Sem a adopção urgente de medidas que combatam as crescentes desigualdades na infância, dezenas de milhões de crianças que vivem em contextos geográficos marcados pela pobreza, conflitos armados e crises humanitárias crescem hoje com um destino dramático, projectado pela UNICEF até 2030, no seu relatório anual de referência. Face a um cenário sombrio, a organização dedica a edição de 2016 do State of the World’s Children à convicção de que “a injustiça não é inevitável se os governos investirem em expandir oportunidades para cada criança”. A aritmética da igualdade é relativamente simples, mas depende de compromissos políticos e vontade colectiva
POR GABRIELA COSTA

“A desigualdade é uma escolha. A igualdade também” – Anthony Lake, director executivo da UNICEF

Se nada for feito para alterar as tendências actuais, pobreza, analfabetismo e mortes prematuras serão os factores que mais irão marcar a realidade de milhões de crianças desfavorecidas, até 2030. O relatório da UNICEF dedicado à Situação Mundial da Infância 2016 traça um “cenário sombrio” sobre o que espera as gerações mais novas nos países pobres, se a comunidade internacional “não acelerar esforços” e não fizer “as escolhas certas agora” para responder às suas necessidades.

E são muitas, apesar dos vários progressos alcançados desde a década de 90, como demonstram os números projectados até à data definida como meta para a concretização dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável: 69 milhões de crianças morrerão antes dos cinco anos, maioritariamente de causas evitáveis; 167 milhões de crianças viverão em pobreza extrema; e 750 milhões de mulheres terão casado durante a infância, até 2030. Nessa altura, será dez vezes mais provável que as crianças da África subsaariana morram antes do seu quinto aniversário do que as dos países ricos; e nove em cada dez a viver em pobreza extrema estarão naquela sub-região. Também nesse ano, mais de 60 milhões de miúdos em idade escolar estarão excluídos do ensino básico, dos quais metade residirá também na África subsaariana.

[quote_center]As desigualdades na infância não são inevitáveis nem intransponíveis[/quote_center]

De acordo com o relatório anual de referência do Fundo das Nações Unidas para a Infância, divulgado a 28 de Junho, se os governos, os doadores, as empresas e as organizações internacionais não derem, já, maior atenção a esta causa, as vidas de milhões de crianças continuarão “a ser arruinadas” por uma única razão – “terem nascido num determinado país, comunidade, género ou circunstância”. Hoje, somos confrontados com esta “desconfortável, mas inegável verdade”, acusa no prefácio do relatório o director executivo da organização.

Como revelam os dados da UNICEF, a menos que aceleremos o ritmo para atingir progressos, “a vida de milhões de crianças vulneráveis – e, consequentemente, o futuro das suas sociedades – estará em perigo”.

Sucede que, como sempre, as dificuldades em alcançar esses progressos “não são, na sua maioria, técnicas. São uma questão de compromisso político. São uma questão de recursos. E são uma questão de vontade coletiva”, isto é, “de juntar forças para enfrentar as barreiras da injustiça e da desigualdade, colocando o foco em maiores investimentos e esforços para ajudar as crianças que estão a ser deixadas para trás”, apela Anthony Lake.

Recusar a centenas de milhões de crianças esta igualdade de oportunidades “alimenta ciclos de desvantagem intergeracional”, os quais apenas podem ser quebrados com uma melhor percepção dos dados disponíveis sobre estas crianças, soluções integradas para os desafios que enfrentam, formas inovadoras para responder a problemas antigos, investimentos mais equitativos e um maior envolvimento por parte das comunidades.

Educação é a base da igualdade de oportunidades

© UNICEF/UN016332/Gilbertson VII Photo
© UNICEF/UN016332/Gilbertson VII Photo

O relatório “Uma oportunidade justa para todas as crianças” destaca os progressos significativos alcançados na infância, no que diz respeito à sobrevivência, à educação e à luta contra a pobreza. A nível mundial, as taxas de mortalidade de menores de cinco anos baixaram para menos de metade desde 1990, o total de vítimas de pobreza extrema é quase metade do registado nos anos 90, e a paridade entre rapazes e raparigas relativamente à frequência do ensino primário é uma realidade em 129 países.

A humanidade “fez imensos progressos na redução das mortes na infância, na inserção de crianças na escola e na remoção de milhões da pobreza. Muitas das intervenções por trás desse progresso têm sido práticas e económicas. A expansão de tecnologias digitais e móveis, entre outras inovações, tornou mais fácil e mais barato fornecer serviços essenciais em comunidades de difícil acesso e expandir oportunidades para crianças e famílias em grande risco”, lê-se no prefácio do documento.

