São ‘digitods’, os filhos dos primeiros nativos digitais, e vivem em lares tecnológicos expostos a dispositivos digitais quase desde que nascem. Trocam os jogos pelas redes sociais à medida que crescem e desejam o “endless entertainment”. Com oito anos ou menos, estas crianças não percepcionam as apps como perigosas, e os seus pais pouco as acompanham, limitando-se a supervisionar ocasionalmente as suas práticas digitais. As conclusões de um estudo “hAPPy Kids”, apresentado recentemente pelo novo centro de investigação da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, evidenciam os desafios que a ‘digitalização’ da infância coloca aos vários intervenientes na protecção dos direitos das crianças, dos pais aos professores, decisores políticos e marcas empresariais
POR GABRIELA COSTA

Na sociedade da informação, as crianças são ‘digitods’: vivem em lares tecnológicos e estão expostas a dispositivos digitais quase desde que nascem. São os filhos dos primeiros ‘nativos digitais’ e estão a ser educados por pais utilizadores de tecnologias. A afirmação é das autoras dos estudos “hAPPy Kids – Aplicações seguras e benéficas para crianças felizes”, que o Católica Research Centre for Psychological, Familiy and Social Wellbeing (CRC-W), o novo centro de investigação da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, desenvolveu, e apresentou a 16 de Outubro, num seminário que debateu o uso de tecnologias digitais por crianças, à luz dos resultados de dois relatórios do projecto.

Docentes, investigadores, alunos e representantes de organismos competentes nas áreas da educação e tecnologia reuniram-se para a apresentação dos resultados do projecto hAPPy Kids, reflectindo sobre os mesmos numa mesa redonda com vários especialistas sobre a temática. O evento realizou-se no âmbito da vocação do CRC-W para desenvolver projectos de investigação interdisciplinar, orientados para responder aos desafios da sociedade, coordenando e disseminando investigação sobre bem-estar individual, familiar e social. Para Rita Francisco, coordenadora deste Centro, “a utilização das tecnologias é hoje, sem dúvida, um grande desafio com que todos nos confrontamos, pelo que é fundamental discutir esta questão à luz de abordagens tão diversas como a Psicologia, a Comunicação ou a Educação.”

Os dois estudos – o primeiro resultado de um inquérito a cerca de 2 mil pais e o segundo de entrevistas presenciais a 81 famílias, ambos com crianças de idade inferior a oito anos – apresentam percepções das famílias sobre a utilização das tecnologias por crianças tão jovens, a mediação e o estilo parental realizados nesta utilização.

[quote_center]Visto a sua actividade principal ser os jogos, as crianças tendem a ser utilizadores passivos e não criadores[/quote_center]

Como explica Patrícia Dias, autora dos estudos “hAPPy KIDS – Aplicações seguras e benéficas para crianças felizes” (Perspectiva dos Pais e Perspectivas das Famílias 2018) e investigadora do CRC-W, “o projecto hAPPy Kids revelou que há uma discrepância entre o que os pais e as crianças consideram uma boa app. Os pais valorizam sobretudo o carácter educativo, não estando muito sensibilizados para outras aprendizagens e competências que as tecnologias digitais podem desenvolver. As crianças procuram nas apps uma forma de entretenimento e descontracção, não querendo repetir em ambiente digital tarefas características da escola.”

Acresce que “as crianças gostam de usar tecnologias e exploram-nas com confiança. Os pais, devido a desconhecimento sobre os benefícios destes dispositivos para as crianças, vêem-nos como uma ameaça em vez de acompanharem as crianças nesta utilização, promovendo uma gestão responsável”, conclui Rita Brito, também autora dos estudos “hAPPy Kids” e investigadora do CRC-W. 


