Um conjunto significativo de economistas norte-americanos entregou, na passada semana, uma petição à American Economic Association, com vista à urgência de se criar um código de ética para os profissionais do sector. O debate em torno da questão está animado e o VER, em conjunto com João César das Neves, junta-se ao mesmo, contando ainda com o contributo de Bagão Félix e de Rui Martinho, o novo presidente da Ordem dos Economistas
POR HELENA OLIVEIRA

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“Os economistas deverão manter o mais elevado nível de integridade na sua actividade profissional e evitar conflitos de interesse (…). Adicionalmente, os economistas deverão revelar fontes de suporte financeiro e relacionamentos relevantes, pessoais e profissionais, que possam aparentar ou potenciar um conflito de interesse no que respeita a discursos ou tomadas de posição pública [incluindo as escritas], bem como nas suas publicações académicas”.

Este é um excerto de uma carta enviada por Gerald Epstein e Jessica Carrick-Hagenbarth, dois economistas da Universidade de Massachussets, à (AEA), no passado dia 3 de Janeiro e subscrita por um conjunto de 300 economistas. A petição tem como a adopção, urgente, de um código de ética para estes profissionais e está a inflamar a classe e a originar um debate aceso entre os que defendem a necessidade do mesmo e os que se recusam a admitir que devem prestar contas sobre a forma como aplicam os frutos do seu trabalho.

Como afirma, em declarações ao VER, João César das Neves, “Trata-se de uma velha ideia que agora regressa”. A novidade deste movimento tem origem, de acordo com o economista e Professor, em dois factos: “O primeiro, de se verificar na Associação Americana, uma das maiores e mais prestigiadas do mundo E, em segundo lugar, por surgir no rescaldo da maciça crise financeira internacional”.

A verdade é que a integridade dos economistas, nomeadamente nos Estados Unidos, sofreu um abalo significativo desde que deflagrou a crise, nomeadamente por esta ter virado os holofotes para papéis potencialmente conflituosos por parte dos economistas e que, de acordo com os autores da carta, poderão ter afectado a sua imparcialidade enquanto analistas e especialistas. Como escrevia, em 2009, Paul Krugman, na sua rubrica no New York Times, foram poucos os economistas que anteciparam a chegada da crise, mas este “fracasso nas previsões constituiu o menor dos problemas na área”. Na verdade, para o laureado com o Nobel da Economia, “mais importante foi a cegueira por parte dos profissionais da economia no que respeita à possibilidade de falhas catastróficas na economia de mercado”.

Os dois promotores da carta enviada à AEA são igualmente autores de um estudo que analisa os conflitos de interesse que existem quando economistas financeiros e com funções académicas, agindo enquanto especialistas objectivos nos media e também nos estudos académicos que conduzem, não divulgam as suas afiliações financeiras particulares. Os autores analisam as relações entre a academia, as instituições financeiras privadas e públicas de 19 economistas académicos e que são membros de dois grupos que, especificamente, contribuíram com propostas para a reforma financeira. Adicionalmente, os dois economistas reviram cuidadosamente os escritos e aparições públicas destes profissionais, entre 2005 e 2009, para determinar o nível de transparência das suas afiliações financeiras privadas e os resultados foram, no mínimo, negativos. Dos 19 economistas analisados, 13 possuíam afiliações financeiras indicativas de potenciais conflitos de interesse, sendo que apenas cinco as tinham revelado clara e publicamente.

Como comenta João César das Neves, “pode achar-se estranho como foi possível chegar-se a 2011 sem que os economistas americanos tenham um documento axiológico de referência, mas a situação é fácil de explicar, até por razões económicas”. O professor explica o facto afirmando que “toda a gente sabe que os economistas são estruturalmente avessos a desperdícios e enunciados ocos. Assim, eles só enveredarão pela elaboração de um código se ele tiver utilidade concreta e palpável. E aí existem alguns obstáculos”.

Cientes destes obstáculos, os promotores da carta à AEA foram sensíveis o suficiente para colocarem o ênfase nos conflitos de interesse que possam surgir quando os economistas opinam sobre assuntos que afectam indústrias ou empresas com as quais mantêm ligações financeiras. Mais ainda, os críticos da profissão argumentam, por exemplo, que não é uma coincidência o facto de os economistas financeiros, muitos dos quais prestando serviços de consultoria a firmas de Wall Street, serem extremamente adversos a uma regulação do sector financeiro. Mas será que um código de ética pode prevenir este tipo de comportamentos?

Um instrumento meramente moral
António Bagão Félix concorda, em tese, com a ideia de um Código de Conduta para os Economistas. Em declarações ao VER, o Professor adianta ainda que “o facto de existir uma Ordem, tem subjacente um conjunto de regras éticas e deontológicas associadas ao exercício da actividade de economista”. Mas também admite que “não é um exercício fácil concretizar um Código que seja adequado para uma actividade que é dificilmente formatável isoladamente (como é, por exemplo, a de um médico, arquitecto ou advogado)”.

Para César das Neves, um código de deontologia profissional serve várias finalidades, mas o seu objectivo principal deve ser o de ajudar a esclarecer conflitos de interesses e dilemas complexos que se levantam no seio de certa actividade. “Quando um grupo particular se costuma encontrar em situações ambíguas e difíceis, ajuda muito ter algumas regras que clarifiquem a situação. Os códigos das profissões financeira ou contabilística, de auditores ou revisores de contas, com regras muito claras para questões bem concretas, são bons exemplos deste tipo”, acrescenta. Neste caso em concreto, também o ex-ministro Bagão Félix frisa que “ser economista, mais do que uma actividade profissional, é uma habilitação para exercer actividades profissionais tão díspares como consultor, gestor, analista, etc”. O que vai ao encontro da opinião professada por César das Neves, relativamente ao cepticismo demonstrado perante a necessidade de tais “documentos abstractos e genéricos”:  “A razão por que isto normalmente não é feito, tem a ver com a dificuldade em identificar os tais casos concretos, precisamente em profissões tão vastas como a dos economistas. Debaixo desta classificação englobam-se tarefas muito diferentes e variadas. Assim não é possível situar exactamente os dilemas principais. Aliás, a própria definição do que se entende por um ‘acto económico’ tem ocupado muita gente há muito tempo sem resultados claros. No fundo, o problema é que ser economista não constitui uma actividade, que tenha um ambiente ético definível, mas é uma constelação muito vasta”, afirma. E acrescenta que “o exercício seria muito mais útil e actuante se fosse ventilado por tipos de acção do economista. Em cada uma das tarefas específicas é muito mais fácil obter um verdadeiro código deontológico”, defende.

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De acordo com George Martino, professor e autor de um livro a ser publicado brevemente e intitulado “The Economist’s Oath: On the Need for and Content of Professional Economic Ethics”, o caso para a ética profissional dos economistas é simples: “os economistas afectam a vida de outros, muitas vezes de forma substancial e essa é a questão crucial do debate”. E acrescenta que o fazem, não relativamente a uma pessoa de cada vez, como é o caso na prática da medicina, e não apenas um conjunto de limitado de pessoas – aqueles que compram os seus serviços de consultoria económica – , mas sim as vidas de inúmeras pessoas, a nível global, através do impacto e influência que têm nas políticas económicas. Para o autor, talvez seja “a enormidade desse impacto que torna difícil para os economistas concentrarem a sua mente em torno das suas obrigações éticas”. Sublinhando que a influência dos economistas está inerente ao monopólio intelectual que possuem relativamente a uma questão que é vital para o bem-estar social, Martino alerta para o facto das suas posições nos sectores público, privado e multilateral lhes conferir um significativo poder institucional. E acrescenta que as intervenções económicas, tipicamente, acabam por beneficiar uns em detrimento dos outros e que os economistas trabalham num contexto de insuficiência epistémica: “simplesmente não conseguem controlar e não sabem qual será o verdadeiro impacto das intervenções que recomendam”.

Mas a questão persiste: poderá um código de ética resolver estas insuficiências, não sendo um instrumento jurídico e, por isso, não contendo mecanismos de monitorização ou punição? Para César das Neves, a questão de faltar, aos códigos de ética, mecanismos de punição ou de monitorização, é um falso problema. “O código de ética não é um instrumento jurídico, mas moral. Ele parte do princípio que as pessoas têm preocupações éticas e pretendem fazer o bem. É para esses que o código existe. Quanto àqueles que não se interessam em ser boas pessoas nem têm escrúpulos, o código nada tem a dizer. Esses lidam a outro nível e devem enfrentar a lei e os tribunais se cometeram alguma tropelia. O código de ética é um instrumento moral, e como tal deve ser visto. O seu nível de actuação situa-se na consciência das pessoas. Mas a esse nível tem de ser informativo, relevante, útil. Para isso tem de descer dos princípios gerais e envolver-se nas questões concretas”, defende.

Uma resistência secular
Ainda de acordo com George DeMartino, desde que a economia emergiu como disciplina moderna, nos finais do século XIX, que os seus praticantes têm resistido a códigos de ética formais. E, no que respeita aos Estados Unidos, são muitos os que questionam se a AEA – apesar da sua longa história (foi criada em 1885) e do facto de ser a maior associação de economistas do mundo – é a instituição mais adequada para liderar este “movimento”. Contudo, e como já foi anteriormente referido, não é a primeira vez que, no seio deste organismo, surgem apelos desta natureza, “múltiplos”, até, como refere DeMartino, mas todos eles até agora recusados.

