A Fundação AMI e o Global Compact realizaram mais uma edição dos Encontros Improváveis, este ano dedicada ao complexo desafio (da falta) de direitos humanos que se coloca à Europa e ao mundo. Em destaque, na conferência que reuniu especialistas portugueses e internacionais e o testemunho de parceiros da AMI no terreno, em países em desenvolvimento, estiveram as crises climática e humanitária, numa altura em que os novos ODS, a Cimeira do Clima e o êxodo de refugiados para a Europa estão no topo da agenda mundial
POR GABRIELA COSTA

Direitos Humanos: Desafios Actuais na Europa e no Mundo” foi o tema da 3.ª edição da iniciativa “Encontros Improváveis“, realizada pela Fundação AMI em parceria com a rede portuguesa do UN Global Compact.

A temática da conferência realizada a 5 de Novembro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, “não poderia ser mais pertinente e premente, numa altura em que a ONU apresentou uma nova agenda para o desenvolvimento e em que os direitos humanos fundamentais incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas [ratificada pela esmagadora maioria dos Estados e governantes, em 1948] continuam por se cumprir para uma parte muito significativa da população do planeta”, como alerta, em declarações ao VER, Fernando Nobre.

O presidente da AMI explica que “enquanto participante activa do Global Compact”, movimento das Nações Unidas que pretende congregar empresas e organizações da sociedade civil dispostas a alinhar, de forma voluntária, as suas estratégias e políticas com dez princípios universalmente aceites nas áreas dos direitos humanos, práticas laborais, ambiente e anticorrupção, e a que a AMI aderiu em 2011, a organização humanitária “reafirma o seu compromisso” de apoiar estes princípios “e difundi-los na sua esfera de influência”.

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O reconhecimento do papel desta plataforma “para a consolidação de uma aliança por um mundo melhor entre as organizações da economia social e do sector empresarial”, a par da promoção de acções de apoio às mais recentes metas das Nações Unidas em matéria de desenvolvimento global, com os novos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (incluindo ao nível do Clima, cujo novo compromisso global deverá ser firmado já em Dezembro, na COP 21), serviram de mote ao foco das temáticas analisadas nesta 3ª conferência anual – alterações climáticas e crise dos refugiados; trabalho Infantil e as mulheres no Desenvolvimento.

Depois dos temas “Novas Formas de Organização do Trabalho”, em 2013, e “Uma Economia Verde num Mundo Azul”, em 2014, este ano estiveram em análise possíveis respostas para a falta de direitos humanos que, a diferentes níveis, marca a actualidade enquanto um dos principais desafios globais que a Europa e o mundo enfrentam. No encontro participaram parceiros da Fundação no Afeganistão, Bangladesh, Brasil e Gana.

Em 2016, o quarto e último “Encontro Improvável” organizado pela AMI e Global Compact será dedicado aos meandros da corrupção.

Novos padrões de consumo ou climas extremos

Actualmente existem cerca de 60 milhões de refugiados no mundo. O cenário é inimaginável até para quem acumula trinta anos de experiência humanitária no currículo: o próprio presidente da AMI admite que nunca imaginou, “ao fim de todos estes anos, que o mundo pudesse defrontar-se com este tipo de problema”.

12112015_DesafiosHumanitarios2Mas defronta. E a situação é de tal forma complexa que não há debates, propostas de intervenção, solidariedade ou boa vontade que cheguem para mudar a afirmação de que, ao olharmos para os crescentes movimentos migratórios que têm sido protagonizados por milhares de pessoas em fuga dos seus países de origem, devido a conflitos armados, violência ou perseguições, estamos perante um drama de enorme gravidade e emergência absoluta. Mas também de grande complexidade e dificilíssima resolução, já que a mesma implica profundas transformações na Europa, a nível económico, social e até ambiental, como revelou a reflexão discorrida no terceiro e último painel da conferência Encontros Improváveis, intitulado “Alterações Climáticas, Migrações e as Crises Humanitárias”.

Para o físico e professor Filipe Duarte Santos, perante as enormes alterações que o clima “de uma Terra com mais de 4,5 mil milhões de anos” sofreu, desde a Revolução Industrial, impõem-se um “novo paradigma de desenvolvimento” que exige uma mudança nos actuais padrões de consumo, a começar pela substituição das energias fósseis por fontes alternativas.

