O tempo presente oferece-nos imensas oportunidades, mesmo confrontados com um planeta que tem sido explorado para lá dos seus limites de rejuvenescimento, com recursos cada vez mais limitados e que precisam de ser partilhados para que possam chegar a todos e não apenas a alguns. Por outro lado, assolados com uma pandemia absolutamente inesperada, apanhados sem preparação, poderemos reconhecer que não somos tão auto-suficientes quanto pensávamos, não temos capacidade de planear tudo, não temos respostas para tudo. O desafio é enorme para quem lidera, podendo constituir-se, contudo, como uma oportunidade única para a promoção de propósitos maiores, com verdadeiro sentido de missão
POR JOÃO PEDRO TAVARES E FILIPE COELHO

Por todos os motivos acima mencionados, o tempo presente oferece-nos a oportunidade (forçada) de entendermos, em conjunto, que os modelos do passado precisam de ser mudados e repensados. Não de ignorar o passado, mas, precisamente, tomá-lo como lição e procurar reconstruir de forma distinta, com outro alcance. Não vivemos um tempo de trevas, mas de esperança. Não vivemos um tempo perdido, mas de enorme valor, apesar do sofrimento e da perda. As empresas e as instituições, os líderes, o mundo do trabalho terá de ser, obrigatoriamente, muito diferente, com novas responsabilidades e desafios. Muitas luzes são visíveis no horizonte e temos líderes mundiais que nos apontam caminhos desafiantes, de construção, de colaboração, de maior solidariedade, destacando-se o pensamento de Francisco, o Santo de Assis, do século XII e que tem inspirado o Papa Francisco junto dos mais jovens. Se o mundo não mudar com os atuais líderes, o Papa irá eleger a futura geração de líderes a fazê-lo, estando já a trabalhar com essa mesma futura geração à volta da “Economia de Francisco”. Há também um convite implícito a que os atuais líderes escutem e atendam aos futuros líderes para a promoção de caminhos mais inclusivos e transformadores.

Mas o que é, afinal, a “A Economia de Francisco” (‘EdF’)? No dia 1 de Maio de 2019 (por ocasião do dia de S. José Trabalhador) o Papa Francisco convocou jovens de todo o mundo (Economistas e de áreas afins; Empreendedores; e ‘Agentes de Mudança’) para um encontro intitulado “The Economy of Francesco – Os Jovens; Um Pacto; O Futuro”, que se iria realizar em Assis, em Março de 2020, convidando todos a:

i) Refletir em conjunto e com o auxílio de reputadas personalidades (entre outros M. Yunus, Kate Raworth, Jeffrey Sachs, Vandana Shiva, Stefano Zamagni, Jennifer Nedelsky), sobre como promover uma economia mais justa, inclusiva e sustentável;

ii) A firmar um Pacto, assumindo o compromisso de se empenharem num processo de mudança global, para que a economia de hoje e do futuro possam evoluir nessa direção.

Embora o ponto de partida tenha sido o convite para este encontro do Santo Padre com os jovens, desde logo o Papa Francisco sublinhou que não se tratava apenas de um evento, mas sim do início de um caminho. De facto, cedo ficou claro que a “EdF” não se resumiria ao encontro em Assis, visto que este seria parte dum processo que se iniciou em Maio de 2019, permitindo a cada participante – especialmente aos jovens, que são os principais protagonistas deste processo – pensar e questionar-se (com a inspiração e nos lugares de S. Francisco) sobre o que significa construir uma nova economia hoje? Deste “com a inspiração e nos lugares de S. Francisco”, surgiu a ideia de selecionar 12 locais significativos da cidade de Assis (e das experiências vividas pelo Santo nesses lugares), que durante o Evento iriam hospedar 12 Grupos de Trabalho. A cada local foi associado um grande tema, colocando-se o desafio de repensar a Economia atual e do futuro, de modo a gerar novas ideias e propostas, constituindo-se, para o efeito, as 12 ‘Vilas Temáticas’ seguintes1: Trabalho e Cuidado; Gestão e Dom; Finanças e Humanidade; Energia e Pobreza; Agricultura e Justiça; Negócios e Paz; Mulheres pela Economia; CO2 das Desigualdades; Lucro e Vocação, Empresas em Transição, Vida e Estilos de vida, Políticas e Felicidade.

Como se percebe, os títulos das ‘Vilas Temáticas’ agregam duas palavras, à primeira vista antagônicas ou com alguma tensão entre si, assentes em novos paradigmas para todos e para os lideres em particular. Esta escolha intencional pretende que a reflexão se faça para além dos (pré)conceitos que o mundo da Economia já tem estabelecidos (quais ‘dogmas imutáveis’…), dando-se assim espaço para pensar fora da caixa e para perspetivar o que poderá ser a Economia do Futuro. A este propósito o Papa dirigiu-se aos jovens dizendo que, ao debaterem os tópicos das 12 ‘Vilas Temáticas’, «Experimentastes a tão necessária cultura do encontro, que é o oposto da cultura do descarte, que está na moda. E esta cultura do encontro permite que muitas vozes estejam ao redor da mesma mesa para dialogar, pensar, debater e criar, de uma perspetiva poliédrica, as diferentes dimensões e respostas aos problemas globais que dizem respeito aos nossos povos e democracias [7] […]

Temos um Papa que vai ao fundo dos temas, económicos, sociais e ecológicos, para lá dos espirituais e que é promotor de uma economia inclusiva, de encontro, de unidade, de diálogo, de cuidado. Uma economia que cura e que une. Por tudo isso, com enorme sentido prático sugere-nos critérios para o caminho, que deveremos adotar no modo de Ver, Julgar e de Agir, referindo, como proposta de caminho que o tempo, a unidade, a realidade e o todo se sobrepõem ao espaço, ao conflito, à ideia ou à parte (vide encíclica do Papa ‘Evangeli Gaudium’):

  • O tempo é superior ao espaço

  • A unidade prevalece sobre o conflito

  • A realidade é mais importante do que a ideia

  • O todo é superior à parte

Estes critérios não são o caminho mais fácil mas a sua interiorização e vivência tornam qualquer modelo mais pleno, consequente e virtuoso. Só este tipo de abordagem, bem alicerçada na reflexão e investigação científica (conjugada com uma séria proximidade à vida real das Instituições, Empresas e, especialmente, das Pessoas – em particular dos mais desfavorecidos) poderá fazer crescer as bases já lançadas para repensar, de forma integral e globalmente responsável, a Economia do Futuro que o Papa e os Jovens auspiciam, a qual já está em marcha atualmente, embora numa espécie de “Revolução Silenciosa”…

No futuro o mundo deverá ser mais convergente. Os recursos são limitados e por isso é preciso conseguir-se mais com menos recursos. Por tudo isso deverá haver convergência na resolução dos problemas, nas vontades e nas soluções, com particular enfoque nos resultados que se podem, em conjunto, atingir. Numa linguagem que seja comum e acessível a todos, mas também na economia e na sociedade. As clivagens do passado tenderão a esbater-se. Já não se poderá dividir as organizações em “com fins lucrativos” e “sem fins lucrativos” pois o lucro deixará de ser o critério, a finalidade das empresas. E a ausência deste critério (o lucro) não poderá ser também o que irá definir o que se denomina por economia social ou terceiro setor.

Todas as organizações devem convergir no sentido de contribuírem para a criação de valor econômico, social, ecológico, mas, também, pessoal, familiar, comunitário e partilhado, em suma, criação de valor para uma verdadeira Sociedade do Cuidado. Também na promoção de capacidades partilhadas, no uso dos recursos.

A adoção de novas formas de medir os resultados será a chave para esta transformação e a comunicação clara e transparente com todos os stakeholders externos, é crucial para a mobilização de toda a sociedade. A criação de valor, em sentido amplo, será responsabilidade de qualquer organização independentemente de onde se insira. A economia do cuidado deixará de ser exclusiva do terceiro setor, mas responsabilidade de todos os que procuram ser criadores de valor. Cuidado da pessoa, da comunidade, da sociedade. Cuidado do presente e do futuro, alicerçados na educação. Cuidado com a casa-comum. Cuidado na co-criação. O maior competidor será a visão míope que predominou no passado. Há várias visões que precisam de ser reconfiguradas. Vivemos num mundo com enormes interdependências, em que cada um precisa do outro ou de outros. Não é apenas um dos efeitos da globalização mas, de facto, o bater de asas de uma borboleta numa parte do mundo pode provocar um furacão no lado oposto. Veja-se o caso da pandemia e tudo o que se passou.

Neste contexto, importa reinventar alguns dos conceitos que nos marcaram no passado, para lá dos já referidos relativamente à divisão dos sectores. No futuro não mais se deverá falar em “recursos humanos”, mas em pessoas. Num tempo com crescente introdução de tecnologia, os recursos humanos não podem ser vistos como apenas mais um dos recursos ao dispor das organizações, em alternativa a recursos financeiros, recursos de equipamento ou equiparados a “matéria-prima”. A dignidade das pessoas (em sentido amplo e não apenas do empregado) deverá manter-se no centro das organizações.

O acompanhamento individualizado e o cuidado da liderança na forma como cuida a situação familiar dos seus colaboradores é determinante na promoção de uma cultura de cuidado na organização e pode constituir-se como o berço na promoção de valores mais humanizados. Vários estudos efetuados comprovam que empresas humanizadas obtêm resultados significativamente superiores à média do setor. Por outro lado, comprova-se que pessoas felizes são mais produtivas, mais comprometidas e com mais baixos níveis de absentismo que a média. Tudo isto são resultados económicos que resultam de uma cultura mais humanizada nas organizações2.

A introdução crescente da tecnologia é um desafio incontornável pois deve constituir-se como um fator promotor de maior desenvolvimento para todos, de combate à corrupção, promotora do melhor uso dos recursos, de uma crescente ética e transparência no sistema. Uma tecnologia que seja, também ela, humanizada no sentido de uma crescente interface com o homem e não uma literal substituição deste. Sabemos que nem sempre assim será, mas o estabelecimento de bons critérios de decisão é fundamental, sabendo que os mais frágeis serão os que com maior facilidade poderão ser descartados, numa economia do descarte. Por isso mesmo urge não considerar as pessoas como mais um recurso ao dispor das organizações e dar meios para que se possam valorizar, de forma digna.

O desafio é grande, é enorme, para quem lidera, podendo constituir-se como uma oportunidade única para a promoção de propósitos maiores, com verdadeiro sentido de missão. Ou, ao invés, usar fórmulas do passado que, como já se comprovou, não poderão ser as que criarão maior valor no futuro. As lideranças terão de ser mais coletivas e participativas onde se promoverá a diversidade e a inclusão de pessoas absolutamente diferentes para a criação de valor e promoção da inovação, não abdicando do carácter e da ética na construção de caminhos mais justos, mais inclusivos, mais sustentáveis. Uma liderança igualmente exigente, quiçá mais ainda, mas que cura e ajuda a crescer e não que magoa ou exclui. Uma liderança que respeita a pessoa no centro das organizações, a sua dignidade e não as trata como um recurso adicional, entre outros. O determinante não será o talento ou a competência, mas a sabedoria, no ver, no julgar e no agir.

NOTA: Este artigo resulta de uma síntese do capítulo “Economia de Francisco e o Desenvolvimento Humano Integral: A Responsabilidade dos Líderes e das Empresas e a Dignidade no Trabalho”incluído no livro “ A Sociedade do Cuidado”, obra que apresenta uma reflexão multifacetada sobre o cuidado – o cuidado com os outros, com o mundo e consigo próprio”, contando com a visão de 30 autores de prestígio. A sua pertinência foi reforçada pela pandemia do Covid-19, a qual acentuou natureza social, global e interconectada da humanidade, e que se entende como estruturante para o futuro da sociedade humana global.

Editado pela Universidade Católica Editora, a obra pode ser adquirida aqui

2 In “Conheça as Empresas Humanizadas do Brasil”, artigo publicado em www.revistahsm.com.br

Presidente da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores

Felipe Coelho

Investigador e Membro da Direção do CEPCEP – Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Universidade Católica Portuguesa