Ozo Ibeziako foi galardoada com o Prémio Harambee 2019 de Promoção e Igualdade da Mulher Africana e esteve na AESE Business School para falar sobre o projecto “Art of Living”, o qual é dedicado a ajudar as raparigas a redescobrir o seu valor, a encontrar o seu potencial e a desenvolver os seus talentos, preparando-as também para a entrada no ensino superior. As actividades têm lugar em Alexandra, um dos bairros mais pobres da província de Guateng, onde Nelson Mandela viveu, numa África do Sul em que “os pais estão desejosos de enviar os seus filhos para a escola para que estes possam ter melhores oportunidades de vida”, como afirma a galardoada numa entrevista ao VER
POR HELENA OLIVEIRA

Ozo Ibeziako conhece bem as fragilidades e vulnerabilidades de quem habita o bairro de Alexandra, local onde chegou a viver Nelson Mandela. Com uma licenciatura em Medicina trazida do seu país de origem, a Nigéria, cedo soube que gostaria de contribuir para a recuperação de um país que, não sendo seu, sempre a inspirou. Com a ajuda da Fundação Komati, cujo principal enfoque é “promover projectos que possam contribuir para o desenvolvimento social dos mais desfavorecidos na África do Sul, projectos que possam abordar as necessidades da comunidade, feitos para os africanos e pelos próprios africanos”, lançou o “The Art of Living”, concebido para ajudar jovens raparigas a ter um futuro melhor e mais bem informado. Seis anos passados sobre o início deste projecto, mais de 500 raparigas foram já ajudadas a descobrir e a seguir o seu caminho, e de quatro voluntários iniciais, os actuais já superam a centena. Em conversa com o VER, a médica nigeriana fala das suas raízes, das condições de vida de um dos muitos bairros habitados por negros com profundas carências sociais e económicas e de como tem fé que o futuro da África do Sul seja mais risonho.

Gostaria que me contasse um pouco da sua história pessoal enquanto uma mulher nigeriana, médica de família e como acabou por escolher viver na África do Sul…

A Nigéria é um país bastante diferente da África do Sul. Cada família tem o objectivo claro de enviar as suas crianças para a escola, sendo que a educação primária e secundária são gratuitas. E também a educação terciária [ensino superior] é bastante acessível para a maioria das pessoas no país. O meu pai foi também médico de família, apesar de hoje em dia já estar na reforma; a minha mãe é licenciada em Inglês, trabalhou como professora, mais tarde como directora da escola e terminou a sua carreira numa posição de gestão sénior no ministério da Educação. Com este contexto, a possibilidade de eu completar a minha educação superior nunca foi uma dúvida. Completei o ensino secundário e a minha formação universitária em medicina na Nigéria e ali trabalhei alguns anos antes de ter a oportunidade de viajar para a África do Sul, onde fiz a minha especialização em medicina familiar.

A África do Sul foi um país que sempre me intrigou devido à sua história peculiar, a qual fui seguindo como, suponho, a maioria dos nigerianos na altura. Adicionalmente, tinha já estado envolvida num projecto social enquanto estudante de medicina na Nigéria e quando surgiu a oportunidade de viajar para a África do Sul, pensei que tinha chegado a altura para eu contribuir com a minha parte para a nova fase de reconstrução do país.

Como surgiu a ideia de iniciar o Art of Living Project? Quais são os seus principais objectivos e que tipo de dificuldades tem vindo a enfrentar?

Cheguei à África do Sul em 1999, cinco anos depois da democracia se ter instalado no país. O primeiro governo eleito democraticamente e gerido por Nelson Mandela deixou-nos com o enorme desafio de perdoar o que tinha acontecido no passado, de olhar em direcção ao futuro com optimismo e de ter em mente que a África do Sul era agora um país onde todos poderiam viver em paz – brancos, negros, indianos, asiáticos. E todos tínhamos uma responsabilidade igual, sem discriminação, para contribuir para a sua reconstrução enquanto nação. Com um grupo de outras mulheres demos início à Fundação Komati e começámos a falar com os sul-africanos para pensarmos num possível projecto social na província de Gauteng, onde residíamos. Conhecemos uma jovem licenciada em Arquitectura, que vivia e crescera exactamente na Alexandra Township e que nos informou sobre as duras condições enfrentadas pelos jovens ali residentes.

