É um dos rostos da liderança no feminino em Portugal, dona e senhora de um invejável currículo e administradora de um dos grupos empresariais mais inovadores do país. Isabel Furtado foi a mais recente oradora do ciclo de conferências “Construir a Esperança” promovido pela ACEGE, onde partilhou algumas lições de gestão em tempos de pandemia e defendeu que na recuperação que agora se inicia “as empresas têm, mais do que nunca, uma responsabilidade social acrescida”
POR HELENA OLIVEIRA

“Estamos reféns de um vírus que nos obriga a viver de uma maneira diferente, com muitos constrangimentos e com uma regra que se chama distanciamento físico. E com este distanciamento físico tudo mudou: lutamos para que os miúdos saiam da frente dos meios digitais e agora têm aulas via computador; entramos nas fábricas e vemos os nossos colaboradores à distância; estamos enfiados em salas sozinhos a falarmos para os computadores; e já não sabemos há quanto tempo não damos um simples aperto de mão”.

Os lamentos são de Isabel Furtado, administradora executiva do Grupo TMG (Têxtil Manuel Gonçalves) – um dos grandes exportadores nacionais e exemplo de inovação e de know-how da indústria portuguesa – e foram proferidos em mais um fórum organizado pela ACEGE sob o lema “Construir a Esperança”. Confessando que a falta de contacto físico tem dificultado a sua gestão, em particular porque é responsável por uma empresa familiar que “se pauta pela proximidade e pelo relacionamento com as pessoas”, Isabel Furtado sublinha ainda que, estando num área industrial e, por conseguinte, passando muito tempo no chão de fábrica, onde é muito importante ouvir e falar com quem lá trabalha, este é um dos grandes desafios a enfrentar decorrente da pandemia de coronavírus que assola Portugal e o resto do mundo.

Todavia, ressalva também que é nestas alturas difíceis “que a nossa actuação enquanto gestores tem de ser mais cuidadosa, mais humana e até mais pessoal, na medida em que estamos forçados a tomar decisões muito complexas e pouco simpáticas – como por exemplo o layoff – tendo em conta critérios mais justos e transparentes do que nunca”.

A também presidente do Conselho Geral da COTEC e neta do fundador da TMG, Manuel Gonçalves, afirma igualmente que o seu maior desafio enquanto gestora é manter sempre a noção de responsabilidade que lhe foi confiada, a qual se traduz em conduzir a empresa para a geração seguinte e, se possível, entregá-la numa situação melhor do que aquela em que a recebeu, tendo sempre em mente “a ética, o valores de uma empresa familiar, onde as pessoas se sintam bem, gostem de trabalhar, dêem o seu contributo de uma forma bastante empenhada, considerando a empresa também como sua”. Até agora, o trabalho tem sido de excelência, o que se reflecte nas várias empresas do Grupo e, em particular na TMG Automotive, da qual é CEO, e que representa um dos mais reconhecidos exemplos de sucesso em termos de inovação nacional, com amplo reconhecimento internacional.

Considerando que as empresas têm uma enorme mais-valia – a de “nos desafiarem permanentemente a colocar o nosso talento ao serviço dos outros” – Isabel Furtado avança ainda que não gosta de rotina e que talvez seja por isso que se sente tão bem na indústria, “porque é onde as coisas acontecem, onde nascem os produtos, onde eu aprendo todos os dias, onde tenho um leque de pessoas muito variado com quem trabalho, com diferentes qualificações, com backgrounds sociais distintos, ou seja, onde existe um grande diversidade”, a qual a desafia e motiva continuamente. Adicionalmente, a responsável pelo Grupo TMG assegura que, no seu trabalho e na indústria em geral, tem uma particular preocupação com a área social e ambiental, acreditando que “mais importante do que fazer dinheiro de imediato, é criar riqueza”, apesar de ser óbvio que o primeiro objectivo das empresas é o lucro. “Mas não a qualquer custo”, insiste, recordando que são as pessoas o principal pilar das empresas e que sem elas nada é possível ser feito.

Falando da actual pandemia e da recuperação económica – “temos de ter a esperança que sairemos deste buraco sem fundo” -, a líder empresarial chama a atenção para o papel crescentemente importante das empresas neste período, nomeadamente para assegurar o emprego, as condições sociais e a continuidade, e orientando a sua acção no caminho para a sustentabilidade. “E quando olhamos para o verdadeiro significado de sustentabilidade, temos de ter em conta os seus três pilares – social, económico e ambiental -, os quais devem ser encarados de forma estratégica e complementar”, diz, relembrando que, durante muitos anos, foi directora de Qualidade, Ambiente e Segurança do Grupo que agora administra, sendo a sustentabilidade algo que está sempre presente na sua mente e na sua forma de gestão.

Tanto assim é que recorda o seguinte excerto da encíclica Laudato Si’do Papa Francisco: “As alterações climáticas são um problema global com implicações graves: ambientais, sociais, económicas, políticas e de distribuição de riqueza. Representa um dos principais desafios que a humanidade enfrenta nos nossos dias. A destruição sem precedentes dos ecossistemas trará graves consequências para todos nós se não forem realizados esforços de mitigação de forma imediata”. Relembrando que esta mensagem, tão clara e tão simples, tem cinco anos, a seu ver “faz cada vez mais sentido e é nosso dever enquanto gestores, e ainda mais enquanto gestores cristãos, questionar a nossa responsabilidade como produtores e o nosso consequente impacto quer ambiental quer social”. Desta forma, garante, é a viagem que tem vindo a ser feita na TMG e que, depois do percurso traçado, se reveste da aquisição de conhecimento e melhorias todos os dias. Isabel Furtado sublinha ainda que está completamente convencida “que é possível gerir empresas com responsabilidade social, cuidar do ambiente e gerar lucro”.

“Não é possível fazer uma t-shirt por cinco euros”

E de que forma segue a TMG este percurso virado para a sustentabilidade? Isabel Furtado começa por falar na “circularidade dos nossos produtos e o seu impacto, desde que matérias-primas são escolhidas, onde as escolhemos até ao fim de vida dos produtos, quer no seu desmantelamento ou na sua reciclagem”. E afirma que o percurso é sempre feito de acordo com “o fazer melhor e eficientemente, a par das “melhores condições para tal”. Ou seja, tendo em conta as melhores condições para os trabalhadores do Grupo e aquilo que designa como “design for performance”, que se traduz na tentativa de fazer e conceber produtos de forma a aumentar a sua vida útil. Ou, como salienta, “evitar a todo o custo o usa, gasta e deita fora”.

“Depois de termos tomado consciência de como consumimos, reduzimos e dispomos”, diz ainda, a TMG optou por tornar estratégica a sua vontade, sendo hoje membro do Global Compact das Nações Unidas e defendendo os 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, procurando “dar um contributo importante na área da defesa dos direitos humanos, no acesso à educação, no acesso à saúde, na erradicação da pobreza, no crescimento económico, na inovação, consumo e produção responsável, acção climática e energias limpas”. O Grupo é também subscritor do denominado “Business Ambition for 1.5°C”, uma carta que incentiva as empresas, a nível mundial, a criarem medidas de combate às alterações climáticas, o que representa “um objectivo e uma tarefa ambicioso de cumprimento da neutralidade carbónica em 2050”.

Todavia, a gestora alerta para um outro problema que está ainda por resolver, que a todos nós diz respeito e que é “o de convencer e educar o consumidor, o qual passa por alterar a vontade em ter em quantidade para o ter em qualidade”. Defendendo que o consumidor não só tem de ser informado, mas também responsabilizado, dá o exemplo da aquisição de uma t-shirt por cinco euros e das perguntas que têm de ser feitas quando tal acontece. “Em que condições foi feito este produto? Será que foi produzido num local que respeita o ambiente, os direitos humanos e a luta contra o trabalho infantil? E em que condições de segurança?”, enumera, afirmando taxativamente que “não é possível fazer uma t-shirt por cinco euros” e que quando adquirimos produtos nesta condições “somos também responsáveis por a exploração que lhe deu origem, a qual, como está longe, não é vista nem sentida por nós”.

“A pandemia trouxe a vantagem de pararmos e equacionarmos para onde queremos ir”

Voltando ao actual momento da pandemia provocada pela Covid-19, e mesmo ninguém sabendo ao certo o que vai acontecer, Isabel Furtado é da opinião que “irão existir alterações estruturais, muitas e muitas mudanças e teremos decerto uma grande dificuldade na recuperação devido a uma estagnação económica que levará tempo”. Para a responsável do Grupo TMG, “vamos ter de aprender também a viver e a fazer negócios de outra maneira, sendo que nesta recuperação as empresas têm, mais do que nunca, uma responsabilidade social acrescida”.

