A Europa só conseguirá encontrar uma saída sustentável para a crise adoptando “modelos sociais justos”, conclui o mais recente Relatório de Acompanhamento da Cáritas Europa, apresentado ontem, em Lisboa. A realidade demonstra que o paradigma europeu, assente no crescimento económico, “é insuficiente” para combater as crescentes desigualdades e a chaga do desemprego, de modo a retirar milhões de famílias da situação de pobreza em que ainda se encontram. As crianças são o grupo mais afectado e, considerando que “o impacto da crise nas pessoas é duradouro”, mais do que nas economias da UE, o custo humano que a mesma comporta vai atravessar gerações
POR GABRIELA COSTA

“Uma Europa que assiste, defende e tutela o Homem” é o que se espera de uma Europa recuperada da crise. Para a Cáritas Europa, e como defendeu o Papa Francisco num discurso ao Parlamento Europeu, em Estrasburgo, proferido em Novembro de 2014, “chegou a hora de construir a Europa que gira não em torno da economia, mas da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis”.

Mas, e seis anos após o seu início, a crise económica ainda deixa marcas profundas, não só nas economias da União Europeia mas também na qualidade de vida das suas populações, conclui o Crisis Monitoring Report 2015 da Cáritas Europa, apresentado ontem, em Lisboa, na presença do secretário-geral da organização a nível europeu, Jorge Nuño Mayer, do presidente da Cáritas Portuguesa, Eugénio da Fonseca e de representantes de vários partidos políticos portugueses.

Aos ainda enormes níveis de dívida pública e aos fracos níveis de crescimento económico, em muitos países europeus, corresponde uma realidade na qual milhões de pessoas continuam desempregadas, e milhões de outras vivem em situação de pobreza e exclusão social, revela esta 3ª edição do Relatório de Acompanhamento da Crise, que avalia o aumento da pobreza e das desigualdades nos sete países mais fustigados pela conjuntura económica dos últimos anos e pela “resposta da austeridade”: Chipre, Espanha, Grécia, Irlanda, Itália, Roménia e Portugal.

E Portugal destaca-se pela negativa face aos restantes países analisados, no que respeita aos impactos sociais da crise: somos o país que registou o maior aumento da taxa de risco de pobreza e exclusão social, no último ano (mais 2.1 pp), seguido pela Grécia (1.1 pp). E somos aquele que apresenta a segunda maior dívida pública em comparação com o PIB (128%), desta vez a seguir à Grécia (174,9%).

[pull_quote_left]Portugal é o país que regista o maior aumento da taxa de risco de pobreza e exclusão social em 2014[/pull_quote_left]

Não obstante, nos sete países avaliados houve um aumento dos indicadores de pobreza e exclusão social, de instabilidade no emprego (em particular para os mais novos) e de trabalho temporário persistente (que já não é de transição para trabalho permanente): em todos eles, os níveis de desemprego situam-se “bem acima da média da União Europeia, com destaque para o desemprego jovem”, alerta o relatório.

O grupo mais afectado pela crise são as crianças, cujas famílias “não conseguem fazer face à situação”, mesmo estando “a cortar em bens essenciais, muitas vezes na própria alimentação” (com efeitos imprevisíveis na saúde, a longo prazo). Nestes países, “o impacto da crise nas pessoas é duradouro”, testemunha a Cáritas diariamente, através da sua rede de organizações nacionais. Perante este cenário, as taxas de emigração nos países sob assistência (ou que dela saíram recentemente) “aumentaram brutalmente”, revela ainda o documento.

A metodologia de avaliação utilizada no relatório “Poverty and inequalities on the rise” cruza indicadores como as taxas e tendências de emprego e desemprego, os níveis de pobreza, privação material e exclusão social, o estado dos serviços públicos, em geral, e dos cuidados de saúde, em particular, e os níveis de confiança nas instituições nacionais e europeias e de coesão social (recolhidos através dos números oficiais do Eurostat e dos institutos nacionais de estatística), com a informação recolhida “no terreno” e as realidades testemunhadas pelos muitos centros de apoio da Cáritas existentes nos países abrangidos.

Esta fórmula constitui “uma combinação única” que “proporciona uma temperatura muito precisa da situação socioeconómica da população, desde a classe média até àqueles que estão situações de particular vulnerabilidade”, defende a organização. É de assinalar que o trabalho desenvolvido pela rede de organizações da Cáritas Europa (que actua extensivamente em todos os Estados-membros da EU) ajuda milhões de pessoas carenciadas.

Mudar o paradigma europeu com justiça social

23042015_CustoHumanoDaCriseAtravessaGeracoes“Modelos sociais justos são necessários para a solução”. É sob este mote que o relatório agora divulgado pretende, para além de analisar os impactos da crise em vários domínios, e o modo como ela está a ser enfrentada nestes sete países, formular propostas concretas para a superar, e apontar um conjunto de Recomendações, incluídas na quarta e última parte do documento. O objectivo é encorajar responsáveis políticos e decisores a nível local, regional, nacional e europeu, bem como organizações não-governamentais e Igreja, a atenuar “o custo humano da crise”, e “trazer esperança” às pessoas por ela mais atingidas. 