Conhecida como Alex, é o segundo município mais pobre do país [um subúrbio de favelas muito próximo dos bairros mais ricos de Joanesburgo). As townships são áreas geográficas onde diferentes raças foram segregadas durante o regime de apartheid, neste caso, negros. Em Alex não existia nenhuma forma de desenvolvimento infra-estrutural – água, electricidade, saneamento ou alojamento. A maioria das famílias vive em casas de zinco, em espaços muito limitados e em condições miseráveis, sendo extremamente fria no Inverno e insuportavelmente quente no Verão. É também uma zona com sobrepopulação – estima-se que ali vivam cerca de 700 mil pessoas – graças ao constante fluxo de migrantes provenientes de áreas rurais, bem como de outros países africanos. Tem uma elevada taxa de desemprego – 25% para os homens, 30% para as mulheres e 55% para os jovens -, o que resulta na existência de muitas pessoas a “vadiar” pelas suas ruas, numa elevada taxa de criminalidade, drogas e prostituição. A situação torna-se ainda mais gravosa devido ao facto de o negro sul-africano médio considerar que tem direito a benefícios sem ter de se esforçar para isso. Apesar de a escola primária e secundária serem gratuitas, é frequente os miúdos deixarem de estudar por não verem qualquer futuro para si mesmos ao fazê-lo.

Em África existe um ditado que diz que “educando-se uma mulher, educa-se a nação inteira”. E isto deve-se ao círculo de influência alargada que uma mulher com educação tem: em primeiro lugar, educar bem os filhos, o que terá impacto mais tarde nos netos, na família mais próxima e também na alargada, na comunidade, ampliando-se assim o círculo. Com tudo isto em mente, decidimos lançar um projecto direccionado para a educação de raparigas jovens, futuras esposas e mães, a viver em Alex.

A criação deste projecto foi também possível graças ao apoio de um missionário irlandês que tem vivido em Alex e que ganhou a confiança da comunidade. Não só nos apresentou às primeiras famílias que se envolveram com o projecto como nos forneceu o sítio – uma escola secundária em ruínas que já não estava a funcionar – onde se desenrolam as actividades. Claro que tivemos de fazer um trabalho de reconstrução com a ajuda de donativos.

Em termos práticos, como funciona o projecto?

As actividades do Art of Living têm lugar os sábados (altura em que as raparigas e os voluntários não estão a estudar nem a trabalhar) durante os períodos lectivos, desde as 11 da manhã até às 4 da tarde. Admitimos miúdas a partir dos 9 anos, pré-adolescentes. Para que as raparigas valorizem o programa e se mantenham comprometidas, têm de pagar uma quantia para se registarem e outra mensal, sendo ambas mínimas. É que na verdade nos apercebemos que aquilo que é completamente gratuito não é nem valorizado nem apreciado. E para as que não podem pagar, o programa é financiado por outras mães que estão em melhor situação financeira para o fazer.

As nossas actividades são fundamentalmente direccionadas para ajudar as raparigas a redescobrirem o seu valor, a encontrarem o seu potencial, a desenvolverem os seus talentos, em conjunto com o apoio para terminarem o ensino secundário de forma bem-sucedida para conseguirem ser admitidas no ensino superior. Transmitimos-lhes valores e ensinamo-las a enfrentar as dificuldades que forem encontrando em situações específicas, o que é feito através das aulas, de sessões de trabalho, de acampamentos; elas aprendem a interagir e a lidar com pessoas com diferentes backgrounds culturais bem como a falar em público através de debates, peças de teatro, etc, sendo que lhes ensinamos também técnicas de estudo. As raparigas aprendem também a tratar da casa. E para as que estão a preparar-se para os exames finais do secundário, iniciámos uma actividade que denominámos Encontrar o Caminho. Esta tem como objectivo oferecer-lhes um período intenso de preparação para este exame, o qual aumenta a sua possibilidade de entrar no ensino superior. E integra a ajuda no preenchimento dos formulários de entrada na universidade, a apresentação de várias profissões para que elas possam fazer escolhas informadas sobre a carreira a seguir, uma visita à universidade para que elas possam experimentar o ambiente ali vivido, bem como a atribuição de tutores. Tudo isto resulta numa maior motivação para o estudo e para completarem o ensino secundário.