Contudo, nenhum destes progressos decorreu de um modo justo ou igualitário, conclui a UNICEF. E bastam alguns exemplos para compreender até que ponto o mundo dos mais novos se encontra dividido: as crianças mais pobres têm duas vezes mais probabilidades de morrer antes dos cinco anos e de sofrer de subnutrição crónica que as crianças mais ricas. Em grande parte do sul da Ásia e da África subsariana é três vezes mais provável que as crianças filhas de mães não escolarizadas morram antes dos cinco anos, comparativamente aos filhos de mães que frequentaram o ensino secundário. As raparigas das famílias mais pobres têm duas vezes mais probabilidades de casar na infância que as de famílias mais ricas.

[quote_center]É preciso persuadir a sociedade que um destino diferente para as crianças pobres é possível[/quote_center]

Em nenhuma outra região as perspectivas são tão preocupantes como na África subsariana, onde duas em cada três crianças – ou seja, pelo menos 247 milhões – vivem em pobreza multidimensional, privadas do que necessitam para sobreviver e se desenvolverem, e onde perto de 60 por cento dos jovens entre os 20 e os 24 anos (pertencentes aos 20 por cento mais pobres da população) tiveram menos de quatro anos de escolaridade.

Quando educamos “não só damos ferramentas e conhecimento” para que um ser humano tome as suas próprias decisões e molde o seu próprio futuro, como “ajudamos a aumentar o padrão de vida da sua família e da sua comunidade”, sublinha Anthony Lake. Sendo certo que a educação desempenha “um papel crucial na igualdade de oportunidades para as crianças”, é incompreensível que actualmente cerca de 124 milhões de crianças não frequentem o ensino primário ou o primeiro ciclo do secundário, e que quase duas em cada cinco que terminam o ensino primário não tenham aprendido a ler, escrever ou a fazer operações aritméticas simples. Mais inexplicável é o facto de o número de crianças que não frequentam a escola ter aumentado desde 2011. Mas é essa a realidade retratada no relatório State of the World’s Children.

É urgente acelerar o ritmo do progresso

© UNICEF / Gilbertson VII Photo
© UNICEF / Gilbertson VII Photo

Colocando em evidência dados que indicam que investir nas crianças mais vulneráveis pode produzir benefícios imediatos e a longo prazo (como subsídios que comprovadamente contribuem para que as crianças permaneçam mais tempo na escola e prossigam a sua escolaridade para níveis superiores de ensino), o relatório conclui que, em média, cada ano adicional de escolaridade que uma criança frequenta se traduz num aumento de cerca de 10% dos rendimentos que aufere na idade adulta. E que, por cada ano adicional de escolaridade que os jovens completam, as taxas de pobreza de um país diminuem cerca de 9%.

Perante tais evidências, e como alega o director da UNICEF, “agora é o momento de agir” [porquanto não se agiu mais cedo], acelerando o ritmo de progresso, na certeza de que investir nas crianças mais vulneráveis “produz benefícios imediatos e a longo prazo”, tanto para o seu nível de desenvolvimento como para o da sociedade onde se inserem. Afinal, quando se permite a uma criança o acesso à saúde e nutrição não só se melhora a sua qualidade de vida, como se reduzem os “custos sociais e económicos associados à doença e à fraca produtividade”.

Neste contexto, “mais do que nunca, devemos reconhecer que o desenvolvimento só é sustentável se puder ser continuado (de forma sustentada) pelas gerações futuras”, insiste Anthony Lake: “temos a oportunidade de substituir círculos viciosos [de privação] por círculos virtuosos”, nos quais as crianças que vivem na pobreza possam, quando adultas, desenvolver as competências de que necessitam para competir de forma igualitária com crianças oriundas de contextos mais ricos.

Para tanto, precisam apenas de ter “oportunidades justas em saúde, educação e protecção”. Graças a tanto, irão indubitavelmente e “em todos os sentidos” enriquecer a sua própria vida e a da sua comunidade. Porque a verdade é que “as desigualdades não são inevitáveis nem intransponíveis”, como defende o relatório.

[quote_center]É urgente reorientar prioridades políticas e gastos públicos com o desenvolvimento na infância[/quote_center]

Sem a adopção urgente de medidas que possam ajudar a esbatê-las, as lacunas já evidentes tenderão a crescer, afectando ainda mais crianças, especialmente nos contextos geográficos mais acometidos por conflitos violentos, emergências humanitárias como a actual deslocação massiva de refugiados, ou outras crises crónicas provocadas por desastres naturais e os efeitos crescentes das alterações climáticas. Todas estas realidades afectam desproporcionalmente as crianças desfavorecidas e vulneráveis.

Face a esta conjuntura, o foco da edição deste ano do relatório da UNICEF, colocado na injustiça social que prejudica, com enormes níveis de sofrimento, milhões de pequenos seres humanos, é motivado por “um sentido de urgência e a convicção de que um destino diferente e um mundo melhor são possíveis”.

