Steven Pinker é autor de um dos livros mais promissores do ano e até há quem diga que vencerá o Pulitzer para a categoria de não ficção. Desde a pré-história até aos nossos dias, e em 800 páginas, este psicólogo de Harvard assegura que a guerra está em declínio, a humanidade menos violenta, menos racista e menos sexista e que o progresso moral tem vindo a registar um significativo aceleramento nas últimas décadas. Por outras palavras, nós, humanos, estamos muito menos bárbaros e muito mais simpáticos. Mas e todos os dias, somos obrigados a duvidar de esta argumentação
POR HELENA OLIVEIRA

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De acordo com o Instituto de Pesquisas pela Paz Internacional, com sede em Estocolmo, os gastos militares em todo o mundo têm vindo a crescer anualmente, nos últimos 15 anos e são entre 15 a 20 os grandes conflitos armados – leia-se guerras – que continuam activos. Tudo somado, mais de 175 milhões morreram por causas violentas relacionadas com a guerra ao longo do século XX, juntamente com mais oito milhões de pessoas vítimas de conflitos entre indivíduos.

Mas e mesmo perante estes números terríficos, de acordo com o novo livro de Steven Pinker, a humanidade tem vindo a assistir a um significativo decréscimo de violência nas suas vidas. Em The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined, o reconhecido psicólogo de Harvard faz uma viagem multidisciplinar, desde a pré-história até aos nossos dias, e assegura, como tese central da sua obra de 800 páginas, que a guerra está em declínio, a humanidade menos violenta, menos racista e menos sexista e que o progresso moral tem vindo a registar um significativo aceleramento nas últimas décadas. Por outras palavras, nós, humanos, estamos muito menos bárbaros e muito mais simpáticos.

Para quem ouve notícias, a tese é difícil de aceitar. Mas Pinker argument que o mundo nunca foi um local tão seguro para se viver e que, olhando para trás, não existem dúvidas que se tornou muito mais benéfico para os humanos terem-se tornado menos violentos.

Para comprovar a sua tese, o professor de Harvard foi obrigado a sair da sua habitual zona de conforto – a psicologia – e mergulhou em disciplinas tão distintas quanto a arqueologia forense, a filosofia política, a história social e intelectual, nas dinâmicas populacionais, na estatística e nas relações internacionais. Para um dos críticos mais respeitados do The New York Times, o presente livro poderá ser um forte candidato ao Prémio Pulitzer.

Ao longo da literalmente pesada obra, Pinker identifica um conjunto de forças que contribuíram para refrear a capacidade da humanidade para a desumanização: a emergência gradual dos estados capazes de assumir um contrato social; o impacto pacificador do comércio e das trocas no comportamento; a herança do Iluminismo por permitir aos seres humanos colocarem-se “nos sapatos” dos seus semelhantes; a forma como a imprensa e a literacia expandiram o “círculo de empatia” para além do núcleo familiar mais próximo; a importância das mulheres que conseguem tornar os homens mais civilizados e, a “paz longa” – conceito desenvolvido no livro – que se seguiu à segunda guerra mundial.

O título escolhido por Pinker para o livro – “os melhores anjos da nossa natureza” – foi inspirado numa frase de Abraham Lincoln, proferida há cerca de 150 anos pelo presidente norte-americano. Mas tal optimismo não deixa de ser um desafio para os humanos que vivem no século XXI e que todos os dias convivem com histórias de violência e com os registos de atrocidades recentes.

Basta pensarmos nas taxas de homicídio actuais, no Holocausto, nos custos em vidas humanas das duas grandes guerras que atravessaram a primeira metade do século XX, nos genocídios causados por tiranos tão distintos como Estaline ou Mao ou em outros ainda mais recentes. Ou recordarmos as guerras do Vietname ou da Coreia ou, mais recentemente, o 11 de Setembro, as guerras no Darfur ou no Iraque. E tantos outros conflitos e níveis horríveis de barbárie que são uma constante no dia-a-dia de vários milhões de pessoas. Todavia, Pinker argumenta que esta visão está errada. Para o autor, a violência no interior e entre as sociedades – tanto no que diz respeito a assassinatos como em conflitos de guerra – sofreu um declínio extremamente significativo (e não faltam páginas repletas de gráficos que o comprovam) desde a pré-história até aos dias de hoje. Pinker assegura que é muito menos provável morrermos às mãos dos nossos semelhantes e que até a horrível carnificina do século passado, quando estudada à luz da já longa história da humanidade, faz parte desta tendência. E como escreve o próprio, “o facto de nos matarmos uns aos outros cada vez com menos frequência consiste numa das maiores mudanças na história da Humanidade.

A crueldade dos números e os caminhos para a civilização
Apesar de definir o século XX como um dos mais violentos da História – com guerras, genocídios e assassínios em massa, Pinker defende que, neste período,“apenas” três por cento de humanos morreram devido a catástrofes provocadas pela sua própria espécie. E, apresentando as cifras do contraste, Pinker dá o exemplo de um estudo realizado a partir da observação de esqueletos norte-americanos pertencentes a comunidades de caçadores-recolectores, com 13% das mortes causadas pela mão humana. Um outro exemplo remonta ao século XVII, no qual a Guerra dos 30 anos reduziu a população germânica em um terço. Pinker faz ainda, através de um programa informático, a correspondência, em termos populacionais, das percentagens de mortes tendo em conta a densidade populacional. Por exemplo, as conquistas dos mongóis no século XIII, tiraram a vida a cerca de 40 milhões de pessoas, o que corresponderia a cerca de 278 milhões se o número for “traduzido” para a década de 50 do século passado. Um outro exemplo, apesar de difícil de aceitar por nos ser tão próximo, são os ataques do 11 de Setembro. Para o mundo, ver em directo a morte de 3 mil pessoas ficará, decerto, na memória colectiva, como um dos mais trágicos e mortíferos actos de violência dos tempos modernos. Mas, de acordo com a tabela de correspondências de Pinker e em termos relativos, o seu impacto é infinitesimal comparativamente a outras atrocidades históricas.

Como resume o The Guardian, o maior fascínio deste livro reside no caminho traçado desde os tempos em que a espécie humana gozava o espectáculo de esfolar os seus semelhantes vivos ou de considerar que quem assassinava crianças teria os mesmos direitos do que qualquer outra pessoa. Tal como o autor demonstra, esta é uma história longa mas, em simultâneo, recente. E a primeira grande transformação na forma como a violência se altera na humanidade é feita na passagem das comunidades nómadas, em que as possibilidades dos caçadores-recolectores encontrarem a morte era tão elevada quanto 50%, para as comunidades gregárias. De sublinhar todavia que os primeiros “estados”, com governos que deveriam assegurar a paz para os seus povos”, foram capazes de exercer a crueldade de uma forma tão terrível quanto a dos seus antepassados. A maioria dos instrumentos de tortura que Pinker faz desfilar numa espécie de câmara de horrores foram concebidos e utilizados pelos “serventes do estado”.

Assim, e em termos de passos dados, o que teria forçosamente de acontecer a seguir, seria a civilização do próprio estado. E é neste capítulo da história que Pinker assume o iluminismo como a época em que a espécie humana começou a aprender a restringir os seus piores instintos. Tanto na vida pública como na privada (os exemplos referidos pelo autor são tão díspares como guias de “boas maneiras” até às declarações de direitos humanos), escreve o autor que “de forma lenta, dolorosa mas, em última análise, com sucesso, a tortura foi banida, a escravatura abolida, a democracia estabelecida e as pessoas descobriram que poderiam confiar no estado para as proteger”, escreve. Mesmo sabendo-se que existem ainda muitos locais onde estes actos continuam a fazer parte do quotidiano.

Pinker não nega que o ser humano, enquanto indivíduo, continue a ser capaz dos mais sórdidos actos de selvajaria. Basta pensarmos no que aconteceu na Noruega. Mas e o que interessa para o psicólogo de Harvard é que o resultado do teste para a propensão da violência reside na forma como o resto de nós lhe dá resposta. Ou seja, o instinto básico humano de responder à violência com violência tem sofrido significativas e benéficas alterações.

E, para fundamentar esta evolução, Pinker dedica dois longos capítulos a descrever os processos psicológicos (afinal, é a sua área de especialidade) que nos podem tornar ou violentos ou pacíficos. O nosso lado negro é estimulado por uma evolução com base na propensão para a predação e para o domínio. Já no lado “angélico”, possuímos, ou temos capacidade para aprender, níveis de autocontrolo que nos permitem inibir essas tendências mais negras. E, ao longo dos tempos, essa aprendizagem tem tido efeitos muito positivos, devido à neuroplasticidade do cérebro, ou seja, a capacidade do cérebro humano de se alterar em resposta a determinadas experiências. E o que nos faz decidir entre a virtude e o vício resume-se (quase) a uma questão de cálculo estratégico. Recorremos à violência quando esta nos parece a melhor forma de resposta. Mas resistimos-lhe quando ela parece ser mais arriscada do que a alternativa. E esse é o motivo devido ao qual a violência pode ser auto-reforçada mas, em contrapartida, a paz também o pode ser. Todavia, Pinker não é ingénuo o suficiente para afirmar que devemos esperar a época em que a paz seja total, porque os demónios continuam no interior da espécie humana.