‘Digitalização’ da infância é um jogo social

Segundo as autoras, a investigação tem evidenciado o papel fundamental dos pais na utilização de tecnologias pelos filhos, principalmente ao protegê-los de potenciais riscos devido à exposição excessiva às mesmas, mas há poucos estudos quer sobre a utilização por crianças com menos de oito anos, quer sobre as percepções das famílias nesta matéria. Procurando colmatar essa lacuna, o projeto hAPPy Kids visa identificar critérios relevantes para avaliar até que ponto as apps podem ser benéficas e seguras para as crianças.

Baseando-se no modelo de Livingstone (2008) referente a conteúdos online positivos e nas actividades da POSCON European Network, a iniciativa pretende aplicar esse quadro teórico às aplicações móveis, com os objectivos de identificar critérios para avaliar e classificar o conteúdo móvel positivo; construir uma “escala de positividade” referente aos aspectos benéficos das aplicações; c) transformar esse modelo teórico numa ferramenta aplicada que ajude os diferentes stakeholders a tomar boas decisões sobre as práticas digitais das crianças; e promover a aplicação de guidelines éticas no mercado, de modo a reforçar a produção de apps seguras e benéficas para as crianças.

Os relatórios já produzidos apontam os “desafios que a “digitalização” da infância e o ritmo acelerado, sem precedentes, do desenvolvimento tecnológico colocam aos vários intervenientes na protecção dos direitos das crianças, dos pais aos professores, dos decisores políticos às empresas e às marcas”, tecendo várias recomendações. Depois das fases 1 e 2 do projecto, equivalente à elaboração destes documentos, num terceiro momento deverão ser realizados grupos de discussão com agentes relevantes nesta matéria, incluindo stakeholders da indústria, policy-makers e especialistas.

[quote_center]As famílias devem reflectir sobre a utilização de tecnologias e adoptar melhores práticas, tanto pedagógicas como de segurança[/quote_center]

As crianças nascem em lares onde proliferam o computador, os smartphones e os tablets, e têm contacto com estes dispositivos cada vez mais jovens, utilizando-os nas suas rotinas diárias, evidenciam estudo internacionais que as autoras dos estudos hAPPy Kids consideram na sua análise. Concretamente em relação ao segundo relatório, realizado a partir de entrevistas às 81 famílias com crianças até aos 8 anos de idade, “os principais resultados confirmam algumas ideias já presentes na literatura”, lê-se no Sumário Executivo.

No que concerne às práticas digitais nos lares, as crianças entrevistadas têm acesso a vários dispositivos digitais – tablet, smartphone, computador, televisão – com ligação à Internet, desde jovens, e sabem utilizá-los de modo independente, instalando apps e percorrendo os seus conteúdos favoritos. Afirmam gostar muito de utilizar as tecnologias e sentirem-se felizes e divertidas quando o fazem, e não percepcionam as apps como perigosas. Algumas já conversaram com os pais sobre segurança digital, embora de forma esporádica e pouco aprofundada.

As actividades preferidas são os jogos. Os rapazes preferem jogos de acção e aventura. As raparigas preferem jogos de estilo simuladores, como tomar conta de um animal ou brincar com maquilhagem, e as mais velhas gostam de aceder a redes sociais para estar em contacto com amigas. O estudo conclui que “visto a sua actividade principal serem os jogos, as crianças tendem a ser utilizadores passivos e não criadores”.

Muitas crianças têm o seu dispositivo pessoal. As mais novas preferem um tablet, principalmente os rapazes, sendo este o seu dispositivo pessoal, oferecido pelas famílias. E as mais velhas um smartphone com dados móveis, nomeadamente as raparigas de 6-8 anos, que também fazem dele o seu dispositivo pessoal. À medida que a idade das crianças avança e os pais lhes permitem ter os seus próprios dispositivos, “o smartphone ganha terreno ao tablet, pois o ‘endless entertainment’ é valorizado pelas crianças”, revela o estudo, explicando que neste dispositivo elas têm acesso a dados móveis, o que lhes permite continuar as suas brincadeiras digitais no exterior e manter-se em contacto com amigos nas redes sociais, especialmente as raparigas. É também possível percepcionar que “as actividades, quer físicas quer digitais, são consecutivas”, isto é, as brincadeiras físicas que as crianças realizam têm a mesma temática digitalmente.


