Esta não é mas podia ser uma das perguntas do mais recente estudo da Gallup sobre o envolvimento cívico global, no qual se apurou o sentido de solidariedade e de generosidade de 145 mil pessoas, em 140 países. O facto de Myanmar ser a nação “mais solidária” e a China ser a “menos generosa” demonstra, por si só, que ajudar os outros é um gesto que está mais relacionado com a cultura do que com a riqueza de cada país e/ou comunidade
POR
MÁRIA POMBO

Em 2015, cerca de 1,4 mil milhões de pessoas, em todo o mundo, doaram dinheiro para fins de caridade, quase mil milhões ofereceram-se como voluntários em organizações sociais e mais de dois mil milhões ajudaram um estranho. Se o leitor também fez alguma destas três coisas, então podemos afirmar que é uma pessoa solidária e preocupada com o bem-estar dos outros. Contudo, fique a saber também que tanto ou mais que um gesto de bondade e altruísmo, “ser solidário e generoso” é uma questão cultural. Estas são algumas das principais projecções e conclusões do Global Civic Engagement Report 2016 – um estudo da Gallup sobre o envolvimento cívico e o empenho comunitário a nível global – no qual foram auscultadas cerca de 145 mil pessoas com mais de 15 anos, em 140 países.

“Nos últimos tempos doou dinheiro para fins de caridade?” “Ofereceu o seu tempo livre, fazendo voluntariado em alguma organização?” “Auxiliou um estranho que precisava de ajuda?”. Estas foram as três perguntas feitas aos inquiridos e que, de acordo com a organização – considerada como uma das mais reconhecidas empresas de estudos no que respeita às atitudes e comportamentos a nível global – permitem medir o seu compromisso relativamente à comunidade onde vivem. As respostas obtidas ajudam também os governos, empresas e organizações sociais a compreender o potencial da sua população relativamente à participação em acções de voluntariado e ao contributo em campanhas de angariação de fundos.

Em média, mais de quatro em cada dez pessoas (44%) ajudaram um estranho, cerca de 27% doaram dinheiro a instituições de caridade e apenas 20% dos inquiridos dispensaram o seu tempo livre para participarem em acções de voluntariado. Isto significa que 30% da população mundial se sente envolvida e comprometida com a comunidade, existindo 79 países com uma pontuação superior a esta média, e 55 nações a ficarem aquém da mesma.

Myanmar foi o país que conseguiu ter a cotação mais elevada (70%). De acordo com a análise, a antiga Birmânia tem uma forte cultura de envolvimento social, visível essencialmente nos templos e seguindo a crença budista, e que se reflecte na atitude positiva que os seus residentes têm perante a sociedade. A maioria dos inquiridos respondeu “sim” às três questões, sendo que 91% revelaram já ter doado dinheiro para fins de caridade.

Entre os países mais solidários, estão também os Estados Unidos (61%), a Austrália (60%), a Nova Zelândia (59%), o Sri Lanka (57%), o Canadá (56%), a Indonésia (56%), o Reino Unido (54%), a Irlanda (54%) e o Uzbequistão (52%).

No fundo da tabela está a China, que não conseguiu ultrapassar os 11% de respostas positivas, tendo sido considerada a nação menos generosa e menos envolvida em termos cívicos. Contrariamente ao que uma primeira análise possa revelar, a China é um país mais “desconfiado” do que pouco generoso. Desde 2008, os seus habitantes já ofereceram e disponibilizaram milhões de bens e serviços para apoiar a província de Sichuan a recuperar do devastador sismo que, nesse ano e com uma magnitude de 8,0 na escala de Richter, a atingiu e destruiu quase completamente.

Contudo, e também em modo “terramoto”, mutas organizações de solidariedade social foram, desde então, palco de gigantescos escândalos, devido a fraudes de ordem variada, o que tem contribuído para que a filantropia não faça história na cultura chinesa. Em conjunto também com o abrandamento económico, este facto justifica que, em 2015, apenas 6% dos inquiridos chineses tenham doado dinheiro para fins de caridade. Para contrariar esta tendência, foi recentemente criada uma lei que pretende restringir as organizações sociais chinesas no que respeita à angariação de fundos, prevenindo a existência de mais fraudes e encorajando os indivíduos a doarem dinheiro e bens sem temerem que a sua boa vontade seja utilizada para fins menos próprios.

Adicionalmente, no grupo dos menos solidários e comprometidos com a comunidade estão também os Territórios Palestinianos (17%), o Iémen (17%), a Grécia (19%), a República Democrática do Congo (19%), a Sérvia (20%), a Hungria (20%), Montenegro (20%), Madagáscar (20%) e o Azerbaijão (21%).

Embora não esteja no grupo dos menos solidários, Portugal tem também uma cotação relativamente baixa (29%) no que à generosidade diz respeito, ficando em 88º lugar, entre os 140 países analisados.

Doar dinheiro é muito mais fácil do que oferecer tempo

03112016_EseUmPara além da análise conjunta das respostas às três perguntas efectuadas, a Gallup estudou também os resultados obtidos em cada uma das questões, apurando assim em que locais do planeta os habitantes estão mais e menos dispostos a oferecer bens, a disponibilizar tempo ou, simplesmente, a ajudar um estranho, de forma ocasional.

Oferecer dinheiro a instituições é o acto que, por um lado, regista as mais elevadas percentagens e, por outro, as mais baixas. Desta feita, Myanmar foi o país que mais doou dinheiro, tendo conseguido reunir 91% de respostas positivas relativamente a esta questão. Em segundo lugar, a Indonésia é a nação que mais dinheiro oferece a instituições e projectos sociais, com 75% de respostas positivas, seguindo-se a Austrália e Malta, ambas com 73%. No pólo oposto, Marrocos foi a nação que, com apenas 4%, revelou a percentagem mais baixa, seguindo-se o Iémen (com 5%), e a China e a Tunísia (ambas com 6%), os quais são, assim, considerados como os países menos adeptos desta prática.

Idealmente, doar maiores ou menores montantes é uma atitude que deverá depender da riqueza de cada país. Todavia, os resultados obtidos demonstram que entre os que mais dinheiro oferecem encontram-se países com rendimentos médios (como a Indonésia), e entre os que menos verbas disponibilizam estão nações com rendimentos elevados, como a China (e cujos motivos já foram referidos).

O facto de os países, no geral, estarem mais dispostos a oferecer dinheiro do que tempo é uma outra conclusão interessante da análise. O Turquemenistão é a nação que, com (apenas) 60%, reúne a maior percentagem de pessoas que afirmam ter feito voluntariado recentemente. No documento há, contudo, uma referência ao facto de, neste país, existir uma cultura de “voluntariado obrigatório”, feito essencialmente por jovens, que são dispensados das aulas e obrigados a trabalhar, gratuitamente e durante três meses por ano, na colheita do algodão e preparação da terra para a cultura do ano seguinte. Este é um gesto (ou uma contrapartida) que, em conjunto com muitos outros, revela e permite a existência e manutenção de um dos regimes mais repressores a nível mundial.

Para além do Turquemenistão, Myanmar e a Indonésia são os únicos países que conseguiram ter maioria nesta categoria, alcançando 55% e 50% respectivamente. Todos os restantes elementos que compõem este top 10 – Sri Lanka, Estados Unidos, Nova Zelândia, Filipinas, Quénia, Honduras e Irlanda – reuniram entre 40% e 49% de “sins” relativamente ao facto de disponibilizarem tempo livre para fazer voluntariado.

Por outro lado, e na qualidade de menos dispostos a fazer voluntariado, encontram-se a Bósnia e Herzegovina e o Egipto, ambos com 4%, seguidos da China e da Sérvia, também exaequo, mas com 5%. Com percentagens até 7%, e completando o grupo dos 10 países menos dispostos a doar tempo livre a instituições, encontram-se a Arménia, o Iémen, a Bulgária, a Macedónia, a Costa do Marfim e a Roménia.

O valor da ajuda espontânea e descomprometida

03112016_EseUm2Para além do apoio a organizações – quer seja através de bens ou de tempo – a Gallup considerou relevante abordar a solidariedade e a generosidade da população também no que respeita a gestos mais espontâneos e descomprometidos, como ajudar um estranho que precisa de apoio. Com 44%, este foi o acto que recebeu a maior percentagem de respostas positivas, existindo 72 países com uma pontuação superior a 50%.

Com 79% de inquiridos a admitir que ajudaram um estranho nos últimos tempos, a Líbia é o país merecedor da “medalha de ouro” nesta categoria, seguindo-se a Somália (com 77%) e o Malawi (que alcançou os 73%). Os restantes – Botswana, Estados Unidos, Serra Leoa, Uganda, Libéria, Quénia e Austrália – obtiveram percentagens entre os 68% e os 73%. Como se pode verificar, e com excepção da Austrália e dos Estados Unidos, “ajudar um estranho em necessidade” é uma atitude vulgar nos países do Norte de África e da África Subsaariana.

Uma perspectiva diferente tem, no entanto, a China, com 24%, em conjunto com o Camboja e o Japão, com 25%, no que respeita a ajudar um desconhecido, constituindo os países que se revelaram menos disponíveis para o fazer. O top 10 dos menos preocupados é composto ainda por Madagáscar, Sérvia, Croácia, República Checa, Paraguai, Eslováquia e Letónia.

No geral, e apesar de existirem resultados bastante elevados em algumas das categorias e por parte de alguns países, o facto de, em média, apenas 30% da população ser solidária e preocupada com os restantes membros da sua comunidade, mesmo sem os conhecer, é um valor que fica bastante aquém do que o ser humano pode – e deve – fazer. Contudo, e considerando que estão a ser desenvolvidas diversas acções – nomeadamente na China – com o intuito de melhorar os padrões de ajuda ao próximo e o compromisso da população com a sociedade, espera-se que sejam mais positivos e animadores os resultados do relatório de 2017 sobre o mesmo tema.

De acordo com o Fórum Económico Mundial (FEM), “o dia em que os líderes descobrirem o que motiva as pessoas a investir o seu tempo, dinheiro e talento para beneficiar desconhecidos, será também o dia em que irão conseguir criar um enorme valor económico e uma massiva ‘porção’ de bem-estar para todas as pessoas”. É por este motivo que encorajar os cidadãos a partilharem as responsabilidades nas diversas comunidades, incentivando-os a resolver problemas alheios e a ser mais solidários, é uma das “tarefas mais urgentes e importantes que devem ser levadas a cabo pelos líderes mundiais”.


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A generosidade faz dos ricos mais ricos ou a maior riqueza está nas mãos dos mais pobres?

A questão, não exactamente nestes termos, mas com o intuito de explicar egoísmos por vezes inexplicáveis, foi objecto de análise pelo Fórum Económico Mundial, também a propósito do estudo da Gallup, mas com base em acções “simples” e do quotidiano, realizadas por “ricos” e “pobres”.

Assim e sabendo-se que o dinheiro assume um papel de “facilitador”, no sentido em que permite um mais fácil e rápido acesso a cuidados de saúde e outros serviços, permite ter um bom nível de conforto, ajuda a uma melhor gestão do tempo, sendo até encarado como uma forma de ganhar mais respeito pelos pares, não seria “lógico” que quem dele dispõe fosse mais generoso para com os demais? Para já, pesquisas recentes sugerem que a riqueza pode trazer alguns custos, com impactos inesperados nas nossas interacções sociais. Mas lá chegaremos.

O FEM explica que, por exemplo, as pessoas que conduzem carros mais velhos e baratos são as que mais param nas passadeiras, comparando com os condutores que têm veículos novos e com boa qualidade. Assim, ao enfrentarem diversos desafios ao longo da vida, as pessoas com baixos rendimentos poderiam ser mais egoístas e egocêntricas, colocando-se a si em primeiro lugar, mas, e de forma surpreendente – ou talvez não –, a tendência é a oposta, e as pessoas com mais necessidades acabam por se preocupar mais com o bem-estar dos outros.

Através deste exemplo simples – e que não se aplica, logicamente, a todas as pessoas – é possível concluir que uma diferença crucial entre os ricos e os pobres reside na forma como olham para quem os rodeia: se os que têm maiores rendimentos sabem, que em momentos de “aflição”, podem utilizar o seu dinheiro, por seu turno, os mais necessitados sabem também que dependem mais do apoio dos outros. E, por isso mesmo, investem mais nas relações sociais.

Complementarmente, e para sustentar esta teoria, um outro estudo ao qual o FEM recorreu revela que os indivíduos que vivem com poucos recursos são, geralmente, mais generosos e afectuosos, convivendo mais com amigos, vizinhos, familiares e até estranhos; por outro lado, aqueles que vivem de forma mais confortável, passam mais tempo sozinhos e têm mais dificuldade em estabelecer ligações com outras pessoas, estando também, e à partida, menos atentos às necessidades de quem os rodeia.


Jornalista