O terceiro encontro anual do Fórum de Ética da Católica Porto Business School teve como tema de reflexão “Ética e Trabalho Híbrido”, o mesmo tema do Estudo Anual do Fórum que foi apresentado numa conferência pública e que deu origem ao Livro Coletivo “Proximidades e Distâncias: desafios éticos do trabalho híbrido” e ao relatório do inquérito “Ética e Trabalho Híbrido: no Rescaldo da Pandemia”.Este encontro contou com a partilha de narrativas na primeira pessoa sobre os desafios éticos do trabalho híbrido e com uma reflexão coletiva sobre o lugar das narrativas na deliberação e tomada de decisão ética
POR HELENA GONÇALVES E SUSANA MAGALHÃES

As experiências relatadas nesta sessão integraram diversos olhares sobre a articulação de tempos e espaços do contexto profissional e pessoal. Abriram-se janelas de oportunidade para repensar o passado e o presente e para se formular projeções para o futuro do mundo do trabalho, com especial atenção à ressignificação do tempo e do espaço. Revisitando a teoria de Lefebvre & Soja (1996) sobre a trialética do espaço, recordamos que:

“Reflexive thought and hence philosophy has for a long time accentuated dyads. Those of dry and humid, the large and the small. the finite and the infinite, as in Greek antiquity. Then those that constituted the western philosophical paradigm. subject-object, continuity –discontinuity, open – closed, etc. Finally, in the modern era there are the binary oppositions between signifier and signified, knowledge and non-knowledge, centre and periphery… [But] is there ever a relation only between two terms…? One always had Three. There is always the Other (Lefebvre in Soja, 1996).” 

As narrativas partilhadas sobre trabalho híbrido remetem para terceira dimensão do espaço, que resulta da impossibilidade de habitarmos apenas o espaço objetivável, mensurável, indiferente ao modo como o habitamos. Há mais duas dimensões de espaço: a dimensão das representações mentais, idelógicas, políticas, culturais e a dimensão da imaginação, na qual ideias contraditórias e aparentemente imcompatíveis coexistem e podem ser reestruturadas de modo criativo, produzindo novos sentidos. O trabalho híbrido confronta-nos com esta trialética, com a impossibilidade de pensarmos o mundo ancorado em binómios, com a visibilidade da terceira metade:

Partiremos para uma realidade de trabalho em que coabitarão, o presencial, o remoto e o hibrido e por isso os desafios são ao cubo. Precisaremos saber viver em cada modelo, mas também conviver em harmonia com os três em simultâneo. Precisaremos readaptar o “escritório”, porque o seu propósito é agora diferente. Talvez agora, o escritório venha a ser mais relevante, mas temos de ressignificá-lo, no sentido de torná-lo o local de aculturação, mais do que o local de trabalho. De criar momentos de encontro no escritório, que sejam também atividades de conexão e mantenham a cultura da empresa ligada, acesa, ajudando a anular os efeitos do desalinhamento que a distância pode provocar.

A experiência vivida em contexto da pandemia não é necessariamente transponível para o futuro, nem os desafios que se colocam são os mesmos. 

Na emergência, houve valores que desconsideramos e outros que ultrapassamos, houve valores em conflito que nem percebemos. Estávamos demasiado perto para ver! Quebraram-se barreiras, mudaram-se perceções, mas invadiram-se limites de espaço e de tempo. Flexibilizou-se, mas exigiu-se muita disponibilidade.

Agora mais distantes, no presente, podemos mudar o futuro, que é inconvertível ao passado que conhecemos. 

A partilha de narrativas pessoais fez emergir alguns dos desafios que se colocam à gestão e à liderança de equipas em modelos de trabalho misto, com especial destaque para os binómios responsabilidade/liberdade individual vs monitorização; igualdade vs equidade:

Então, enquanto líder de uma equipa, com elementos nos três regimes de trabalho, vivi a dor de não conseguir manter a capacidade de monitorização (não como controlo), vivo com a consciência que não era preciso ter sofrido tanto, e vou viver para dar ainda mais autonomia e liberdade, sem sofrer com isso.

A minha equipa encontra-se em regime de trabalho híbrido, com dois dias por semana de teletrabalho, à sua escolha. Isto acontece porque na minha organização foi definido que haveria funções teletrabalháveis e outras não (o que é compreensível considerando ser uma organização com muitos serviços de contacto direto na prestação de cuidados de saúde e ação social), e que as funções das pessoas em lugares de chefia não eram teletrabalháveis. Apesar de eu estar sempre em trabalho presencial, a minha experiência é de que estou simultaneamente em trabalho virtual, porquanto nunca tenho toda a equipa reunida presencialmente comigo, o que me obriga a ter de estar constantemente a alternar modos de comunicação presenciais com virtuais, de ter um sobre esforço para garantir que a comunicação flui e abrange todos e há o mínimo de mal-entendidos, de ter de organizar determinadas tarefas dependendo dos dias e de quem está no dia no local ou em casa.

Assim, um desafio ético de partida que me preocupa é o da desigualdade de direitos entre trabalhadores/as no que concerne ao regime de trabalho por que podem optar. Outro, o de que os valores e princípios da empresa comecem a ficar diluídos pela ausência das pessoas dos locais que a representam e onde se devem viver esses valores e princípios, e que se perca o espírito de unidade, coesão e entreajuda entre colegas e com isso possam aumentar inconformidades éticas (cada pessoa está mais entregue a si). E destacaria outros dois que dizem especial respeito: o de que as novas formas de trabalho remoto ou híbrido, muitas vezes dados como bons exemplos para melhor se conciliar a vida pessoal, familiar e profissional, prejudiquem as mulheres. Por um lado, desequilibrando o tempo que o trabalho tem nas suas vidas, e o que vai ocupar no seu espaço doméstico, sobrecarregando-a de tarefas acrescidas, e por outro lado retirando-as das salas de reunião e dos escritórios onde são tomadas as decisões, fazendo com que percam «voz» e oportunidades de progressão na carreira.

O equilíbrio entre a vida profissional e pessoal assume particular relevância, coexistindo com a preocupação do respeito pelo direito à desconexão, que não se restringe ao contexto do trabalho híbrido:

O teletrabalho tem permitido conciliar a vida profissional e pessoal de uma forma favorável, que inicialmente não tinha antecipado. O facto de me poder conectar a partir de qualquer lugar, aportou uma enorme vantagem. 

O teletrabalho, ao comportar o esbatimento de fronteiras entre o trabalho e a vida privada, espera-se que os/as trabalhadores/as se encontrem constantemente disponíveis. O direito à desconexão é um dos desafios que antecipo como dos mais críticos, mas na verdade não é novo –  já se vinha a assistir, por exemplo, ao acesso ao email da empresa através do telemóvel. Tenho resistido a esse “movimento”, mas por vezes sinto pressão quando elementos da equipa comentam um assunto que foi enviado por mail no fim de semana ou após o horário de trabalho.

Estas narrativas foram fonte de inspiração importante para muitas outras, constituindo-se assim como uma espiral de “histórias” entrelaçadas e complementares, capazes de revelar alinhamentos e desalinhamentos entre quem lidera e quem é liderado. Numa perspetiva meta-reflexiva, podemos afirmar que a partilha de narrativas sobre uma experiência comum permitiu também consolidar o impacto da criação de espaços seguros nas organizações para pensarmos com e sobre ética.

Pensar sobre ética é refletir sobre questões éticas, sobre diferentes abordagens de problemas éticos, sobre diversos modos de responder às inquietações com que somos confrontados no contexto pessoal e profissional em relação ao nosso agir.

Pensar com ética acontece sempre que as reflexões que fazemos em determinado tempo e lugar se perpetuam e nos acompanham, como personagens de filmes/romances que nos revisitam e fazem parte da nossa interioridade.  

Falar sobre e com ética permite que os testemunhos partilhados por outros façam eco e iluminem as nossas próprias tomadas de decisão e os nossos atos.