Na medida em que o projecto é apoiado pela Fundação Komati, o que mais nos pode dizer sobre os objectivos desta fundação?

O principal enfoque da fundação é promover projectos que possam contribuir para o desenvolvimento social dos mais desfavorecidos na África do Sul, projectos que possam abordar as necessidades da comunidade, feitos para os africanos e pelos próprios africanos. Todos os nossos voluntários são profissionais sul-africanos que cresceram em Alexa ou emtownships similares e que oferecem as suas competências e tempo sem qualquer custo, funcionando como modelos e mentores para as raparigas. De quatro voluntários que tínhamos no início, temos agora mais de 100. E é muito edificante testemunhar a sua dedicação.

Num país como a África do Sul, onde os negros ainda lutam para viver uma vida sem miséria, e onde existe ainda uma cultura muito paternalista, quais são as questões mais prementes relativas à desigualdade?

Actualmente, e no despertar de um novo país, a África do Sul é um país onde o contributo de todos que nele vivem é crucial sem qualquer forma de discriminação. A educação é crucial para que atinjamos os nossos objectivos de desenvolvimento.

Foi a vencedora do Prémio Harambee 2019 de Promoção e Igualdade da Mulher Africana. Mediante que formas considera que este galardão a possa ajudar a perseguir os seus objectivos de ajudar as jovens mulheres a “viverem uma vida com dignidade e esperança? Considera que o prémio poderá ajudar a replicar o projecto em outras zonas?

Ter recebido o Prémio Harambee 2019 significa uma afirmação de que as mulheres africanas têm o potencial não só para se desenvolverem a si mesmas, como também para contribuírem para o desenvolvimento da sua comunidade e do seu país. E sim, este prémio irá permitir uma extensão do projecto não só no interior de Alex, mas também em outras townships da província de Gauteng. O projecto foi lançado em 2012. Nestes seis anos testemunhámos o seu impacto nas vidas das raparigas e das suas famílias. As mães têm assistido à forma como as suas filhas cresceram e mudaram, tornando-se responsáveis e trabalhadoras, bem como à influência positiva que têm tido na sua família e comunidade. As mães também pediram para ter sessões de formação para melhorarem o seu papel enquanto mães, professoras e apoiantes dos seus filhos. Estas sessões têm, actualmente, um formato de seminários trimestrais. E, até agora, já tivemos mais de 500 pessoas – entre mães e filhas – que beneficiaram do projecto.

É também uma professora universitária e alguém que trabalha muito próximo do sistema de saúde da África do Sul. Com que tipo de questões de saúde mais complexas é que costuma lidar, particularmente no que respeita às mulheres?

A África do Sul é um país de raças mistas bem como de desenvolvimentos mistos – os muito ricos e os extremamente pobres. Temos o mesmo fardo relativo a condições de saúde crónicas – como a diabetes, a hipertensão ou as doenças coronárias. E sim, também temos o HIV e as doenças sexualmente transmissíveis que não são apenas “comuns” na África do Sul.

Citou o ditado que afirma que “educando-se uma mulher, educa-se a nação inteira”. Como comenta as necessidades educativas do país?

A educação e a saúde são duas prioridades do nosso governo democrático. As políticas de educação gratuita e de acesso à saúde para todos foram implementadas. Com o nosso passado histórico, é um facto reconhecido de que o futuro do país reside na educação. E os pais estão desejosos de enviar os seus filhos para a escola para que estes possam ter melhores oportunidades de vida.

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