“Podemos ser a primeira geração a acabar com a pobreza”. Está já famosa declaração de Ban Ki-moon correu mundo, mas despertou o interesse habitual associado a citações bonitas mas sem valor prático. Ou seja, nenhum. Na III Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento, que ocorreu esta semana em Adis Abeba, foram assumidos vários compromissos para garantir os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, os quais irão vigorar nos próximos 15 anos. E não figurando o dinheiro como principal obstáculo à sua concretização, o mesmo não se pode dizer da vontade efectiva dos líderes globais
POR HELENA OLIVEIRA

A III Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento, que teve lugar entre 13 e 16 de Julho, na capital da Etiópia, reuniu líderes globais de vários quadrantes da sociedade com o objectivo de encontrar formas de financiar os ambiciosos e dispendiosos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), os quais irão substituir os antigos Objectivos do Desenvolvimento do Milénio (ODM) – que expiram no final de este ano – e vigorar até 2030.

Acabar com a pobreza, garantir a segurança alimentar em todas as zonas do globo e, obviamente, proteger o planeta são os grandes desígnios da nova agenda para o desenvolvimento, sendo que a versão final sobre os objectvos específicos ainda não está terminada. Todavia, e apesar de intitulados de forma diferente, os mesmos não diferem significativamente dos seus antecessores – acabar com a pobreza extrema e com a fome, assegurar a igualdade de género, lutar por um sistema económico global equitativo em que nenhum país ou pessoa é deixado para trás, preservar o planeta para as gerações futuras – e, apetecia escrever, “blá blá blá”, pois e apesar de alguns passos verdadeiramente positivos no sentido de mitigar os mais prementes problemas do mundo, o que acaba sempre por parecer é que todas estas boas intenções não passam de palavras ocas e sem efectivação prática.

A conferência em causa teve lugar numa altura crucial, apenas a dois meses da Assembleia Geral da ONU, em Setembro, na qual os ODS serão formalmente apresentados e assumidos, sendo que o financiamento para os programas ambientais é igualmente uma prioridade, antecedendo mais uma COP, a 21, a qual terá lugar em Paris, em Dezembro, com o objectivo de, mais uma vez, se chegar a um acordo climático global. Nos media, aliás, 2015 foi já baptizado de “ano da acção global”, na medida em que são vários os eventos “planetários” que estão marcados para este ano.

Mas, de regresso à III Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento e de acordo com estimativas das Nações Unidas, para que estes ODS sejam atingidos, serão necessários cerca de 11,5 triliões de dólares anuais ou 172,5 triliões num período de 15 anos. Impossível? Sim, se nada for feito para alterar mentalidades e comportamentos mais do que instituídos, mas não se existir um verdadeiro compromisso por parte dos líderes globais para, de uma vez por todas, traduzirem em acções o que há muito vêm pregando. A verdade é que, ao contrário do que possamos imaginar, e mesmo com o ambiente económico volátil que parece agora constituir uma “norma planetária”, a verdade é que a inexistência de recursos – conhecimento, tecnologia e dinheiro – já não serve de desculpa para uma inacção global.

De acordo com o The Guardian, a nível global, os investimentos públicos e privados ascendem a cerca de 22 triliões de dólares anuais, sendo que o stock de activos financeiros global é estimado em 218 triliões de dólares. Se apenas uma pequena parcela desta quantia fosse investida em desenvolvimento sustentável, a diferença seria abismal.

Mas e antes de mais, é importante relembrar que a mais importante fonte de financiamento para o desenvolvimento começa no interior de cada país. Tal como afirma Pedro Krupenski, presidente da Plataforma Portuguesa das ONGD, a qual participou nesta conferência, integrando a Comitiva Oficial Governamental, em concreto “pretende-se uma redefinição da meta dos 0,7% de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), calendarizando e estabelecendo metas intercalares, e um empenho, por parte dos governos e da sociedade civil, na procura e na implementação de formas alternativas de financiamento que não sobrecarreguem o Orçamento de Estado dos países”.

Esta meta, que já foi definida há décadas (pelo menos 0,51% do Rendimento Nacional Bruto até 2010, e 0,70% até 2015) e que apenas uma mão cheia de países desenvolvidos cumprem – a média da União Europeia, por exemplo, não ultrapassa os 0,40% – é apenas um dos factores que obstam a qualquer que seja a boa vontade. Já sem falar na possibilidade de se angariar mais financiamento por parte dos governos sobre a forma de impostos “efectivos” e de investimentos adicionais via os autoproclamados negócios responsáveis, em conjunto com os fluxos financeiros ilícitos que representam somas astronómicas de dinheiro e que são provenientes da corrupção, do contrabando, do tráfico e da gestão desadequada dos recursos naturais valiosos. E se tudo continuar como até agora, ´não será prematuro concluir que não será desta que o tão necessário compromisso por parte dos líderes globais será efectivado. A título de exemplo e de acordo com a Comissão Económica para África, das Nações Unidas, só neste continente, os fluxos de dinheiro ilícito chegam aos 50 mil milhões de dólares.

