As simulações de casos de ética têm um defeito estrutural: as decisões éticas, por definição, envolvem a totalidade da pessoa enquanto uma simulação cria um ambiente estranho e artificial onde a pessoa se envolve apenas parcialmente
POR MARTA LINCE DE FARIA

Um dos grandes dilemas das decisões éticas, sobretudo no âmbito empresarial, mas também noutras dimensões da vida, é que casos de ética que são facilmente solucionáveis em situação de “sala de aula” se revelam de muito mais difícil resolução no dia-a-dia. Os grandes da política ou do setor bancário do nosso país mostram que pessoas extremamente inteligentes e com uma capacidade estratégica largamente desenvolvida, quando confrontadas com uma decisão moral, na prática, falham. Dificilmente os mesmos indivíduos que foram tentados e levados a fazer “asneiras”, tomariam essas decisões em contexto de ethical training.

Num artigo publicado em 2017 na Harvard Business Review1, Eugene Soltes identifica três razões para esta discrepância entre os resultados na resolução de dilemas éticos em contexto de “sala de aula” e os comportamentos de alguns gestores e políticos. Primeiro: numa situação de treino, a dimensão ética é evidenciada ao passo que pode passar despercebida na vida real. Segundo: ao contrário daquilo que acontece nas decisões reais, durante a resolução de um caso, cada pessoa sente-se livre para mostrar os seus pontos de vista. No dia-a-dia, as pessoas procuram o consenso e procuram sobretudo agradar. Finalmente: ao contrário do que acontece nos exercícios, as decisões reais muitas vezes têm que ser tomadas com rapidez e, nesse caso, é mais importante confiar na intuição do que numa reflexão muito elaborada e cuidadosa.

O desafio para quem trabalha em ética empresarial é ajudar as organizações a criarem circunstâncias que facilitem e promovam uma tomada de decisões com elevados padrões de ética. A proposta de Soltes é que se criem condições de treino cada vez mais semelhantes àquelas em que as pessoas têm que tomar decisões éticas. No entanto, isso faz-me antecipar que a simulação de casos se vai tornar cada vez mais teatral e naive. Esta proposta está destinada ao fracasso porque esquece uma questão fundamental: uma decisão ética difícil – porque toda a gente é ética, quando é fácil – coloca a pessoa ante a totalidade da sua vida. Se um gestor desesperado acaba por tomar uma decisão precipitada, não o faz porque não saiba de cor a “resposta certa”. O que acontece é que, colocado ante a totalidade da sua vida, ante os seus valores e tudo aquilo que ama e quer proteger, ele é levado a abdicar dos padrões éticos ensinados em “sala de aula” para preservar um outro bem que se vê ameaçado. Esta visão totalizante não se ensina, nem se treina, joga-se no dia-a-dia. A única maneira de a “provocar” nos indivduos é mostrando-a com o exemplo, é inspirando.

Não sou contra o ethical training: como o treino em qualquer outra área, ajuda a aumentar a sensibilidade e a aprender a ter em consideração aspetos menos evidentes de determinadas decisões. No entanto, a simulação de casos é só uma parte – e a menos importante – da razão pelo qual o treino falha na vida real. Se as pessoas quando levadas a agir não optam pela alternativa ética é porque falhamos na missão de os fazer compreender quem são, de onde vêm e para onde vão.

1 Soltes, Eugene “Why It’s So Hard to Train Someone to Make an Ethical Decision”, HBR January 2017.

Professora de Comportamento Humano e Macroeconomia da AESE Business School
Cátedra de Ética na Empresa e na Sociedade AESE/EDP

1 COMENTÁRIO

  1. Concordando em geral com a posição da autora, discordo totalmente numa frase que penso ser fundamental nas acções ou atitudes que o artigo pode desencadear. A frase é “Se um gestor desesperado acaba por tomar uma decisão precipitada, não o faz porque não saiba de cor a ‘resposta certa’ ”. Há muitos casos, aliás a maioria dos casos que cruzaram a minha vida, em que não sabemos qual é a resposta certa.
    O caso de “sala de aula” é o do chefe de equipa de uma urgência hospitalar que tem um ventilador e dois doentes que dependem de ventilação para continuar vivos. Como escolher? O primeiro a chegar? O doente com mais longa expectativa de vida restante? Aquele que faz mais falta à família? Aquele que parece ter mais probabilidades de sobreviver? (se escolher este, talvez esse se safe sem ventilador, não?) Aquele que parece ter menos probabilidades de sobreviver? (se calhar esse vai morrer mesmo com o ventilador, por isso arriscamo-nos a perder ambos). A decisão depende de uma análise de risco em que a probabilidade e a severidade dos efeitos (sobretudo a perda dos que ficam em caso de morte do doente) são ignorados pelo médico, apesar de empregar o seu melhor saber clínico e a mais exigente bitola ética. Não, ele não sabe de cor a resposta certa.
    Num caso mais próximo do meu trabalho, considere-se uma Técnica de Manutenção de Aeronaves [TMA] encarregue da manutenção de helicópteros empregues em missões de serviço público (busca e salvamento, evacuação médica, protecção civil, combate a incêndios, etc.). Numa inspecção de rotina no final de um vôo, ela detecta que um determinado painel não estrutural de protecção da fuselagem está preso por três parafusos de um total de seis previstos e, pela sujidade acumulada, parece que já está assim há mais de um vôo. No manual da aeronave, especifica-se que o número mínimo de parafusos para operação aérea é quatro. Ela não tem as peças sobressalentes necessárias e, mesmo usando o nível de serviço mais elevado (chamado Aircraft On Ground ou AOG), levantar a ocorrência implicará uma imobilização mínima da aeronave de 24h com um máximo expectável até 72h…
    Se o painel cair num próximo vôo, além de um (muito improvável) acidente no solo, há o risco das partes expostas poderem ficar afectadas por lixo e, por essa via, causarem um acidente (“falha catastrófica”) à aeronave. Trata-se por isso de uma falha secundária, isto é, a queda do painel em si não provoca o acidente mas expõe outro componente a uma probabilidade de acidente muito maior e não especificada no manual.
    Se a aeronave ficar AOG e não havendo outra aeronave para redundância, corre-se o risco da eventual missão de serviço público não poder realizar-se (trata-se de uma ocorrência probabilística e não de vôos programados), pondo em risco os cidadãos que dependem do helicóptero para a sua segurança.
    Se o helicóptero voar para salvar uma pessoa e cair no decurso da operação, perde-se provavelmente a tripulação além da pessoa que se pretende salvar.
    Não, ela não sabe de cor a resposta certa.
    Finalmente, um caso vivido por mim e que não envolve mortes, apenas danos pessoais e patrimoniais. Estou no Aeroporto de Nantes numa sexta-feira à tarde para viajar num vôo para Lisboa com lotação completa, ou quase. Estou na porta de embarque, sentado à espera e a olhar para a azáfama na placa em torno do avião situado a alguns metros da parede envidraçada do terminal. À hora prevista para o embarque vejo um corrupio à volta do avião: gente correndo escada acima, escada abaixo, atrás e à frente (não há mangas em Nantes), e noto que a hora prevista para o embarque é ultrapassada… Para tentar perceber o que se passa, levanto-me, armo-me em turista “trouxa” que fotografa tudo o que vê, encosto-me ao vidro do terminal a tirar fotografias à maluca e, discretamente, deslizo até ficar nas costas das assistentes de terra no balcão de embarque que comunicam agitadamente usando vários telefones e rádios. Ao fim de algumas conversas entrecortadas, entendo o que elas dizem “quelqu’un a piqué l’éclairage de sortie…”: alguém na tripulação (possivelmente o piloto ou o comandante) encarregue da inspecção entre vôos detectou que faltava a luz de segurança – aquela que diz “EXIT” – na porta traseira de estibordo (lado direito) e, provavelmente, alguém roubou as lâmpadas.
    Trata-se de uma porta que não é normalmente usada pelos passageiros, destinando-se ao catering; só é usada pelos passageiros em caso de desembarque de emergência. Como é uma função de segurança de vôo (safety) implica, ou pode implicar, a imobilização da aeronave. Acompanhando um pouco mais a conversa, percebo que a peça ou peças e o TMA para a(s) instalar mais próximos estão em Paris, a cerca de 350km de distância. Combinando as conversas com a minha aprendizagem, conjecturo que o comandante se viu diante de três opções:
    1. Imobilizar o avião atrasando o vôo até que o TMA chegue a Nantes num vôo proveniente de Paris e instale a(s) peça(s). Os tempos de atraso expectáveis (entretanto, já se tinha perdido quase meia hora) variam entre um mínimo de 3h e um máximo de 6h ou, com muito, muito azar, 8 ou 9 horas. Os custos são económicos para a companhia aérea e pessoais e económicos para os passageiros. São afectados os cerca de 150 a 180 passageiros daquele vôo (não me lembro já qual era a versão do avião) e cerca de outros tantos que chegariam pouco depois ao aeroporto de Lisboa para o vôo de regresso.
    Há o risco adicional de não ser possível efectuar o vôo de regresso a França se a chegada a Lisboa ocorrer depois das 23h porque não há tempo de desembarcar, reabastecer (eventualmente) e reembarcar antes do fecho nocturno do aeroporto. Nesse caso, há que custear a pernoita em Lisboa e as indemnizações aos passageiros, além do custo de estacionamento em placa em Lisboa.
    2. Voar para Lisboa com a luz de saída inoperacional confiando que, como o vôo seria feito durante o dia, haveria luz a bordo suficiente para ver a indicação da porta no raríssimo caso de ser necessário efectuar um desembarque de emergência e solicitar a reparação em Lisboa, de forma a que o vôo nocturno de regresso a França já seja feito com a indicação de EXIT operacional. Para tal, é necessário assegurar que o TMA e as peças conseguem embarcar para Lisboa no horário coordenado com a chegada de Nantes e que a reparação é possível em Lisboa (provavelmente, sim). Neste caso, o atraso total seria inferior a uma hora em Nantes e o atraso adicional em Lisboa poderia ser inferior a meia hora se os vôos Paris-Lisboa forem favoráveis ou até 3 horas num caso desfavorável (e o TMA regressaria no avião da companhia).
    3. Voar para Lisboa e regressar a França com a luz de saída inoperacional, requisitando imediatamente a reparação durante o período nocturno em que o avião está na base em França. Neste caso, o atraso total seria inferior a uma hora em Nantes, não haveria atraso adicional em Lisboa e os passageiros só seriam afectados na raríssima eventualidade de ser necessário um desembarque de emergência no vôo de regresso, mesmo assim sabendo que só seria afectada uma de 8 saídas (todos conhecemos de cor a lengalenga “este avião dispõe de 8 saídas de emergência, 2 portas na frente, 2 na rectaguarda e 4 janelas sobre as asas, o caminho para as saídas está claramente indicado pelas fitas luminosas no chão…”).

    Qual é decisão ética? Como se atinge o bem maior? Como se cumpre o regulamento? E se estiver à discricionaridade do comandante? Por simplicidade de conjectura, parto do princípio da abnegação total de toda a tripulação, admitindo que todos fariam o seu trabalho qualquer que fosse o atraso, sem que a companhia incorresse em quaisquer custos adicionais de pessoal. Eu não sei qual é a resposta certa, sei que o comandante teve de escolher entre prejuízos certos contabilizáveis e prejuízos incertos e não contabilizáveis, sabendo que em caso de desembarque de emergência, a eventual falta de iluminação numa de oito saídas seria quase irrelevante! Pode existir ainda uma motivação adicional: não conheço os manuais de operação da companhia aérea, mas é possível que algumas das opções que eu conjecturei acarretem penalizações profissionais para o comandante. Como nota de engenharia, acrescento que os indicadores de emergência têm normalmente duas ou mais lâmpadas para que a função não se perca em caso de falha acidental e que a falta total de luz numa porta é indicador claro de acto doloso (alguém fanou a iluminação).
    Como corolário, eu não sei qual é a resposta certa mas sei qual foi a resposta daquele comandante naquele dia: esperámos pelo TMA vindo de Paris que reparou a lâmpada rapidamente (vi-o chegar e entre o momento de subir e o de descer a escada da rectaguarda passaram menos de 20 minutos) e descolámos de Nantes com 4 horas de atraso. Quando chegámos a Lisboa, os passageiros de regresso a França já estavam prontos para embarcar, portanto acredito que a pernoita em Lisboa foi evitada.

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