A nova paz e as críticas à visão (demasiado) optimista da violência
De regresso às guerras, em vez de nos centrarmos nos elevados níveis de violência nas ruas, aos quais vamos tendo acesso regularmente, são estas que mais mortes geram. Nomeando três tipos de conflitos por excelência – as guerras civis, as mortes perpetradas entre grupos étnicos e políticos e, mais recentemente, o terrorismo – o professor não deixa de recordar ao leitor o sadismo e a brutalidade que continua a estar patente na sociedade contemporânea.

Mas, insiste, apesar dos conflitos que ainda subsistem, o curso que a humanidade seguiu desde a Antiguidade, foi de um declínio significativo na violência nas últimas duas décadas. O Professor denomina este desenvolvimento como a “Nova Paz” e compara os conflitos de agora com os que mais vidas levaram no século XX. Apesar das guerras no Iraque, Afeganistão, Sri Lanka e Sudão terem sido, aos nossos olhos, muito mortíferas, as contas de Pinker cifram-se numa “surpreendentemente baixa taxa de mortes em combate: cerca de 0.5 por 100 mil combatentes ao ano”na primeira década do presente século. E, para o autor, a principal razão desta queda reside no declínio das guerras entre os estados desde 1945. Por outro lado, se pensarmos que na guerra de quatro anos da Correia morreu um milhão de combatentes e 1,6 milhões na do Vietname, que durou 9 anos, os números abrem-nos uma nova perspectiva relativamente à primeira guerra do Golfo (com 23 mil mortos em batalha entre 1990 e 1991) e o conflito entre a Etiópia e a Eritreia, que ceifou 50 mil vidas em três anos, de 1998 a 2000.
Mais uma vez, o livro de Pinker parece assentar numa questão de perspectiva.

Numa entrevista à CSMonitor, o autor responde igualmente às grandes forças que, historicamente, alimentaram a sede de violência.

Falando do comunismo, assume-o como uma força maior de violência que durou mais de um século, mas porque foi construído e manipulado no interior da sua própria ideologia: a de que o progresso só se atingiria através da luta de classes, muitas delas extremamente cruéis. Entre a violência e a religião, assume também que muitas vezes andaram de mãos dadas, mas alerta para o facto de não existir uma correlação perfeita entre ambas, e muito menos permanente, porque as próprias religiões se vão alterando. Mas são algumas ideologias que, de acordo com determinadas particularidades, parecem encabeçar as forças que maior violência despoletam. Uma delas é a possibilidade da utopia, na medida em que as utopias são infinitamente boas para todo o sempre e é sempre possível justificar qualquer que seja a violência para perseguir essa mesma utopia. Para o autor, as utopias tendem a demonizar certos tipos de pessoas como obstáculos a um mundo perfeito, sejam eles as classes dominantes, os judeus, os infiéis, os hereges ou qualquer outro segmento da sociedade. “E a partir do momento em que determinada ideologia identifica a principal fonte das ‘doenças’ do mundo como um grupo definido, abre sempre caminho para o genocídio”, afirma.

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Apesar de o livro The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined já ter sido considerado como um dos melhores livros de 2011 (foi publicado em Outubro último), como não poderia deixar de ser, não está isento de críticas.

E, talvez a mais violenta que tenha recebido foi a do filósofo político John Gray que, na revista Prospect ataca firmemente a identificação feita por Pinker do “Iluminismo” enquanto crucial para o declínio da violência, na medida em que escolheu um grupo de pensadores da época que, para o filósofo, não são representativos de toda uma era, acusando-o igualmente de ignorar alguns “valores iluministas” defendidos por pensadores que, em termos de doutrina, eram anti-liberais, enquanto outros favoreceram a utilização da violência política em larga escala, desde os Jacobinos que lançaram o terras ao longo da Revolução Francesa, ao filósofo Engels que considerava bem-vinda uma guerra na qual os eslavos – “os aborígenes do centro da Europa” – deviam ser varridos.

Mas e no que respeita a críticas consensuais, o maior problema apontado ao extenso e intenso livro de Pinker, é a sua ausência de resposta a questões que estão directamente relacionadas com o nosso quotidiano. Por exemplo, o que pode acontecer quando um número crescentemente mais pequeno de pessoas pode causar danos irremediavelmente maiores?  Se, ao nos movermos da Idade da pedra para os tempos modernos se afirma que alguma violência foi deixada para trás, o que acontece se armas de destruição massiva forem parar às mãos de pessoas “modernas” que, em muitos aspectos, ainda vivem de forma primitiva?

Bem, na verdade, o propósito do livro é deixar-nos optimistas. Dependendo sempre da perspectiva, é claro.

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