Assim, os olhos e as esperanças parecem estar postos no sector privado, o qual constitui a força motriz da economia global. O The Guardian também recorda – e no seguimento da necessidade de financiamento de 100 mil milhões de dólares anuais até 2020 para o clima – que na última cimeira dedicada a esta temática, e que ocorreu em Nova Iorque em Setembro de 2014, foram centenas os líderes empresariais que se comprometeram com um valor, no total, perto dos 200 mil milhões de dólares para investimentos em desenvolvimento sustentável. O que não significa, necessariamente, que os mesmos sejam simplesmente generosos, mas sim que os negócios que estão a construir em torno dos modelos da sustentabilidade estão a surtir efeitos positivos – leia-se lucros e um sólido retorno do investimento – o que é meio caminho andado para aumentar a bondade corporativa.

As dúvidas habituais

16072015_DeBoasIntencoesEstaoNo dia inaugural desta reunião de líderes, o cardeal Luis Antonio Tagle, presidente da Cáritas internacionais formulou algumas questões pertinentes que espelham bem o estado do mundo no que aos seus decisores globais diz respeito. Alertando para o facto de que será a ambição demonstrada pelos líderes participantes que será vital para o sucesso das reuniões subsequentes, Tagle declarou também que “um fracasso em Adis Abeba representará um enorme risco que poderá deteriorar significativamente a vontade política internacional no que respeita às demais decisões que terão de ser tomadas em 2015. E questiona: “querem os Estados mundiais, verdadeiramente, que a economia e as finanças sirvam o desenvolvimento pleno de todos nós e a conservação dos nossos recursos naturais? Irão eles [os mais ricos] permitir que todos os países participem nas decisões económicas e financeiras? Ou optarão por deixar que os actores privados, que estão mais preocupados com os lucros de curto prazo do que com o bem comum, fortaleçam a sua intervenção nas escolhas económicas e sociais mundiais? Será que os enclaves restritos reservados aos mais poderosos serão favorecidos na decisão sobre o destino do planeta e do seu futuro?”

As perguntas são todas pertinentes, mas há muito que figuram como óbvias quando a decisão sobre o futuro do planeta está em jogo. Se é certo que os governos deveriam ir mais além do que o seu habitual egoísmo e interesses de curto prazo se realmente pretendessem atingir um acordo satisfatório que respeitasse a dignidade e a participação de todos os Estados, em particular dos mais frágeis, a verdade é que logo no documento preparatório para esta conferência, o fosso existente entre os objectivos propostos (uma agenda transformativa, um modelo económico e social diferente, entre outros) e as soluções sugeridas (alargamento da intervenção das empresas de grande dimensão, regras internacionais definidas pelos países mais poderosos, etc.) é, só por si, gigantesco.

Luis Antonio Tagle alerta ainda para o facto de os países que pretendem atrair investimento estarem reluctantes em aplicar, na prática, medidas que garantam o respeito pelos direitos humanos e pelo ambiente e que existe uma enorme preocupação que as facilidades atribuídas ao sector privado possam conduzir a uma economia dominada pelas finanças com consequências terríveis para os países cujos sistemas de supervisão bancária sejam ainda frágeis. Sendo que este domínio financeiro prevalecente na economia há muito que é uma realidade.

Do impacto para o compacto social

16072015_DeBoasIntencoesEstao2A enfâse da importância em recorrer a diferentes formas de financiamento para o desenvolvimento consistiu numa alteração significativa patente nesta III Conferência, em particular face ao discurso habitual que foi recorrente ao longo dos últimos 15 anos na denominada era dos Objectivos do Milénio e em que a palavra “ajuda” foi por demais repetida.

Uma das questões que maior unanimidade suscitou – enquanto caminho para atingir os objectivos do desenvolvimento sustentável – foi a necessidade de se proceder a uma maior arrecadação de impostos por parte dos países em desenvolvimento. Na sua maioria, a tributação fiscal nestes países situa-se entre os 10% e os 15% do seu produto interno bruto, comparativamente a uma média de 35% nos países desenvolvidos. Se, em termos gerais, esta comparação não é justa, a verdade é que baixas receitas de impostos significam que os governos dos países em causa têm sido apenas capazes de financiar os serviços mais básicos, de que são exemplo o policiamento, os tribunais e as forças armadas. Ou, por outras palavras, o acesso universal à saúde ou à educação, o investimento em infraestruturas e uma rede de segurança social, por mínima que seja, acabam por ficar de fora e determinar a não existência dos fundamentos necessários a uma vida digna e decente para todos.