Pais e filhos devem interagir pela pedagogia e segurança

A utilização de tecnologias digitais na escola é pouco referenciada e alguns pais dizem que assim preferem, dado que os filhos passam já suficientes horas em casa a interagir com dispositivos tecnológicos. A percepção do estudo é que a escola parece não proporcionar a criação de conteúdos, para além de aulas de informática ou de pedir aos seus alunos que utilizem a Internet em casa para pesquisas nos trabalhos de casa, por exemplo.

Já os pais assumem utilizar as tecnologias com frequência, tanto no trabalho como em casa. Têm percepções positivas da utilização digital dos filhos, nomeadamente para questões educativas, como pesquisas, aprendizagem de uma língua estrangeira, ou pela importância que esta utilização terá na sua vida futura. E admitem que as tecnologias são úteis para manter as crianças sossegadas, quando os pais têm de fazer tarefas domésticas, ou para as auxiliar na refeição.

Mas também têm percepções negativas, que passam pelos perigos da utilização da Internet e do contacto com estranhos nas redes sociais, e pela consciência de que estes dispositivos são viciantes e não permitem a socialização, principalmente em momentos familiares. A Internet, utilizada, por exemplo, através do YouTube, é referida como potenciador de exposição a conteúdos inadequados, como linguagem inapropriada.

[quote_center]O projecto hAPPy Kids visa avaliar até que ponto as apps podem ser benéficas e seguras para as crianças, e integrará grupos de discussão com stakeholders da indústria, policy-makers e especialistas[/quote_center]

O relatório conclui ainda que apesar destas percepções, a maioria dos pais não descarta a utilização das tecnologias pelos filhos, mas antes defende uma utilização equilibrada das tecnologias versus brincadeiras no exterior. E como encontram eles esse equilíbrio?

Os resultados das entrevistas permitem concluir que a maioria dos pais opta pela mediação autorizativa, impondo algumas regras, nomeadamente de controlo de tempo de utilização, mas dando uma certa liberdade às crianças para fazerem as suas escolhas. A mediação parental é baseada numa co-utilização demasiado esporádica das tecnologias, conclui-se, que se limita à supervisão ocasional das actividades dos filhos, em detrimento de uma participação conjunta, compartilhando questões de utilização segura dos dispositivos e Internet ou criando conteúdos. Ainda assim as crianças referem que preferem utilizar estes dispositivos sozinhas, pois deste modo “podem estar à vontade e sossegadas, sendo que por vezes os pais as incomodam com questões ou então dizem que já estão a jogar há muito tempo e tiram-lhes os dispositivos”.

Perante estes resultados é de sublinhar que as crianças têm uma percepção muito positiva das tecnologias, especialmente para entretenimento, mas são utilizadores passivos. Os pais encaram-nas como úteis para aprendizagens e para o futuro dos filhos, mas também como prejudiciais a nível da socialização e contactos com estranhos. E as conversas sobre segurança digital e a interacção conjunta de pais e filhos com os dispositivos são incipientes.

Neste contexto, e como concluem as autoras do projecto hAPPy Kids, as famílias devem “reflectir sobre a utilização de tecnologias por todos os membros e adoptar melhores práticas, tanto pedagógicas como de segurança”; os policy-makers “ têm um papel fundamental na formação de pais sobre a utilização segura e proveitosa de tecnologias pela família”; a comunidade académica “tem a responsabilidade de formar futuros docentes na área da tecnologia educativa, e também de informar a comunidade em geral sobre as descobertas mais recentes no âmbito destas temáticas”; e todos têm de contribuir “para o desenvolvimento de apps benéficas para cada família”, que estimulem o crescimento saudável de crianças felizes.