Acreditamos, portanto, que a atividade que tem sido realizada no âmbito das sessões do Fórum de Ética, que designamos de Pensar com e sobre ética, permite efetivamente dinamizar e promover a comunicação intra e inter-equipas. Na sessão sobre Ética e Trabalho híbrido pudemos escutar testemunhos que foram posteriormente integrados no Livro Coletivo “Proximidades e Distâncias: desafios éticos do trabalho híbrido”. 

As narrativas recolhidas através do convite à reflexão sobre a experiência “ética”, portanto relacional, que cada um viveu, vive ou irá viver em contexto de trabalho híbrido, podem ser laboratório de experiência em pensamento para cada um dos leitores. É nas histórias que escutamos, testemunhamos e narramos que construímos sentido, que desenhamos o futuro ancorado no tempo passado e presente.

O trabalho híbrido foi representado através de imagens e metáforas, que alargam o sentido para lá do contexto linguístico, abraçando a dimensão conceptual e o agir. Ou seja, o modo como dizemos a realidade modela a forma como a pensamos e como agimos nela e sobre ela. As imagens da rede, do encontro e do diálogo coexistem com a necessidade de desconectar, o medo do desencontro e o peso da desconfiança. 

Os resultados das preocupações éticas pessoais, organizacionais e societais relacionadas com eventuais alterações no modelo de trabalho ficaram registadas no relatório do inquérito “Ética e Trabalho Híbrido: no Rescaldo da Pandemia”, tendo sigo agrupadas em sete temas: 

  1. justificação das preferências pelo modelo de trabalho; 
  2. satisfação com o atual modelo de trabalho; 
  3. impacto do atual modelo de trabalho na saúde e bem-estar; 
  4. benefícios para a organização com a adoção de um modelo de trabalho híbrido; 
  5. preocupações com a adoção de um modelo de trabalho híbrido; 
  6. experiências vividas ou testemunhadas;
  7. reflexões sobre o futuro do mundo do trabalho.

Com base nesta reflexão, delineámos linhas de orientação para o presente e para o futuro:

  1. a necessidade de criação de espaços e de momentos regulares, quer formais quer informais, para partilha de perspetivas e expectativas; 
  2. a atenção à equidade tendo em conta diferentes tipos de vulnerabilidades, designadamente física, mental, social e financeira; 
  3. a importância de repensar as responsabilidades individuais e coletivas e a noção de flexibilidade, nos diferentes espaços e tempos de trabalho.

Parece ser possível afirmar que o nível de satisfação com o trabalho híbrido e o impacto da adoção deste modelo ao nível da saúde física, mental e social e da situação financeira são resultados significativos que devem ser considerados no futuro desenho do mundo do trabalho.

Por outro lado, a perceção e a vivência das dificuldades inerentes à adoção do modelo híbrido, tendo em conta a diversidade de contextos organizacionais e os riscos subjacentes à promoção da desigualdade a vários níveis, sublinham a necessidade de desenvolvermos mais estudos de metodologia mista (qualitativa e quantitativa), que permitam ouvir de facto o que pensam os vários intervenientes. Esta conclusão é particularmente relevante para que cada organização consiga encontrar mecanismos para ouvir regularmente os seus colaboradores. Sabendo que one size doesn’t fit all e que os conceitos de espaço e tempo de trabalho poderão ser transformados para sempre, é imperativo que as expectativas e as necessidades dos trabalhadores e dos empregadores sejam ouvidas e dialoguem entre si.

Foram muitos os contributos que recebemos, quer no âmbito da Sessão do Fórum de Ética, quer para lá das suas fronteiras. Acreditamos que é importante continuar a tecer este diálogo entre diferentes stakeholders, porque pensar o futuro do trabalho, que é complexo e multidimensional, exige um caminho, conjunto. E o caminho faz-se caminhando.

Nota: Pode aceder a um pequeno vídeo sobre a conferência aqui

E visitar o site do Fórum de Ética aqui

Docente e coordenadora do Fórum de Ética da Católica Porto Business School

Susana Magalhães

Responsável pela Unidade de Conduta Responsável em Investigação do i3S - Instituto de Investigação e Inovação em Saúde