Quem o sublinha é Ko Barrett, vice-presidente do IPCC e que está em Lisboa para participar numa conferência que visa discutir os desafios e os caminhos rumo a uma economia descarbonizada. Em entrevista ao VER, a especialista em alterações climáticas oferece a sua visão sobre o recém-ratificado Acordo de Paris, explicando por que motivo “desta vez é diferente”. Crente que este compromisso global será muito mais resiliente e duradouro do que os seus antecessores, não deixa contudo de alertar que, sem esforços adicionais, o aquecimento do planeta até ao final do século conduzirá a impactos severos e irreversíveis. Todavia, o seu discurso é de optimismo
POR
HELENA OLIVEIRA

Reconhecida internacionalmente como especialista em alterações climáticas, particularmente nas questões relacionadas com o seu impacto e com as estratégias que visam ajudar a sociedade a adaptar-se a um mundo que enfrenta enormes e contínuas mudanças, Ko Barrett faz parte do comité executivo do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), o organismo da ONU criado em 1988 e que, consensualmente, representa a maior autoridade mundial no que respeita ao aquecimento global. Para além de ocupar uma das três cadeiras reservadas à vice-presidência daquele que tem sido o pilar fundamental para o estabelecimento de políticas climáticas mundiais, Ko Barrett é igualmente directora da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA), gozando de largos anos de experiência científica e de supervisão em várias áreas relacionadas com as ameaças climáticas, tendo sido responsável também pelo Programa Vulnerabilidade e Adaptação, o primeiro a ser lançado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), através do seu Programa de Alterações Climáticas Globais, do qual foi igualmente directora.

Em entrevista ao VER, e dada a urgência de um plano de acção que possibilite atingir os compromissos firmados em Paris, Ko Barrett afirma ter esperança que os esforços diplomáticos sejam suficientes para se agir ainda antes de 2020 – ano em que oficialmente o Acordo entraria em vigor, mas que, com visível surpresa para muitos, se materializará já a 4 de Novembro próximo. Antecipando também os próximos “grandes momentos” desta acção climática à escala global, nomeadamente a COP 22, que terá lugar em Novembro, em Marraquexe e a divulgação do novo relatório do IPCC em 2018, Barrett garante ainda que as conclusões deste último sairão em boa altura para serem integrados no “diálogo facilitador”, como resposta a um “apelo” formulado também pelo Acordo de Paris.

A rápida entrada em vigor do Acordo de Paris constitui um passo importante nesta longa marcha para se fazer face às alterações climáticas. Todavia, temos consciência que os objectivos articulados neste acordo não serão fáceis de concretizar. Até que ponto acredita que ainda é possível ir ao encontro destas metas e em que medida “desta vez é diferente” face aos anteriores esforços?

[pull_quote_left]O Acordo de Paris é significativamente diferente das tentativas que o precederam para se estabelecer um regime climático duradouro[/pull_quote_left]

O Acordo de Paris é significativamente diferente das tentativas que o precederam para se estabelecer um regime climático duradouro, e em diversos aspectos. Para começar, esta é a primeira vez que a acção climática é assumida à escala global. Em segundo, porque foi desenvolvida como um regime “ascendente” no qual os países são convidados a avançar com compromissos ambiciosos e para os quais existem incentivos para que possam ir o mais longe possível. Em terceiro, porque os maiores emissores, em particular os Estados Unidos e a China, acabaram por adoptar a descarbonização e o desenvolvimento de uma economia de baixo carbono como o seu futuro. E tudo isto contribui para que haja uma confiança reforçada de que o tratado de Paris seja mais resiliente do que aqueles que o precederam.

A esmagadora maioria dos 189 países que assinou o acordo comprometeu-se a combater e a adaptar-se às alterações climáticas com acções que devem ser implementadas entre 2020 e 2030. Tendo em conta que o principal objectivo da política climática tem sido sempre o mesmo – limitar o aumento da temperatura o mais possível – todos os países terão que levar a cabo acções significativas para reduzir as emissões que provocam o aquecimento global. Como é que perspectiva o “dia seguinte” a esta rápida entrada em vigor do acordo e quais são os primeiros passos, ou os mais urgentes, que têm de ser dados no curto prazo?

O “dia seguinte” deverá ser uma celebração! … antes de todos nós começarmos a trabalhar em força. A pesquisa sobre as soluções climáticas indica que é necessária uma acção no curto prazo. No âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), a minha perspectiva é a de que foram feitos os esforços diplomáticos suficientes para se agir ainda antes de 2020. Mas enquanto representante do organismo científico internacional que oferece actualizações periódicas sobre o estado da ciência climática, não me parece apropriado opinar sobre os passos urgentes que os países devem tomar para ir ao encontro dos seus objectivos. Todavia, e de acordo com a última avaliação extensa realizada pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), o Quinto Relatório de Avaliação (AR5, na sigla em inglês), ficou demonstrado que os cenários mais prováveis para manter o aquecimento global abaixo dos 2o C ao longo do século em relação à temperatura média na era pré-industrial teriam de ser caracterizados por reduções nas emissões de gases com efeito de estufa (GEE) em 40 a 70% até 2050, relativamente aos níveis de 2010, e por níveis de emissões próximos do zero ou abaixo até 2100.

Sabemos que as nações mais ricas contribuíram (e contribuem) mais para as emissões globais comparativamente aos países em desenvolvimento, mas que são estes últimos que enfrentam um fardo desproporcional resultante dos impactos provocados pelas alterações climáticas. Considera que o Acordo de Paris possa representar, de alguma forma, uma aceitação de uma maior responsabilidade por parte dos países desenvolvidos no que respeita tanto a liderar o processo de descarbonização, como a auxiliar os países mais vulneráveis às alterações climáticas?