No que respeita ao aumento da “digitalização” que todos testemunhámos desde que a pandemia se instalou no país, Isabel Furtado partilha uma ideia de certa forma ambivalente. Se, por um lado e no seu caso, “não será preciso ir a Lisboa tantas vezes para resolver assuntos que passaram a ser solucionados pela via digital”, e também porque permite o acesso ao trabalho a pessoas que, por exemplo, vivem no interior, tendo igualmente proporcionado, no período de confinamento, mais tempo em família, o que são factores positivos, por outro, “há que ter muito cuidado”. Não só por causa do distanciamento físico do qual, confessa, “estou mesmo cansada”, mas tendo em conta outras preocupações, nomeadamente com o próprio emprego. “Porque este teletrabalho também torna o acesso ao emprego muito mais global, temos de ter a noção de que é possível contratar pessoas de outros países a muito menor custo sem sequer existir a necessidade de imigrar”, diz. Ou seja, acrescenta, “posso facilmente contratar hoje um informático na Índia sem o tirar do seu país e isto pode ser um contra-senso, porque vamos estar a empregar pessoas que não conhecemos, que não sabemos quem são, que não nos relacionamos com elas, apenas pelo baixo custo que elas representam nas nossas estruturas e, ao mesmo tempo, criando algum desemprego no nosso meio”.

Por outro lado, afirma igualmente que as nossas casas, na generalidade, foram preparadas para a família e não propriamente para trabalhar, o que se traduz também numa certa invasão de privacidade, não sendo possível também “pedir às pessoas que estejam em teletrabalho e que, em simultâneo, ensinem as suas crianças à distância”. Tendo noção que têm sido várias as grandes empresas a reportar benefícios muito positivos relativamente ao teletrabalho que começou a ser feito logo no início do estado de emergência, para a administradora do Grupo TMG há que existir uma particular atenção para uma provável desigualdade entre aqueles que são capazes de fazer o seu trabalho a partir de casa e os outros, como acontece na indústria, em que “os que trabalham no chão de fábrica não podem de todo fazê-lo”. Acreditando que a tendência é de continuidade, apesar de necessitar de moldes diferentes, “é muito importante não criarmos esta desigualdade no que respeita a horários flexíveis e ao conforto do trabalho de casa, porque podemos ter alguns problemas”, alerta.

Admitindo que a Covid-19 também trouxe a vantagem de nos fazer “parar, equacionar o que queremos e para onde devemos ir”, existem alguns pontos que, enquanto sociedade, temos de abordar, “não só para nossa defesa, mas também para a continuidade do nosso crescimento”. E um deles é “a importância da indústria na Europa, não só como factor de crescimento, mas também como gerador de emprego e, consequentemente, de riqueza individual e do próprio país”. Para a oradora, é igualmente importante pensar, no que respeita ao abastecimento, em termos de “soberania e independência face a outras economias”, de que são exemplo os bens que, nesta crise, se provaram ser tão essenciais, particularmente na área da saúde, e na importância da proximidade dessas mesmas cadeias de abastecimento, “não só por uma lógica da sua pegada de carbono, como também de desenvolvimento regional”. Certo é, e afirma-o com veemência, que “não podemos ter economias globais com regras locais”. Para a gestora, há que “enveredar por mercados onde as regras sociais e ambientais sejam as mais parecidas possíveis com as nossas”, pois “não podemos crescer e enriquecer à custa da exploração de outros países”.

A fechar a sua apresentação, Isabel Furtado não deixou de mencionar a entidade a que também preside – a COTEC – recordando que a sua missão é a “inovação no seu mais amplo sentido, a transferência de conhecimento permitida pela ligação entre a academia e as empresas e a divulgação e difusão de temas tão estruturantes como a indústria 4.0, a bioeconomia, a economia circular”, todos eles com um impacto muito significativo na sociedade e transversais a todos os sectores.

A gestora relembrou ainda que, neste momento em particular, as PME – que representam mais de 90% do nosso tecido empresarial – merecem uma atenção especial, não só para serem dinamizadas, como “contando também com o Estado para as manter vivas”. Convencida que as empresas pequenas que fecharem durante o surto pandémico não voltarão a ter oportunidade de se reerguer, Isabel Furtado considera ser crucial “unirmo-nos com as pequenas empresas, apoiá-las, fazer parcerias, fazer programas colaborativos para as trazermos para um meio onde possam crescer”, trabalho que tem sido muito importante e feito pela COTEC de forma abrangente, diz ainda.

