de saúde ou de educação. Pelo contrário, os mesmos podem até sugerir um aumento de satisfação com a resposta governamental a estes assuntos ao longo da última década (uma das vitórias relativas dos ODM).

Por último, as preocupações ambientais não fazem parte das preocupações dos cidadãos auscultados, não manifestando qualquer tipo de relevância estatística.

Numa análise global, e de acordo com o relatório publicado pela ONE, não é possível perder de vista os actuais objectivos de desenvolvimento do milénio, que mobilizaram e canalizaram acções sem paralelo por parte de uma base alargada de agentes, incluindo os governos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, organizações não-governamentais e também do sector privado. Muitos países em desenvolvimento atingiram taxas de melhoria sem paralelo; na redução da mortalidade infantil, no combate ao HIV/Sida, malária e outras doenças infecciosas, e também no acesso das crianças à educação.

O que não pode ser esquecido é que esta é uma luta que não dá espaço para tréguas. E que findos os três anos em falta para a consecução dos ODM, novos e mais eficazes planos globais continuam a ser uma urgência. Tal como dar ouvidos aos pobres.

Inquérito global aos pobres: a proposta da ONE
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Cobertura e Escala

O denominado What the World Wants Poll seria global e com cobertura dos países desenvolvidos e em desenvolvimento

Âmbito do questionário
Um conjunto de questões standard seria respondido em todos os países. Questões adicionais e customizadas poderiam ser colocadas a determinados conjuntos de países. Um grupo de conselheiros técnicos externos deveria ser incluído na formulação do questionário para assegurar o controlo de qualidade, o enfoque e os grupos-alvo a entrevistar. As categorias mais generalistas do questionário deveriam incluir as seguintes perguntas:

O que pretende o mundo:        
Quais são as suas necessidades mais prementes?
O que teria mais impacto na sua vida e perspectivas futuras ao longo dos próximos 15 anos?
Que preocupações permanecem ainda sem qualquer tipo de resposta?

Impacto dos ODM:

Até que ponto a sua vida mudou ao longo da última década?
Que principais melhorias elege [neste período]?

Custos e tempo
De acordo com consultas efectuadas a várias organizações internacionais especializadas em sondagens, o questionário global proposto deveria, em termos gerais, levar dois meses a ser preparado e entre oito a 10 meses a ser executado. A fase de execução deveria incluir, no trabalho de campo, inquéritos individuais e por agregados. Os dados recolhidos deveriam ser de imediato agregados e tratados informaticamente. Em simultâneo, os resultados ao nível de cada país deveriam ficar disponíveis numa base variável ao longo de seis a 12 meses – permitindo, desta forma, a comunicação de resultados e tendências preliminares. O custo de um inquérito global desta natureza não deverá ultrapassar uns poucos de milhões de dólares.

Metodologia
A organização internacional de sondagens escolhida deveria optar por uma combinação de entrevistas telefónicas e pessoais, gravando as respostas recolhidas. Esta abordagem deverá assegurar uma amostra representativa de múltiplos grupos demográficos (rural/urbano, por rendimento, por nível de educação, por género, etc.) e incluir populações marginalizadas. Exemplos de outras sondagens análogas, como o Afrobarometer, o East Asian Barometer e o Latin Barometer, em conjunto o World Poll da Gallup demonstrariam um registo sério e internacionalmente reconhecido do contexto em causa.

 

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