Lamentando que, ao cabo de várias décadas de estudos e prospecções sobre a presença de Gases com Efeito de Estufa (GEE) na atmosfera, a sua concentração – e consequente aquecimento do planeta -, se tenham intensificado, o docente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa recorda que hoje, 80% do consumo mundial energético deriva de energias fósseis. E que o constante aumento de emissões de dióxido de carbono (CO2) associado à produção de combustíveis a partir de carvão e petróleo tem, inevitavelmente, acentuado “eventos extremos cada vez mais frequentes”, das secas às chuvas fortes ou ciclones.

[pull_quote_left]Impõem-se um novo paradigma de desenvolvimento que exige uma mudança nos actuais padrões de consumo, a começar pelo energético[/pull_quote_left]

Estes fenómenos provocados pelas alterações climáticas já provocaram a primeira vaga de refugiados climáticos, agravando a complexa situação dos migrantes forçados a deslocar-se dos seus países de origem. É o caso da seca violenta na Síria, “antes do início do conflito em 2012”, como lembra Filipe Santos.

Perante os desafios mais graves que afectam o clima de forma preocupante, como o aquecimento da atmosfera, a fusão dos gelos árcticos ou o degelo das calotas polares, o especialista espera da Cimeira do Clima (COP 21), em Dezembro, “um acordo justo, universal e verificável”. Para todo o mundo, mas principalmente para os países menos desenvolvidos – logo mais vulneráveis -, onde as consequências reais das alterações climáticas se fazem sentir com maior intensidade, apesar de, ironicamente, serem os que menos contribuem para essas alterações.

O Bangladesh é um desses países e tem vindo a ser assolado anualmente por uma catástrofe natural, o que contribui em força para acentuar a degradação das condições de vida dos seus habitantes. Secas, cheias ou tufões colocam ao país “grandes desafios” que exigem uma resposta eficaz para a redução das emissões de gases poluentes, como defende a directora da ONG DHARA – Development of Health & Agriculture Rehabilitation Advancement, liderada no feminino, e que tem em Lipika Das Gupta uma determinada activista dos direitos das mulheres pobres.

Defendendo que os países em desenvolvimento podem “desempenhar um papel muito importante na acção climática”, a fundadora desta ONG garante que o Bangladesh, uma das nações mais afectadas pelas mudanças no clima, está a trabalhar com afinco para mitigar os seus feitos. A DHARA, por exemplo, tem investido numa plantação que contribui para reduzir as emissões.

Para Lipika Das Gupta, o contributo dos países pobres só é possível “com ajuda externa e um plano concertado e de longo prazo para a acção climática”, que integre “uma resposta a nível global”, com base em “acordos internacionais” (como aqueles de que o Bangladesh é signatário), e no “financiamento para a produção de energias” alternativas às fósseis.

A parceria da DHARA com a AMI, iniciada em 2009 através do financiamento do projecto de saúde comunitária, permitiu entre outras valências construir em Atúlia um hospital com capacidade para 25 camas e uma equipa de seis médicos, quatro parteiras e dois enfermeiros. O projecto será agora alargado a uma segunda unidade hospitalar, também com 25 camas, a construir na cidade de Shyamnagar com o apoio da AMI, e que incluirá um departamento
especializado para a saúde materno-infantil, com o objectivo de alargar o acesso aos serviços de saúde, incluindo atendimento a mães e crianças, a pelo menos meio milhão de pessoas da costa Sudoeste do Bangladesh.

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As histórias dramáticas em que a Europa naufraga

Também presente neste 3º painel da conferência AMI esteve uma representante da Save The Children Itália, organização que actua na linha da frente da chegada dos migrantes forçados ao país, o primeiro da Europa a servir de porta de entrada para milhares de refugiados oriundos de países como a Síria, Líbia ou Eritreia.

Testemunhando que cerca de um quarto do total de deslocados que entraram desde o início de 2015 no país através do Mar Mediterrâneo são crianças (mais de 26 mil entre cerca de 107 mil migrantes), Viviana Valastro comenta assim a realidade destas pessoas: “chegam em condições deploráveis”.

Em fuga devido à guerra e a conflitos internos nos seus países de origem, mas também para escaparem de claras violações dos direitos humanos, estas crianças e jovens procuram no Ocidente “melhores condições de vida”, chegando principalmente desse destino desconhecido para a maioria dos italianos (“apesar de lhes ter pertencido”), que é a Eritreia, localizada no Corno de África – o que obriga à travessia da Síria e da Líbia antes que vislubrem o trajecto no Mediterrâneo. Trata-se, na sua maioria de “rapazes que deixaram irmãos pequenos [para trás], e que dizem ter fugido porque não querem ser soldados toda a sua vida”, ameaçados pelos governos dos seus países a inscreverem-se no Exército por não terem tido sucesso escolar, exemplifica a directora da Unidade de Protecção “Children on the Move” da Save the Children Itália.

[pull_quote_left]Os eventos extremos já provocaram a primeira vaga de refugiados climáticos, agravando a complexa situação dos migrantes forçados a fugir da guerra e da violência[/pull_quote_left]

Mas “há muitas outras histórias” dramáticas que vão fazendo a História desta que é uma das crises humanitárias mais graves na Europa, desde o final da II Guerra Mundial, conclui Viviana Valastro, e muitas delas relacionadas com os refugiados climáticos de tantos países pobres africanos.

Relatos que nos chegam também pela voz do Tenente Médico Naval Nuno Rodrigues, no âmbito da acção da Marinha Portuguesa, que tem vindo a colaborar com a agência Frontex no controlo das fronteiras externas e dos fluxos das rotas migratórias, entre o Norte da Líbia e o Sul de Itália.

Nuno Rodrigues explica como ajudou a resgatar 585 pessoas que embarcaram na Líbia, com dois destinos impossíveis: a ilha italiana de Lampedusa e a cidade de Catânia, na Sicília. Os traficantes ilegais que os ‘ajudaram’ nesta travessia “nunca tiveram a intenção de que chegassem” são e salvos a terra: “jamais poderiam chegar [ao destino], pois nem combustível tinham para isso”, desabafa o médico e investigador ao serviço da Marinha.

O esquema é, como se sabe, sórdido: depois de pagarem o equivalente a alguns milhares de euros (1500 a 3 mil euros por pessoa, dependendo do tipo de embarcação – semi-rígidos ou de madeira) em troca de um passaporte que garanta a sua sobrevivência e a dos seus familiares, os refugiados são colocados em embarcações sobrelotadas, sem quaisquer condições de segurança, onde têm de permanecer até entrarem em águas internacionais, para então pedirem socorro: “os traficantes dão-lhes um GPS e instruções para que o accionem quando saírem de águas da Líbia”, accionando assim os meios de busca e salvamento.

As quase 600 pessoas socorridas com a ajuda da Marinha Portuguesa estavam “emocionalmente destroçadas”, conta o Tenente. Uns fugidos da guerra, outros vindos do Mali, na África Ocidental, o que implica a travessia de todo um deserto, explica, “o que pode demorar dois meses ou dois anos”. Chegam em lágrimas e em choque, trazendo na bagagem relatos de experiências “verdadeiramente aterradoras”, não só pelas extremas condições adversas com que percorrem milhares de quilómetros, mas também “pelo que passam nas mãos destas máfias” que muitas vezes os submetem “a maus tratos, com a promessa de chegarem à Europa”. Ainda assim, uma vez chegados, agradecem.

Perante esta realidade dramática, será a responsabilidade europeia “condigna”? O Alto-Comissário para as Migrações, Pedro Calado, fala pelo seu país: Portugal “prepara, desde Setembro, a estratégia nacional para a integração dos requerentes de asilo” que se comprometeu a acolher (4500 cidadãos provenientes da Eritreia, Síria e Iraque, parte dos quais não deverão, contudo, obter o estatuto de refugiado, confessa). A terras lusas chegaram já várias dezenas de requerentes de asilo, como previsto anteriormente pelo Conselho Português para os Refugiados, entidade que representa o ACNUR a nível nacional.

Admitindo que Portugal é historicamente um país de imigrantes – “o que nos coloca nos sapatos dos outros”, como sublinha o jornalista, repórter de investigação e moderador do painel Rui Araújo -, Pedro Calado rejeita, contudo, as hipóteses de deportação ou mesmo de classificação por nacionalidade destas vítimas, a nível da União Europeia, cujo Conselho Europeu aprovou em Setembro último várias medidas para acolher uma primeira leva de 40 mil refugiados, tendo o Parlamento Europeu aprovado posteriormente a recolocação de mais 120 mil pessoas, entre os Estados-membros da UE.

Contra a crispação social gerada devido a alguma falta de compreensão (e, em alguns caso, de tolerância) face à necessidade de acolhimento e integração destes requerentes de asilo, o responsável máximo pelo Alto Comissariado para as Migrações recorda as diversas comunidades estrangeiras “perfeitamente integradas” no País, como é o caso da muçulmana, feita de gente “empreendedora”, remata, lamentando que por vezes “predominem os mitos”.

Ora, a verdade é que, perante uma situação consensualmente classificada de “extremamente dramática” e com tendência para agravar-se, pelos oradores presentes nesta 3º edição dos Encontros Improváveis da AMI, ainda é possível encontrar aspectos positivos no acolhimento e integração destes refugiados, como a ocupação laboral em sectores onde, apesar do desemprego, faltam recursos humanos, ou o rejuvenescimento da população europeia (e da portuguesa, em particular), em sério risco de desequilíbrio demográfico.

Neste contexto, e como afirmou ao VER Fernando Nobre, o encontro promovido pela AMI ”permitiu a concretização de um importante e necessário debate sobre o tema”, demonstrando [através de intervenções “pertinentes e desafiadoras”] que a sociedade civil “não ignora o seu papel de agente de mudança”.


Crianças e mulheres ainda em segundo plano

12112015_DesafiosHumanitarios4No primeiro painel da conferência “Direitos Humanos: Desafios Actuais na Europa e no Mundo”, realizada no âmbito da iniciativa “Encontros Improváveis”, da AMI e Global Compact, a reflexão sobre a temática “Trabalho Infantil: Economia Mundial e Direitos Humanos” esbarra desde logo com um número assustador: no mundo, existem mais de 168 milhões de crianças que trabalham.

Tratando-se de um dos maiores desafios globais da actualidade, a erradicação deste problema está longe de ser alcançada, com tantas e tantas crianças “impedidas de ir à escola, privadas da sua felicidade e do seu futuro”, como sublinhou no evento Fátima Pinto, presidente da Confederação Nacional de Acção sobre o Trabalho Infantil (CNASTI). Em representação da Organização Internacional do Trabalho, Catarina Braga defendeu, por seu turno que, apesar de tudo, a situação melhorou de forma significativa nos últimos anos, uma vez que a prevalência do trabalho infantil decresceu 30% desde 2008.

Já a responsável de Comunicação Corporativa e de Sustentabilidade da IKEA, Maria João Franco, salientou a importância do trabalho desenvolvido por empresas como a sua, que conseguem ter um impacto positivo ao nível do desenvolvimento de boas práticas que protegem e ajudam os mais pequenos, nos mercados onde estão presentes.

“O Papel da Mulher no Desenvolvimento” esteve em foco no segundo painel da conferência, reunindo parceiros da AMI, como a ONG ACOM, do Brasil, e a Hope Of Mother, do Afeganistão, com a perspectiva do professor e investigador Roque Amaro.

As questões de género, e a forma como as mesmas dividem, oprimem, discriminam ou limitam homens e mulheres, marcaram um debate que culminou numa certeza: é imperativo promover a mudança, aproximando os direitos no feminino aos adquiridos pelos homens, nos países mais pobres. Mas esse será ainda um longo processo “que exige paciência, perseverança e sobretudo, tempo”, como concordaram todos os presentes.

Do Afeganistão ao Brasil, as questões parecem não só recorrentes como idênticas. No entanto, as soluções para as superar “não devem nem podem ser iguais”, embora na sua base esteja sempre a educação, nos seus diferentes níveis e esferas.