O objectivo é afirmar – para persuadir – que “a injustiça não é inevitável se os governos investirem em expandir oportunidades para cada criança”, o que implica “uma reorientação das prioridades políticas, de programas e dos gastos públicos”, com vista a que as menos favorecidas tenham a oportunidade de alcançar uma posição de igualdade perante as mais favorecidas.

A aritmética da equidade é, pois “relativamente simples”, sublinha a UNICEF, para quem este “não é um jogo sem vencedores”: os avanços globais ao nível da sobrevivência, saúde e educação na infância dependem, essencialmente, de cinco grandes metas, que a organização que ver implementadas pela comunidade internacional, e que preconiza para um futuro que começa hoje: aumentar as informações sobre aqueles que foram deixados para trás; integrar os esforços desenvolvidos em vários sectores para enfrentar as múltiplas privações que prejudicam tantas crianças; inovar para acelerar o processo e garantir mudança às crianças e famílias mais excluídas; investir em equidade e encontrar novas maneiras de financiar esforços para apoiar as crianças mais desfavorecidas; e envolver a sociedade a nível global, começando com as próprias comunidades, e com empresas, organizações e cidadãos de todo o mundo que acreditam que é possível mudar o destino de milhões de crianças.

Pois, como apela no prefácio do relatório da UNICEF o seu director, “a injustiça não é inevitável. A desigualdade é uma escolha”.E “promover uma oportunidade justa para cada criança, para todas as crianças, também é uma escolha. Uma escolha que podemos e devemos fazer. Pelo seu futuro, e pelo futuro do nosso mundo”. Dito isto, e acreditando nas palavras de Anthony Lake, “nós conseguimos”.


A Situação Mundial da Infância: um retrato de dados

SAÚDE

© UNICEF/UN016328/Gilbertson VII Photo
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Comparadas com as mais ricas, as crianças mais pobres têm:

-» 1/3 de oportunidades de ter assistência capacitada durante o nascimento.

-» 1,9 vezes mais probabilidade de morrer antes dos cinco anos.

-» 2,1 vezes mais probabilidade de ter algum atraso no crescimento.

  • Crianças nascidas em áreas rurais têm 1,7 vezes mais probabilidade de morrer antes dos cinco anos que crianças de áreas urbanas.
  • Para cerca de um milhão de crianças em 2015, o seu primeiro dia de vida foi também o último.
  • A lacuna de mortalidade infantil relativa, entre a África subsaariana e a Ásia Meridional e os países ricos, quase não mudou desde 1990.
  • Crianças nascidas na África subsaariana têm 12 vezes mais probabilidade de morrer antes do seu quinto aniversário que as nascidas em países ricos, tal como sucedia em 1990.

EDUCAÇÃO

  • A cerca de 124 milhões de crianças é negada a oportunidade de entrar na escola e completar os estudos.
  • Desde 2011, o número global de crianças que não frequentam a escola aumentou.
  • 38% das crianças a frequentar a escola primária não aprendem a ler, escrever e fazer contas aritméticas simples.
  • Estima-se que 75 milhões de crianças e adolescentes (dos três aos 18 anos) em 35 países tenham uma necessidade máxima de educação. Desses, 17 milhões são refugiados, deslocados internos ou parte de outras populações vulneráveis.
  • Meninas em contextos afectados por conflitos têm 2,5 vezes mais probabilidade de estar excluídas da escola que meninas em circunstâncias mais pacíficas.
  • Em muitos países pobres e em desenvolvimento, as crescentes disparidades na educação entre grupos sociais diferentes já aumentaram as probabilidades de conflitos.
  • Cerca de 150 milhões de crianças menores de 14 anos estão envolvidas em trabalho infantil.

POBREZA

  • As crianças representam 34% do total da população dos países pobres e em desenvolvimento, mas constituem 46% da população que vive com menos de 1,90 dólares por dia.
  • Mais de 300 milhões de crianças vivem em zonas de grande ocorrência de cheias que também ocorrem em países onde mais da metade da população vive com menos de 3,10 dólares por dia.
  • Na África subsaariana, 247 milhões de crianças – duas em três – vivem em pobreza multidimensional.
  • Mais de 1/3 dos países não está a avaliar devidamente os seus níveis de pobreza infantil; cerca de metade dos que a medem não o fazem frequentemente.
  • Nos 41 países mais desenvolvidos, quase 77 milhões de crianças viviam em pobreza económica em 2014.
  • Se nada mudar, 156 milhões de crianças na África subsaariana estarão a lutar para sobreviver com menos de 1,90 dólares por dia em 2030; ao todo, representarão quase metade da população mundial a viver em pobreza extrema.

Fonte: Relatório A Situação Mundial da Infância – “Uma oportunidade justa para todas as crianças”