Quem o afirma é Fernando Jorge Cardoso, professor e investigador do Instituto Marquês de Valle Flôr e do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais a propósito das realidades actualmente “contrárias” que se vivem na Europa e em África. Em entrevista ao VER, Fernando Jorge Cardoso comenta as principais temáticas que estiveram em debate na Gulbenkian sobre a parceria UE-África e que antecipam a cimeira agendada para 2014
POR HELENA OLIVEIRA

Antecipando a próxima Cimeira EU-África, que terá lugar em 2014, o Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF), o Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI) e o Centro de Estudos Africanos do ISCTE-IUL uniram esforços e organizaram, em Dezembro último, a conferência intitulada “A Parceria África-Europa em Construção: que Futuro?”.

No encontro em causa foram debatidos alguns dos dossiers que deverão estar em discussão no contexto da próxima cimeira entre os dois continentes, bem como na Agenda de Desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas, na qual os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio serão reavaliados. Assim, 22 oradores europeus e africanos privilegiaram, como enfoque, o impacto da crise económica e financeira na Europa e em África – que vivem momentos “contrários” de estagnação versus crescimento -, os desafios demográficos, igualmente “invertidos” em ambos os continentes, as questões da (in)segurança que assolam ainda várias regiões africanas e, por último, o financiamento ou o impacto  em África do crescimento da procura internacional de matérias-primas, do aparecimento de novos parceiros, entre os quais se destaca a China e do regresso do investimento privado.

O VER entrevistou o Professor Fernando Jorge Cardoso, investigador do IEEI e do IMVF, e também um dos organizadores e oradores da conferência, sobre algumas das questões debatidas na mesma e sobre as principais oportunidades e dificuldades que esta parceria entre a União Europeia e África pode acarretar.

Tendo em conta a próxima Cimeira África-UE, a ter lugar em 2014, que principais temáticas são de debate obrigatório neste interregno?
Depende do ponto de vista. No caso da equipa de negociadores, formada por grupos designados pela União Europeia (EU) e pela União Africana (UA), as temáticas incidem no plano de acção (oito parcerias) estando em cima da mesa uma proposta de redução destas mesmas parcerias a 3 – segurança, desenvolvimento e questões da parceria. Como habitualmente, as discussões incidem no envelope financeiro a disponibilizar pela UE para a implementação, com os aspectos de estratégia a perderem no cenário da discussão de projectos a financiar. Na verdade, as temáticas a negociar deveriam, a meu ver, incidir nos problemas do diálogo político e das questões de interesse comum – pobreza, alterações climáticas, ameaças à segurança internacional, comércio e investimento (Dossier de Doha), evitando a concentração nas questões do como deve a Europa ajudar África, ou como deve África gerir os financiamentos europeus. A fragilidade da parceria está, a meu ver, nesta subordinação do diálogo político à lógica da ajuda ao desenvolvimento e na concentração dos dossiêsem África, sem que a Europa (ou o resto do mundo) figurem. Ou seja, a parceria estratégica será coxa enquanto não for uma parceria de discussão e negociação de interesses e problemas dos dois lados e se mantiver na retórica da ajuda e suas condicionalidades.

Sendo África composta por países muito diferentes entre si, terão de ser várias as abordagens propostas por esta cimeira. Até que ponto existem visões e estratégias que tenham em atenção estas diferenças tão significativas?
Sendo uma parceria entre dois grupos, é difícil contemplar as diferenças dentro de cada um deles. Aliás nem deve recair, a meu ver, sobre a parceria uma expectativa, que será sempre gorada, de o tentar fazer.

Quais os principais impactos que a crise económica e financeira internacional que assola presentemente a Europa (e não só) está a ter nas relações com África?
As dinâmicas na Europa e em África são de sinal contrário. A Europa está a viver uma prolongada crise/recessão económica, que deverá continuar a fazer-se sentir no futuro próximo e a generalidade dos países africanos estão, desde há vários anos, a experimentar ritmos de crescimento económico fortemente positivos. Neste sentido, o impacto da crise internacional e do euro recai essencialmente na Europa, exercendo pressão sobre os níveis financeiros de ajuda ao desenvolvimento (que estão a baixar em termos bilaterais) e sobre a própria visão estratégica da cooperação que perde terreno nas preocupações dos governos europeus.

Com a Europa a desacelerar e África a apresentar ritmos de crescimento significativos, é possível que ambos os continentes se unam para retirar lições “mútuas” que possam beneficiar os seus futuros?
Desconfio da viabilidade prática do retirar de lições mútuas. Penso, no entanto, que os paradigmas do relacionamento serão afectados num sentido mais realista, mais da discussão de interesses e menos da imposição disfarçada de condicionalismos políticos.

© IMVF

A demografia constitui, actualmente, um dos principais desafios tanto para os países desenvolvidos como para os que estão em desenvolvimento. Se por um lado a Europa se vê a braços com o envelhecimento da sua população, África, por seu turno, apresenta uma estrutura demográfica muito jovem. Que riscos e oportunidades podem surgir desta realidade?
Como se discutiu na conferência que organizámos em Dezembro na Gulbenkian, também neste caso vivemos realidades de sinal contrário. Na Europa, o envelhecimento da população exerce uma forte pressão sobre a população activa, que diminui em termos relativos e que tem que arcar com a responsabilidade financeira de prover às despesas do Estado e da segurança social. Este cenário vai impor um aumento da idade de reforma e, esperemos que exista visão de longo prazo (que tem faltado aos líderes europeus) para perceber da necessidade de estímulo ao crescimento da imigração para renovar a população. No caso africano, a percentagem da população jovem e activa vai continuar a crescer nas próximas décadas, criando outro tipo de problemas de sustentabilidade em termos de emprego, que vai obrigar ao estímulo de políticas públicas de planeamento familiar.

De acordo com um relatório da Economist Intelligence Unit, nos anos de 1990, cerca de 250 milhões e africanos viviam nas cidades, sem contar com os habitantes dos bairros de lata. Por volta do ano 2000, o número ascendia aos 270 milhões, o que representa um ritmo de urbanização de 4% ao ano. Quarenta e nove cidades africanas têm mais de um milhão de pessoas e cinco destas – Cairo, Khartoum, Lagos, Luanda e Joanesburgo albergam mais de sete milhões de habitantes. Com excepção de Luanda, todas as outras cidades são maiores do que Londres, o que cria uma riqueza de oportunidades, ao mesmo tempo que constitui uma enorme desvantagem para os governos locais. De que forma é que a parceria entre os dois continentes pode aproveitar as oportunidades e mitigar os riscos decorrentes desta realidade?
Não creio que a parceria possa servir para enfrentar este tipo de problemas. Eles têm a ver com políticas públicas da responsabilidade dos governos africanos, no sentido da sustentabilidade do crescimento populacional nas cidades e do correlativo aumento das condições para a criação de empresas e emprego nas zonas rurais. Em termos do longo prazo este será porventura o maior desafio político, económico e social que se coloca aos modelos e práticas de crescimento em África.

O desemprego jovem, uma realidade cada vez mais global, está a afectar também o destino de muitos africanos. Por outro lado, as estatísticas indicam que apenas cinco por cento dos jovens da África subsaariana frequentam as universidades. Como se afigura o futuro de África tendo em conta estas realidades e em que medida é que a Europa poderá ajudar neste tão difícil salto?
Entre os anos 70 e o início do presente século, as realidades africanas foram de decrescimento, insegurança, crescimento urbanos não sustentável e aumento da pobreza. Desde há dez anos que esta realidade se inverteu, estando os países africanos, incluindo os não exportadores de petróleo, a crescer com taxas acima das do crescimento populacional. Esta realidade, que é positiva, torna mais evidente os problemas associados ao crescimento, entre os quais o do desemprego jovem e o atraso educacional comparativo com o resto do mundo. A resolução do essencial destes problemas é de longo prazo e não depende das políticas europeias, embora a ajuda ao desenvolvimento ajude a minorar os seus efeitos negativos. Mas repito, as dinâmicas actuais são positivas, na medida em que é melhor viver uma crise de crescimento do que viver o crescimento da crise.

Uma outra preocupação está relacionada com as fracas competências técnicas das populações. As empresas que já estão a operar em África continuam a apontar a escassez de competências como um enorme desafio, apesar de a maioria dos governos estar a alocar cerca de 10% dos seus orçamentos para a educação. São várias as estimativas que apontam para que seja necessária mais uma geração de investimento público e privado para que a diferença seja notada. Em que medida esta aposta é colocada em causa pela crise internacional e, marcadamente, europeia?
Esta questão é uma realidade que se torna mais evidente em períodos de crescimento económico e de aumento do investimento directo. A percentagem afectada nos orçamentos para a educação é já muito alta, das mais elevadas do mundo, e julgo que não será sustentável aumentá-la. Estas necessidades de mão-de-obra qualificada terão que ser resolvidas recorrendo à importação de trabalho qualificado e a políticas inteligentes de transmissão de competências on-the-job. Neste campo, as realidades do crescimento africano criam a possibilidade de migrações de sentido contrário, isto é, de jovens europeus qualificados para África, o que cria um ambiente para estreitar o relacionamento a todos os níveis entre ambos os continentes. É, neste âmbito, uma realidade que convida ao estreitamento da cooperação.

De acordo com os resultados de um estudo elaborado pela consultora Ernst & Young,  é revelado que as percepções negativas sobre África são, em primeiro lugar, relacionadas com os factores de risco político, citando a instabilidade do ambiente político, a corrupção e as fracas condições de segurança como os maiores obstáculos ao investimento. Em que medida a parceria com a Europa pode contribuir para atenuar estas percepções negativas?

Os investidores percebem, mais rapidamente que os analistas, quais os perigos e potencialidades reais. Estas percepções vão seguramente mudar, elas ainda espelham uma visão do contexto passado de não crescimento e de ausência de investimento. Com o regresso do investimento directo privado a África, o crescimento do financiamento ao desenvolvimento, o surgimento de novos atores e o aumento do mercado de consumidores africanos, estas percepções exercem cada vez mais menos pressão. Num outro patamar, muitos dos estudos destas organizações são baseados em percepções recolhidas junto a elites críticas dos aspectos mais negativos do crescimento do capitalismo em África, quer pelo enriquecimento de governantes que usam o poder e o orçamento para tal, quer pela sobreexploração do trabalho precário causada pela ganância de empresários de ocasião e pela fragilidade das leis e sua aplicação – por outras palavras, vivemos uma época de acumulação primitiva de capital, concentrada em pessoas que têm acesso ao poder, o que é tudo menos uma especificidade africana…

De forma variada, o debate sobre a agenda de desenvolvimento pós-2015 tem vindo a ser perturbado por visões significativamente distintas sobre o valor e o papel dos objectivos globais. Para alguns, a agenda pós-2015 deveria concentrar-se única e exclusivamente no desenvolvimento das prioridades que sejam transversais em termos de linhas globais, nacionais e regionais. Uma visão alternativa é a de que o enquadramento se deveria concentrar nos bens e desafios globais, de que são exemplo as alterações climáticas, as pandemias, entre outras questões. A seu ver, que temas são obrigatórios incluir nesta nova agenda de desenvolvimento?
Sou adepto da inclusão das questões que representam desafios globais e pelo abandono das visões que tendem a dividir o mundo em duas partes, uma mais e outra menos desenvolvida. Na verdade, e para dar um exemplo, a pobreza não é um fenómeno regional, mas sim sistémico, ela existe também nos países desenvolvidos. Tal não significa que o esforço essencial não deva ser feito nos países menos desenvolvidos, onde se encontra a maior percentagem da mesma – significa, isso sim, que deve ser abordada de uma forma mais global, na medida em que tratamos de uma agenda que é, pela sua natureza, também global.

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