Mediante este ponto de vista, a urgência de maiores níveis de impostos nos países em desenvolvimento apresenta-se como crucial. De acordo com as Nações Unidas e para que estes países sejam capazes de financiar a sua quota-parte dos ODS, é necessário aumentar a cobrança das receitas fiscais até 20% do PIB, o que implicará, em primeiro lugar, uma tributação (muito mais) justa e equilibrada. De acordo com dados relevados na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, em 2014, estima-se que a fuga aos impostos por parte das multinacionais a operar nos países em desenvolvimento ascenda aos 100 mil milhões de dólares. Por outro lado, e como alertou a ministra holandesa Lilianne Ploumen, todo o sistema de impostos nos países em desenvolvimento precisa de ser (re)construído: por exemplo, na Zâmbia, afirma, “um colhedor de cana-de-açúcar e um vendedor numa banca de mercado pagam mais impostos do que a própria fábrica de açúcar”. A Holanda tem desenvolvido, nos últimos 10 anos, vários programas que ajudam a reconfigurar os sistemas de impostos nos países em desenvolvimento, e apresentou, em Adis Abeba, uma iniciativa que visa aprofundar este auxílio.

Outras narrativas que registaram alguns progressos significativos na capital da Etiópia prendem-se com uma maior preocupação assumida no que respeita à industrialização, tecnologia e infraestruturas, tendo como pano de fundo o enfoque em práticas sustentáveis e a emergência da igualdade como prioridade.

Em termos de iniciativas de financiamento mais concretas, foi igualmente anunciada, numa parceria entre o Fórum Económico Mundial e a OCDE, e através da ReDesigning Development Finance Initiative, o programa Blended Finance, que visa atrair o investimento do sector privado em conjunto com fundos sociais para gerir os riscos e aumentar o retorno dos mercados em desenvolvimento. Com um investimento inicial na ordem 100 mil milhões de dólares para os próximos cinco anos, esta iniciativa apresenta-se como uma opção “win-win-win” para todas as partes envolvidas: para o financiamento do desenvolvimento e para os financiadores sociais, na medida em que permitirá uma “extensão” e “expansão” dos seus dólares, atá aqui limitados; para os investidores privados, na medida em que podem gerar retornos atractivos e, mais importante que tudo, para as populações dos países em desenvolvimento, na medida em que mais fundos serão canalizados para as suas comunidades mediante formas que possibilitem o seu crescimento sustentável.

Com vários outros compromissos assumidos, talvez o que merecerá maior atenção futura é o denominado “compacto social”, que visa “garantir a protecção social e serviços públicos essenciais para todos”, numa tentativa de “acabar com a pobreza em todas as suas formas e em todos os lugares e terminar os inacabados Objectivos do Milénio”. Este “compacto” estabelece um objectivo bem delineado para políticas que colocam, pela primeira vez, as pessoas – e não os governos – no centro dos esforços de desenvolvimento internacional, mas que implicam a existência de bases sólidas para a disponibilidade dos países mais pobres em contribuir com os seus recursos internos para este esforço e uma determinação para aplicar estes mesmos recursos de forma efectiva. Neste momento, e apesar de não serem ainda claras as formas para se atingir esta enorme ambição, um dos problemas que mais preocupação está a gerar está relacionado com o facto de serem muitos os países em desenvolvimento que consideram “intrusivo” serem os países desenvolvidos a ditarem em que serviços essenciais devem estes aplicar os seus recursos financeiros.

Apesar de esta conferência representar um consenso global entre os sectores público, privado e social – nomeadamente o da filantropia de impacto – para se abordar os ODS, não é possível esquecer que o mundo vive um período de expectativas muito baixas face às taxas de crescimento económico, com um enfraquecimento do comércio internacional, um declínio dos fluxos de investimento nos países em desenvolvimento e, como tão bem sabemos, de problemas persistentes relacionados com as dívidas soberanas em muitos países desenvolvidos. Resta saber de que forma estes Objectivos do Desenvolvimento Sustentável serão abordados no meio desta persistente “tempestade perfeita”.

NOTA: À hora do fecho desta edição, decorriam ainda as últimas sessões da III Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento.

Editora Executiva