“Não consigo separar a minha forma de actuação em família da minha forma de actuação na empresa”

Na habitual sessão de perguntas aos palestrantes convidados para ajudarem a “construir esperança na crise” e tendo em conta a incerteza radical a que estamos sujeitos e à qual não estávamos habituados, a responsável pelo Grupo TMG foi questionada acerca do seu próprio diagnóstico para o futuro próximo. Afirmando que, por natureza, não é pessimista, Isabel Furtado declarou não ter deixado de ir à empresa todos os dias, mesmo com algum medo e com muitas restrições, e que “felizmente”não teve de fechar, tendo contudo algumas pessoas em regime de teletrabalho e outras em layoff”. No entanto, tem a exacta noção de que o caminho para a retoma será longo e duro de percorrer mas, e em simultâneo, diz estar convencida que tal como a Europa “fechou em dominó”, o mesmo acontecerá com a sua reabertura. Mas teme também que se as empresas começarem a fechar, enfrentaremos “uma onda gigante, que nos fará ir abaixo e, ao virmos à tona, alguns ficarão decerto para trás”. Todavia, defende que as empresas deverão continuar com os investimentos que estavam planeados, porque “mais cedo ou mais tarde, virá a retoma”.

Respondendo também a uma questão sobre a competitividade de Portugal face à Europa, a gestora recordou que “ Covid-19 trouxe, pelo menos para a indústria têxtil, um mar de oportunidades, reinventando-se para acudir à pandemia” e que “está provado que conseguimos dar a volta quando é preciso”, conseguindo assim sermos competitivos na Europa, “onde todos tocam através da mesma pauta e com condições similares em termos de exigências sociais e ambientais”.

E porque é uma pergunta que tem sido sempre feita no âmbito destes fóruns, que visão, para além do que já foi dito ao longo da sua intervenção, tem a responsável pelo Grupo TMG do teletrabalho? Apesar de confessar que “detestaria estar em casa em teletrabalho”, acredita que este veio para ficar, mas que não vai substituir o trabalho presencial e “ainda bem”. A gestora acredita que poderá existir a flexibilização de algum tipo de teletrabalho, o que pode ser importante para a vida familiar das pessoas, não sendo possível esquecer, porém, que “estar em teletrabalho e tomar conta dos filhos é ter dois trabalhos em simultâneo”.

Questionada também sobre a dualidade em que vivem alguns líderes empresariais no que respeita a valores diferentes que professam em casa versus os que aplicam no local de trabalho, como vê Isabel Furtado a “unidade de vida” – um tema caro à ACEGE – no seu quotidiano pessoal, profissional e na forma como lidera os outros? “Eu não consigo separar a minha forma de actuação em família da minha forma de actuação na empresa”, responde de imediato, acrescentando que procura trazer, e cada vez mais, a parte humana, e mesmo cristã, para o interior da empresa. “Não tenho problema nenhum em afirmar-me como uma cristã, como católica, dentro do meio profissional. E penso que nós, cristãos, muitas vezes vemos coisas que não gostamos e calamos”, acrescenta. “E eu não sou de me calar, muito menos quando vejo coisas que me tocam”, remata.

E quanto à ética? Será que este período em particular exige que os líderes empresariais sejam ainda mais éticos? Para Isabel Furtado, “a vida sem ética nem sequer é uma questão, simplesmente porque não existe”. Apesar de admitir que alguns concorrentes que tem em algumas partes do mundo não se regem pelas suas regras e que já perdeu algumas oportunidades exactamente devido à ética que pratica, a gestora assegura que “quando se entra nos negócios com ética, com seriedade, acabamos sempre por ter retorno”. E quanto à época especial que estamos a viver, não considera que a ética seja mais importante agora do que antes, pois esta é sempre importante. “A ética e os valores têm de estar sempre presentes na nossa forma de gestão. Não pode ser nem mais, nem menos”, remata.

Por último, e porque desde dois anos a esta parte, a líder do Grupo TMG tira uma semana de férias para visitar a Guiné – país onde o seu marido, médico, faz trabalho humanitário há 11 anos -, Isabel Furtado conta como se sente reconfortada em sentir que, num sítio” onde não há nada”, tudo é importante. Afirmando, com humildade, que a sua actuação na Guiné é “insignificante”, pois apenas “vou para lá ver necessidades e gerir materiais”, ao contrário do marido que vai para lá “operar e salvar muitas vidas”, a gestora confessa que o facto de ser confrontada “com uma realidade tão dura e tão necessitada”, obriga a que se faça “uma paragem para pensar”. E é na aldeia dos leprosos que Isabel Furtado passa a maior parte do seu tempo quando visita terras guineenses, uma “área particularmente difícil”, contactando com a “mais miserável doença do mundo” e visitando a escola local para se inteirar de dificuldades que possam ser supridas por seu intermédio. A seu ver, este trabalho a que não chama trabalho “faz parte de um crescimento pessoal”. E é por isso que ousa afirmar que “nunca mais deixarei de ir à Guiné”, pois “dar um bocadinho de nós aos outros” deve fazer parte da vida de todos.

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