[pull_quote_left]Paris reinterpreta o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas[/pull_quote_left]

Paris reinterpreta o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, à luz do crescimento das emissões ao longo dos últimos vinte anos. Todavia, os países desenvolvidos aceitaram, desde o primeiro momento das negociações climáticas, uma responsabilidade “especial” no sentido de ajudar os países em desenvolvimento, e em particular aqueles que são os menos desenvolvidos, a aumentar a sua resiliência e a diminuir a sua vulnerabilidade à alteração climática. Mas o Acordo de Paris foi ainda mais longe nestes compromissos. E o nosso próximo relatório, o AR6, irá incluir, garantidamente, informação actualizada sobre todas estas questões, tendo como base o trabalho que já realizámos no AR5.

O Acordo de Paris apela também a um “diálogo facilitador” em 2018, em conjunto com a divulgação do novo relatório do IPCC no mesmo período. Mas antes, e tendo início já a 7 de Novembro próximo, teremos a COP 22, em Marraquexe. Quais são as suas expectativas para estes três grandes momentos?

A COP 22 foi originalmente anunciada como uma espécie de preparação dos detalhes para a implementação do Acordo de Paris. Mas e para surpresa de muita gente, este foi ratificado por um conjunto significativo de países muito mais rapidamente do que se esperava e entrará em vigor uma semana antes do início da reunião em Marraquexe. E apenas 11 meses depois do acordo firmado em Paris! Naturalmente que este facto suscitará um enorme interesse adicional à COP 22, onde o verdadeiro trabalho de implementação do acordo irá começar.

[pull_quote_left]O primeiro balanço global será feito em 2023 e funcionará como um sistema de avaliação periódica, a cada cinco anos, dos progressos realizados pelos países[/pull_quote_left]

O Acordo de Paris apela à limitação do aquecimento global abaixo do objectivo anterior e internacionalmente aceite dos 20C, ao mesmo tempo que pede aos países que prossigam os esforços para travar o aumento da temperatura média em 1.50. Mas em Paris não se conseguiu aferir adequadamente o que significa este objectivo de 1.50, sendo que o mesmo não foi analisado de forma detalhada no último relatório publicado pelo IPCC, o Quinto Relatório de Avaliação (AR5), concluído em 2014. E foi também por isso que a COP21, no seguimento da obtenção do compromisso em Paris, pediu ao IPCC para produzir um Relatório Especial sobre os impactos do aumento da temperatura média global até 1,50 C e sobre os efeitos globais relacionados com as respectivas emissões.

E o IPCC respondeu rapidamente. Já elaborámos um esboço do documento que será acordado na nossa próxima reunião, que terá lugar para a semana em Banguecoque. E estamos a seleccionar os autores que irão preparar esse mesmo relatório já no início do mês que vem. O relatório será publicado em 2018, e em boa altura para integrar as suas conclusões no “diálogo facilitador”, o qual servirá como o ponto de partida das discussões que irão conduzir ao primeiro balanço global em 2023. Este balanço funcionará como um sistema de avaliação periódica, a cada cinco anos, dos progressos realizados para atingir o objectivo global e da adequação dos esforços de base, ou dos contributos determinados a nível nacional, que os países levarão a cabo para o alcançar. Assim e em suma, o relatório especial do IPCC será um elemento chave dessa mesma discussão, assegurando que este balanço tem como base os melhores conhecimentos científicos disponíveis.

A adaptação e a mitigação constituem estratégias complementares para reduzir e gerir os ricos das alterações climáticas, sendo que será pedido aos países que registem as suas novas metas de emissões estabelecidas para o período pós-2020. Por outro lado, existem já várias e diferentes tecnologias de baixo carbono disponíveis, mas os países terão de enfrentar riscos e trade-offs incontornáveis para que se chegue a um mundo livre de carbono. O que considera ser mais urgente e também mais difícil de abordar nesta problemática?

[pull_quote_left]Esperamos obter uma melhor compreensão dos aspectos económicos das alterações climáticas – nomeadamente, os custos da acção e da inacção[/pull_quote_left]

Essa é exactamente a questão que o relatório especial sobre o 1,5º C e o próximo grande relatório de avaliação espera ajudar a responder. Apesar de ser claro que ambas as estratégias são necessárias, estes relatórios ajudar-nos-ão a perceber melhor os benefícios e os trade-offs da mitigação e adaptação climática, para que os países possam avaliar o equilíbrio de acção que melhor suporte os seus objectivos e compromissos. Em particular, esperamos obter uma melhor compreensão dos aspectos económicos das alterações climáticas – nomeadamente, os custos da acção e da inacção – para que a acção climática possa também ser adequadamente aferida neste importante contexto.

A sua apresentação na conferência em Lisboa tem como tema a “Descarbonização nos Cenários do IPCC”, sendo que o IPCC já alertou que a transição para um caminho de baixas emissões exige uma transformação em larga escala, enquanto e ao mesmo tempo, já gastámos mais de 50 por cento do nosso “orçamento de carbono”. Sem acções explícitas e eficazes, poderemos vir a presenciar um aumento da temperatura média global superior a 40 C. Imaginando que este é o pior cenário, o que aconteceria ao planeta caso o mesmo se concretizasse?

Eu prefiro não pensar em cenários tão graves, mas um dos principais resultados do AR5 alerta para que “sem esforços de mitigação adicionais, para além dos que já estão em vigor actualmente, e mesmo com adaptação, o aquecimento até finais do século XXI irá conduzir a um elevado risco de impactos severos, generalizados e irreversíveis a nível global”. Mas existe muita informação detalhada sobre os impactos potenciais decorrentes de um aquecimento na ordem dos quatro graus centígrados no Quinto Relatório de Avaliação (AR5).

Editora Executiva