Do ponto de vista científico, a lógica de um plano de saída deve ter em conta os grupos populacionais de maior risco e a forma de propagação do vírus. Devemos concentrar medidas de proteção sobre quem sofre de doenças crónicas, sobretudo cardiovasculares, cancros e diabetes (tendencialmente nas faixas etárias mais avançadas) e evitar situações propícias a ajuntamentos de pessoas
POR MIGUEL CASTANHO

Portugal fechou-se em casa para impedir que o vírus causador da COVID-19 alastrasse rapidamente, afectasse muita gente em simultâneo e, consequentemente, provocasse um acesso súbito de muitos doentes a necessitar de cuidados de saúde aos hospitais. O colapso da capacidade de resposta dos hospitais teria sido (ainda mais) trágico. Foi, portanto, uma boa medida de primeira linha.

No entanto, desde o primeiro dia que se sabe que o confinamento resultante da quarentena é uma medida de curto prazo e que o problema é de longo prazo. O desfasamento temporal entre a viabilidade da solução e a persistência do problema sempre foi clara, o que obrigaria ao planeamento de uma saída da quarentena tendo em conta riscos. Quinzena após quinzena foi sendo reposta a quarentena e imposto o estado de emergência, mas do plano de saída pouco se sabe. Países como a Áustria e a Noruega já planearam a saída dos estados de emergência e anunciaram a lógica com que os elaboraram. Portugal já deveria ter feito o mesmo.

Do ponto de vista científico, a lógica de um plano de saída deve ter em conta os grupos populacionais de maior risco e a forma de propagação do vírus. Devemos concentrar medidas de proteção sobre quem sofre de doenças crónicas, sobretudo cardiovasculares, cancros e diabetes (tendencialmente nas faixas etárias mais avançadas) e evitar situações propícias a ajuntamentos de pessoas. Isto na prática pode traduzir-se em aliviar as medidas de contenção da população infantil e juvenil (desde que indivíduos saudáveis, note-se), retomar as atividades do pequeno comércio com medidas para evitar lotação de estabelecimentos, trabalho por turnos em situações de distanciamento dos postos de trabalho, restrição ao uso de objetos de manuseio intensivo por mais que uma pessoa ou uso de películas protetoras descartáveis em superfícies frequentemente tocadas (teclados de computador, puxadores de portas e botões de elevadores, por exemplo), uso de máscaras adequadas em situações em que o contacto social próximo possa ser inevitável (transportes públicos, por exemplo) e persistência de proibição sobre grandes eventos de massas (grandes festivais, conferências ou concertos, por exemplo).

Aos poucos, a combinação do teletrabalho, que persistirá em alguns casos, sejam eles inevitáveis ou simplesmente desejáveis, com o regresso às atividades presenciais em atividades profissionais ou lúdicas trará um “novo normal”. Não creio que seja um “novo normal” de um admirável mundo novo em que a tecnologia e as atividades remotas triunfem. Estas visões parecem-me romanceadas. Descobrimos com a quarentena que a tecnologia nos oferece muitos recursos para trabalhar, mas também descobrimos como o teletrabalho em confinamento é saturante. Descobrimos como as aulas à distância são tecnicamente viáveis, mas também descobrimos como o processo pedagógico de ensino e aprendizagem é prejudicado. Descobrimos como as videoconferências nos dão as faces e as vozes dos outros, mas também descobrimos como as imagens e os sons por si só são impessoais. Descobrimos, em suma, que a vivência pessoal tem de ser revalorizada.

Mais do que dominado pela tecnologia dos meios de informação, o “novo normal” dependerá de conseguirmos ou não uma vacina (um desfecho incerto) e da rapidez com que conseguirmos medicamentos contra o SARS-CoV-2. Tomemos o caso do HIV/SIDA como exemplo: apesar de todo o investimento para o desenvolvimento de uma vacina, ela não foi alcançada; foram surgindo medicamentos importantes mas o vírus foi criando resistências e o combate à SIDA caracteriza-se por uma longa persistência em batalhas sucessivas de muitos anos. Apesar de todo o esforço e de todo o tempo decorrido, a SIDA continua sem cura. Ainda que a batalha contra o SARS-CoV-2 seja pautada de maiores sucessos, com uma vacina que previna a COVD-19 e medicamentos que curem a COVID-19, não podemos contar com estas soluções a curto prazo. O “novo normal” dos próximos meses será marcado pela nossa capacidade coletiva de planear adequadamente a saída (inevitável) da quarentena, implementar com civismo esse plano e capacidade de ajuizar a cada momento se estamos a caminhar na direção certa. Não é fácil mas é a altura de demonstrarmos que estamos à altura do momento.

Professor Catedrático no Instituto de Bioquímica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa