Tudo isto a propósito da mudança de hora, que baralha humores e comeres. As crianças contestam o jantar com a luz do dia e não há como lhes retirar a razão. Não é afinal o jantar uma refeição da noite?
POR PEDRO COTRIM
Vivemos uma das semanas estranhas do ano e que sucede independentemente de qualquer faina. Mexer nos nossos relógios é um solavanco no nosso movimento ondulatório e a rotina estremece, pondo-nos momentaneamente nas mãos de um melancólico Verão escandinavo, com quinze graus ao final da tarde e a claridade a manter-se até muito depois do que temos no senso comum do final de Março. O crepúsculo parece onírico e o sol nublado das sete um enorme xanax brilhante.
Termina-se o dia de trabalho e o bulício, nosso e dos outros, em nada sugere as férias grandes. O céu, que devia ser preto às oito da noite, mostra-nos todas as tonalidades de cinzento. Amarelo também nos foi mostrado e percebemos que a poeira é do Saara, mas o vento é da Sibéria. Já a água é da Antárctida, com excepção do Algarve.
Vivemos agora em prolapso e se tivéssemos um casal de relógios de parede bem o veríamos, bastando-nos para isso manter um com a hora solar e outro com a hora legal. E não é difícil fazer a conta.
Temos que no dia 31 de Março, e vamos tomar Lisboa por comodidade e por estar situada na zona central do país, o sol nasce às 7:22 e o ocaso ocorre fisicamente no instante em que a hora legal estipula 19:59. Agora a conta fácil: 5 horas e trinta e oito minutos de sol acima do horizonte antes do meio-dia, sete horas e cinquenta e nove minutos depois. Meio-dia, um termo que nos que nos mente visto que estes períodos deveriam ser idênticos. O resultado, e como ouvimos tantas vezes e de sobremaneira no Verão sobre as horas de insolação máxima, é que temos o sol na passagem meridiana, vulgo meio-dia, às 13:40. E as duas da tarde, de fugir sempre que é estio, ocorrem então perto das quatro.
Não é esta diferença constante e as razões são apenas geométricas, sendo uma de muito maior monta que as outras: a órbita terrestre é uma elipse, tendo Kepler mandado também dizer que a áreas iguais correspondem durações iguais. Em Janeiro, terreiro dos dias gélidos, a Terra chega ao periélio, e em Julho, quando assamos no Hemisfério Norte, temos nós o afélio. Melhor assim que ao contrário, uma vez que a diferença de insolação é de quase trinta por cento. Ainda bem que, essencialmente, o Sul é mar e o Norte é terra, com excepção dos pólos, curiosamente ao contrário. Quem quiser saber mais tem no Google a equação do tempo e o lindíssimo analema, cuja feitura se recomenda pelo menos uma vez na vida.
Esta elipse tudo baralha e entrega-nos ainda o pôr-do-sol mais tardio duas semanas mais tarde que o equinócio de Junho e o nascer do Sol mais preguiçoso por volta dos Reis. Anoitece mais cedo nos fins de Novembro que no celebérrimo 21 de Dezembro, de igual modo. Há ainda a considerar a obliquidade da eclíptica. E também, mas só um poucochinho, o facto de a Terra ser achatada nos pólos, o que deriva, como será de esperar, da sua própria rotação, pois acumula matéria no abdómen. São várias as razões, mas podemos ainda juntar o campo gravítico dos outros companheiros do Sistema Solar. «Tudo é astronomia», sabemos, e bem acertadamente é o motto de muitas escolas daqui e dali.
Este daqui e dali suscita-nos nova viagem à Escandinávia, e se olharmos para este Sol lusitano do final de Março temos a altura (altura do Sol = distância em graus até ao horizonte) máxima do ano no norte da Dinamarca e no Sul da Suécia. A luz do norte da Europa jamais será igual à nossa e vemos aqui uma aproximação grosseira. É que nem só de temperatura vive o homem e por isso tantos pintores flamengos fugiram para sul para terem casas onde realmente entrava luz. Consta que alguns, na ânsia de colher fotões, bem alargaram as janelas. É esta a nossa sorte do Sul. Louvemo-la, pois, na vez de maldizer entredentes esta horta ajardinada em forma de país.
Como estamos na altura do equinócio, temos marés vivas tal como em Setembro, só que não estamos nas praias para as apreciar. O Sol abraça a Terra pela cintura e daqui a três meses pelo trópico do Câncer. Aproveita-se para sugerir a leitura de Sonho de Uma Noite de Verão e quem não quiser ler a peça tem um filme dos anos 60 com Diana Rigg e Helen Mirren. Afinal não há desculpas para não conhecer um pouco de Shakespeare.
Tudo isto a propósito da mudança de hora, que baralha humores e comeres. As crianças contestam o jantar com a luz do dia e não há como lhes retirar a razão. Não é afinal o jantar uma refeição da noite?
Cruzam-se teorias sobre a mudança da hora ou manutenção da dita. Os que preferem mantê-la todo o ano optam pela de Verão, mas assim pagamos nós o ocaso tardio do estio com manhãs de Janeiro escuras escuras até às nove. Pouco acertado e uma vez mais deitamos mão à Suécia, que na capital tem seis horas de dia em Dezembro. Fossem os suecos cidadãos da nossa república e teriam, na vez da claridade que lhes compete entre as nove da manhã e as três da tarde no mês do Advento, porventura um muito mais modernaço e conveniente 14:00 – 20:00 com luz solar, condenando todas as outras horas ao escuro.
Sempre dá para um drink ao sunset e alegra-se assim o pagão e o folião. Ou será tudo isto da mudança de hora?
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A imagem de capa deste artigo é da autoria de Marco Meniero e gentilmente por ele cedida. É composta por uma série de fotografias tiradas ao longo do ano na lindíssima praça de Siena onde tem lugar a corrida de cavalos mais antiga do mundo, o Palio.
Mais trabalho do Marco no site www.meniero.it
Fotografar um analema é isto. Amor, dedicação e construção de uma imagem transcendente; e onde se vê que para fazer fotografia astronómica não carecemos sempre de um céu do mundo rural.

Pedro Cotrim
Editor