Mas afinal o que é essa coisa da procrastinação? É um estado físico-químico-mental que se situa algures entre o laissez- faire, o deixandarismo e a aniquilação do eu. É esquecer um governo, ou uma coisa que parece um governo, embora ninguém perceba se governa ou é governado. Mas também é brincar com os filhos, sem fazer planos para mais logo e ver o tempo a passar entre sorrisos
POR NUNO GASPAR OLIVEIRA

Pro-cras-ti-na-ção. Essa palavra esquisita e no entanto tão familiar ao nosso dia-a-dia. Grandes filósofos portugueses como Agostinho da Silva, Fernando Pessoa ou António Variações eram crentes-praticantes  deste desporto nacional, que, a bem-dizer, talvez seja a única coisa que ainda nos permite manter alguma paz e esperança no actual clima ecaosnómico. Mas afinal o que é essa coisa da procrastinação? É um estado físico-químico-mental que se situa algures entre o laissez- faire, o deixandarismo e a aniquilação do eu.

É uma espécie de ultra-maratonismo emocional, deixar que o universo encontre o seu estado de equilíbrio e saber que raramente (ou nunca) a realidade se dobra à nossa vontade, terá que ser a nossa vontade a adaptar-se ao desenrolar da realidade. É ter aversão a cometer actos iatrogénicos, como quem diz, fazer mal praticando o bem, como aqueles médicos que receitam sempre qualquer coisa para a pessoa não sair desapontada do gabinete com a terrível notícia de que está tudo bem, ou os consultores que prescrevem sempre mudanças na estratégia empresarial porque ninguém lhes paga para dizerem “sôtor, a sua empresa é um espectáculo, não mexa em nada!”.

É descobrir que não precisamos de fazer tudo de uma vez, porque isso leva a pequenos erros que podem acumular-se em grandes problemas. É não correr para apanhar autocarros e descobrir na paragem um amigo dos idos tempos de infância escondido num fato de adulto com barba à-arquitecto (true story!). É brincar com os filhos, sem fazer planos para mais logo e ver o tempo a passar entre sorrisos. É deixar passar a hora do noticiário e ficar a ver as novidades dos amigos no facebook e verificar que estamos mais alegres e leves, prontos a nova empreitada. É esquecer um governo, ou uma coisa que parece um governo, embora ninguém perceba se governa ou é governado. É não querer saber o que é o PIB, porque os media e os comentadores politico-desportivos também não sabem, nem o que é nem o que é que (não) quer dizer. É ir mentalmente de “férias”, mesmo que não tenha férias, ou sequer emprego. É fazer pela vida mas deixar que a vida flua, é não ter a visão periférica tapada por estarmos demasiado focados no alvo que escolhemos como ponte de salvação ou algoz. É fazer algo por si, por nós, e não esperar recompensa. É dizer que pensa porque pensa e não dispensa deixar a sua mente vogar. É esquecer a caoscracia da dívida especulatória e parar para cantar.

E por falar em cantar, se o outro rapazola da rádio pode fazer uma cover do Quim Barreiros e ser ‘ouvisto’ por milhares, eu também vou tentar a minha sorte a ver se bato o record de leituras dos meus artigos, que acho que é de 24, num dia em que apanhei os meus familiares todos juntos à mesa.

Então cá vai, uma versão em forma de hino à procrastinação e fuga do clássico ‘Dunas’ dos GNR. Para ler com a voz do Rui Reininho a soar no miolo:

Dívidas, são como dúvidas
Papéis indiscretos de impressão suja
Pagos pelo papá e a mamã
Fugindo das scuts, alheiras e robalos
Olhares vagueando
Bolsos esvaziados

Esquecemos larápios, contas congeladas
Fugimos sem medos
Longe dos degredos
Em morte lenta como na AR
Impostos a mais e não sabes porquê

Dívidas, não-há-já-dú-vi-das
Quem os visse emigrados
Em empregos bem pagos
Os meus amigos amados

Com dívidas, só comemos maçãs
Férias só mesmo à porta com carteiras vazias
Entre o Seixal e a Lourinhã

Entalados nas portas, com as vidas tortas
Entre dívidas
Em morte lenta como na AR
Vamos de férias
Adeus até amanhã

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence