Philip K. Dick cunhou o conceito de replicant no seu romance Do Androids Dream of Electric Sheep?, publicado em 1968. Os replicants são seres artificiais concebidos para se parecerem e actuarem como seres humanos. Nesta novela de ficção científica, são criados para serem usados como mão-de-obra ‘escrava’ em colónias fora da Terra. O livro foi transformado em Blade Runner, um dos filmes mais seminais da história da sétima arte
POR PEDRO COTRIM

Os replicants são praticamente indistinguíveis dos humanos, apresentando algumas emoções e desejos, mas tendencialmente limitados. São propositadamente construídos com uma duração de vida deapenas quatro anos para evitar que desenvolvam as suas próprias identidades e se rebelem contra os seus criadores.

Se lhes faltam emoções ou livre-arbítrio, é precisamente porque sofrem de falta de memórias. ‘Nascem’ num corpo adulto, mas com uma memória em branco – a sua génese é mostrada explicitamente em Blade Runner 2049. É então necessário implantar-lhes uma história imaginária, memórias de infância e adolescência que moldam a personalidade escolhidas pelo seu ‘criador’. No fim de contas, as memórias somos nós. Recordamos Nietzsche quando afirmou que «cada um tem as memórias que merece» a propósito da felicidade. E a este propósito recordemos também Alexander Pope, em Eloisa to Abelard, num pequeno trecho apenas:

No, fly me, fly me, far as pole from pole;
Rise Alps between us! and whole oceans roll!
Ah, come not, write not, think not once of me,
Nor share one pang of all I felt for thee.
Thy oaths I quit, thy memory resign;
Forget, renounce me, hate whate’er was mine.
Fair eyes, and tempting looks (which yet I view!)
Long lov’d, ador’d ideas, all adieu!
Oh Grace serene! oh virtue heav’nly fair!
Divine oblivion of low-thoughted care!
Fresh blooming hope, gay daughter of the sky!
And faith, our early immortality!
Enter, each mild, each amicable guest;
Receive, and wrap me in eternal rest!

As artes são profundamente projectivas e cada um lerá este poema à sua maneira, precisamente ancorado nas memórias que tem. Nem nos atrevemos à sua tradução, pois também enferma da persistência da memória.

Podemos, apenas superficialmente, suscitar que, nesta carta, Eloisa recorda o amor passado e chora a separação consumada. Ela reflecte sobre a intensidade do seu amor e a dor da sua separação, e pergunta-se se seria melhor esquecer o seu passado para encontrar a paz. Sem entrar nos demais devaneios do poema, cuja leitura recomendamos, Eloisa reconhece que esquecer as memórias do seu caso de amor significaria perder uma parte de si mesma. 

How blest the humble cot’s peaceful shade,
The field’s lone margin, shallow stream,
To memory’s aid, no more afraid,
New joys will bless, or soothe the past esteem

Este tema da memória, da sua ausência e da felicidade foi igualmente abordado em Eternal Sunshine of the Spotless Mind, de Michel Gondry com argumento de Charlie Kaufman. Um filme inesquecível sobre a memória. É uma narrativa fragmentada e não linear. As memórias de Joel e Clementine são apagadas por uma empresa chamada Lacuna, especializada no apagamento de memórias indesejadas. À medida que as memórias vão sendo apagadas, Joel percebe que ainda ama Clementine e tenta resistir ao procedimento. No entanto, acaba por perder a totalidade das memórias da sua relação.

J. K. Rowling criou em Harry Potter um tipo muito tenebroso de vigia: os dementors, seres espectrais que se alimentam da felicidade humana, deixando para trás sentimentos de depressão, desesperança e desespero. São criaturas aterradoras do mundo dos feiticeiros, guardas eficazes porque apenas a sua presença é suficiente para fazer a maioria dos prisioneiros perder a vontade de escapar. 

O dos avanços tecnológicos  comum e regressa agora com os debates sobre a Inteligência Artificial. A popularidade de chatgpt, dall-e e outros programas que nos põem em interacção com o «outro» digital suscitam todas estas questões. Até onde chega a parte editável das nossas vidas?

A cronologia das obras mencionadas é manifesta-se na sofiticação concebida: no Blade Runner original, a ‘manipulação’ parece passar principalmente por fotografias entregues a replicants para desempenhar o papel de catalisadores das suas (falsas) memórias de infância. Deckard (Harrison Ford) a questiona a sua própria natureza (será ele também um replicant?) quando vê imagens de si em menino. Também se suscita que o célebre origami feito por um colega polícia influencia os seus sonhos e estado de espírito, o que reforça as suspeitas. Esta questão foi debatida muito acaloradamente quando o filme foi lançado em 1982 – Ridley Scott, o realizador, alegava que Deckard era um replicant, enquanto Harrison Ford pensava o contrário, não está claramente resolvida por Philip K. Dick; na trama da história, Rick Deckard, personagem principal, é um caçador de recompensas encarregado de «reformar» replicants maliciosos que escaparam das colónias off-world e regressaram à Terra. O romance explora temas sobre o significado de ‘ser’ humano e as implicações éticas da criação e utilização de formas de vida artificiais.

A ideia de máquinas que tomam conta do mundo tem sido um tema popular na ficção científica. Como a inteligência artificial e a robótica dão estes saltos de gigante, surge preocupação real em relação a cenários vindouros. Embora a ideia possa parecer rebuscada, suscita questões importantes sobre o papel da tecnologia nas nossas vidas e os riscos potenciais associados ao seu avanço.

Uma das principais preocupações em torno da ideia de máquinas a tomar conta do mundo é a potencial perda de controlo. À medida que as máquinas se tornam mais inteligentes, podem ser capazes de tomar decisões e tomar acções que vão contra os interesses humanos. No limite, se lhes for dada demasiada autonomia às máquinas, podem potencialmente causar danos aos seres humanos (também vale a pena revisitar I Robot, de Asimov). Esta questão coloca-se igualmente num veículo sem condutor e nos debates de ética que se originam sobre atropelamentos.

Outra preocupação reside no facto de a automação e a robótica poderem reduzir os empregos disponíveis. À medida que as máquinas se tornam mais capazes de executar tarefas tradicionalmente executadas por humanos, existe o risco de uma deslocação de trabalho generalizada, que pode gerar perturbações sociais e económicas significativas, particularmente se um grande número de pessoas não for capaz de encontrar trabalho.

No reverso da medalha, há muitos benefícios potenciais para uma maior automatização e robótica. Por exemplo, as máquinas poderiam ser usadas para executar tarefas perigosas ou difíceis, tais como mineração ou exploração em alto mar, que seriam demasiado arriscadas para os seres humanos. Também poderiam ser usadas para aumentar a eficiência e produtividade em várias indústrias, levando a um maior crescimento económico e à melhoria da qualidade de vida.

A solução parece assentar no desenvolvimento responsável e na regulação da tecnologia. Como a IA e a robótica continuam a avançar, é importante assegurar que estão a ser desenvolvidas de uma forma que dê prioridade à segurança e bem-estar humanos. Inclui-se o desenvolvimento de protocolos de segurança robustos, assegurando a transparência nos algoritmos de tomada de decisão, e proporcionando uma supervisão e regulação significativas das tecnologias emergentes.

É igualmente importante considerar os potenciais impactos sociais e económicos da automação e robótica. Os decisores políticos e os líderes da indústria devem trabalhar em conjunto para desenvolver estratégias para gerir a deslocação de postos de trabalho e assegurar que os benefícios do progresso tecnológico sejam distribuídos equitativamente por toda a sociedade.

A ideia de máquinas a tomar conta do mundo pode parecer um cenário de ficção científica rebuscado, mas levanta questões importantes sobre o papel da tecnologia nas nossas vidas. Embora existam certamente riscos associados ao avanço da IA e da robótica, existem também muitos benefícios potenciais. Ao adoptar uma abordagem ponderada e responsável ao desenvolvimento e regulação da tecnologia, podemos assegurar que as máquinas continuam a servir os interesses humanos em vez do contrário.

Na saga Blade Runner, quando os replicants descobrem que têm uma duração de vida limitada e acabam por morrer, experimentam uma série de emoções. Alguns ficam deprimidos e ansiosas; outros ficam zangados ou ressentidos com os seus criadores. Há uma cena violentíssima no filme com Rutger Hauer que se tornou icónica – mata com os seus próprio dedos o criador da Tyrell Corporation.

A percepção de uma de vida limitada suscita questões sobre a natureza da consciência e sobre o que significa estar vivo. Os replicants são concebidos para serem muito semelhantes aos humanos. Quando descobrem que acabarão por morrer, questionam se as suas experiências e emoções são menos válidas do que as dos humanos.

Conforme sucede connosco, a descoberta da sua vida limitada pode ser um momento significativo. A morte é o fim derradeiro e não há quem pense nela com apreensão. E os algoritmos, também contarão carneiros para adormecer?