Em 1994 e depois de um longo debate, o comité que preside à AEA concluiu que não teria uma expertise relevante para julgar, de forma justa, disputas éticas; que um mecanismo justo para resolver potenciais queixas seria muito complexo de se estabelecer e que os esforços nesse sentido provar-se-iam inúteis devido à inexistência de sanções para os que violassem o código.

A verdade é que os próprios signatários da carta à AEA antecipam potenciais objecções por parte dos profissionais da classe. Alguns poderão argumentar que um código deste tipo seria redundante na medida em que muitos economistas académicos estão já a trabalhar de acordo com uma política de conflitos de interesse estipulada pelas universidades que os acolhem. Todavia, estas políticas já existentes proscrevem essencialmente a conduta nas próprias universidades, sem alargarem as mesmas aos conflitos potenciais no que respeita a questões governamentais ou públicas.

Mas a verdade é que um dos pontos-chave inerentes a este reacender de interesse relativamente à necessidade de um código de ética surgiu, tal como alerta César das Neves, nesta crise financeira e no campo particular dos estudos económicos. “Foi noticiado que alguns dos resultados científicos com grande influência intelectual e até política, sobretudo no campo financeiro, surgiram em estudos financiados por empresas do sector, pondo assim em dúvida a independência dos seus autores. Surge aqui um claro conflito de interesse entre a idoneidade académico-científica e o ganho do patrocinador”. E o professor recorda também as ligações evidentes ao dilema ético que as empresas de auditoria enfrentaram há 10 anos ao Sarbanes-Oxley Act de 30 de Julho de 2002. “A formulação de regras neste campo poderia ajudar a clarificar muitas situações ambíguas. Seria bom limitar essas influências ou, pelo menos, torná-las transparentes”, diz.

Restaurar a integridade e credibilidade na profissão
São vários os estudos que indicam que a profissão de economista enfrenta, nos dias que correm, uma crise de confiança e identidade. E, pelo menos nos Estados Unidos, não faltam exemplos visíveis de uma promiscuidade visível na área: quando Darrel Duffie, um professor de Stanford, co-escreveu o livro “The Squam Lake Report: Fixing the Financial System”, no qual analisa as regulações impostas a Wall Street, não mencionou que se sentava no conselho de administração da agência de rating Moody’s; a comentadora de questões económicas, Lauren D’Andrea Tyson, antiga conselheira do presidente Clinton e que ensina na escola de gestão da Universidade da Califórnia não diz, habitualmente, que é directora na Morgan Stanley; ou ainda os retratados no filme “Inside Job” [que, ilustrando a crise financeira, acusa alguns economistas de venderem a sua reputação académica a troco de favores para indivíduos e instituições endinheiradas o que, para muitos, foi crucial para fazer reacender este debate) e agressivamente criticados, como é o caso de  R. Glenn Hubard, reitor da Columbia Business School e director da MetLife ou de Frederic S. Mishkin, professor na mesma universidade e conselheiro económico de várias firmas de investimento. E uma lista de nomes poderia ser facilmente escrita.

Uma lista de questões relativamente à instituição de um código de ética é também fácil de enumerar: será que aos economistas deverá ser meramente pedido que divulguem quem financia os seus estudos, como muitas publicações académicas já o exigem? Deverão ser obrigados a revelar quais os clientes corporativos que aconselham, a quem prestam consultoria ou em que empresas fazem palestras? Ou, indo ainda mais longe, deverá ser permitido que ocupem cargos executivos nas empresas, como muitos professores de gestão e finanças fazem?

Mais uma vez,  terão os códigos o poder de evitar estas situações? Como afirma João César das Neves, “em geral aquilo que passa por códigos deontológicos limitam-se a ser enunciados de princípios genéricos, que servem para manifestar boas intenções, mas não fornecem orientações práticas para um profissional que honestamente procure indicações em problemas reais. Nos raros casos em que se enunciam dilemas, costumam faltar critérios de ponderação dos vários interesses em presença”.

O debate estará, decerto, para durar. Como remata César das Neves, “ainda não se sabe se a AEA vai enveredar por esse caminho. Mas se o fizer, seria importante que ele constituísse um documento aplicado e concreto, em vez de um enunciado genérico e decorativo. Quer por razões éticas, quer por razões económicas”.

Em Portugal, e como adiantou ao VER o recém-empossado presidente da Ordem dos Economistas (OE), Rui Leão Martinho, os estatutos da OE prevêem, desde início, a observância pelos seus membros de regras de ética e deontológicas. No entanto, acrescenta, “a lista concorrente às últimas eleições para os órgãos nacionais e sufragada no passado dia 26 de Novembro, propunha um manual de conduta e ética a ser discutido e aprovado no decorrer deste mandato.Com esse fim, lançaremos mãos à obra muito em breve”. Um debate também para Portugal?

 

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