Contudo, para que tal aconteça é necessário primeiro compreender o que está a falhar. Face aos principais resultados obtidos pela recente análise da Cáritas, e na sequência do que a organização já sublinhara nos seus anteriores Relatórios de Acompanhamento da crise, publicados em 2013 e 2014, “tornou-se óbvio que o crescimento, só por si, não irá eliminar desigualdades inaceitáveis”, como sublinha no prefácio do Crisis Monitoring Report 2015 o secretário-geral da Cáritas Europa.

Para a organização, a realidade está a demonstrar que o paradigma das instituições europeias, assente no crescimento económico e na inovação, é “insuficiente para combater as enormes desigualdades geradas e para criar empregos suficientes” para retirar as crianças e as suas famílias “das situações de pobreza para as quais foram empurradas”.

Defendendo que a insistência em dar “prioridade a medidas de austeridade, com virtual exclusão de todas as outras abordagens, não resolverá a crise e está a causar problemas sociais que irão ter impactos duradouros”, o documento aponta o dedo às políticas que têm sido adoptadas, transversais aos países analisados. E cujos resultados, apesar de incluírem “alguns progressos na dimensão económica”, estão longe de se reflectir de forma positiva na vida das pessoas, diz a Cáritas, continuando a registar-se altos níveis de desigualdade, pobreza, precariedade e exclusão.

Os sistemas de protecção social, em particular dos países intervencionados, continuam sobre enorme pressão e verifica-se em todos os países que a sua cobertura é cada vez menor. Os serviços públicos para os mais desprotegidos e as oportunidades geradas para as famílias reduzem-se, o que potencia situações de pobreza temporárias e as torna estruturais, ou até crónicas. O objectivo da coesão social “parece ter sido abandonado”. O apoio popular ao projecto europeu é cada vez menor (tanto nos países devedores como nos credores) e “é notório o défice democrático na definição de medidas, o que tem permitido alterações políticas na Europa”, conclui esta 3ª edição do Relatório de Acompanhamento da Crise.

O qual deixa um sério alerta: “os povos europeus estão a perder a paciência e querem ver medidas concretas, pois os que têm de pagar pela crise, os cidadãos, são aqueles que menos contribuíram para que ela acontecesse”.

© Audiohead | Dreamstime.com
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25 milhões de desespera(nça)dos

Em Portugal, entre 2011 e 2014, a Cáritas registou “um enorme aumento” do número de famílias e de pessoas apoiadas. A principal razão apontada para procurar ajuda é a falta de rendimento, seguindo-se problemas relacionados com o trabalho, com o desemprego em destaque.

E no que a desemprego diz respeito, em 2013 a taxa no nosso país (16,4%) foi a quarta mais elevada na UE-28. As piores registaram-se na Grécia (27,3%) e em Espanha (26,1%). De resto, e de acordo com dados do Eurostat de Abril de 2014 ponderados neste relatório, o fenómeno “mantém-se historicamente elevado”, afectando mais de 25 milhões de pessoas na UE-28, o que representa um aumento de quase 8,4 milhões desempregados, entre 2008 e 2013.

[pull_quote_left]“Tornou-se óbvio que o crescimento, só por si, não irá eliminar desigualdades inaceitáveis” – Secretário-geral da Cáritas Europa[/pull_quote_left]

Os jovens (entre os 15 e os 24 anos) são um dos grupos mais afectados pelo desemprego, com uma taxa de 22,5%, em 2014, segundo dados da Comissão Europeia que adiantam que, em Abril do ano passado, estavam desempregados 5 259 milhões de jovens na UE-28. As taxas de desemprego jovem mais elevadas em 2013, nos 28 países, registaram-se na Grécia (58,3%) e em Espanha (55,5%). Portugal atingiu a sexta taxa mais elevada: (38,1%).

Já a taxa crescente de NEET (jovens que não estão nem a trabalhar nem a estudar ou a frequentar qualquer tipo de formação) expressou-se com maior relevo, no mesmo ano, na Itália (22,2%) e na Grécia (20,6%). Portugal tinha então 14,2% de ‘jovens NEET’.

Finalmente, a taxa de desemprego de longa duração (o qual “constitui um enorme desafio, tanto em termos humanos como sociais”) aumentou na Grécia, Espanha, Itália e Chipre, entre o último trimestre de 2012 e o último trimestre de 2013, tendo começado a diminuir na Irlanda e em Portugal a partir do 2º semestre de 2013.

Nesta matéria, as pessoas com níveis de educação mais baixos continuam a ser gravemente afectadas; e a qualidade dos empregos disponíveis tem vindo a cair, ao mesmo tempo que aumentam os postos de trabalho temporários, sublinha ainda a Cáritas.

Lamentando a significativa redução da despesa social a que as políticas de austeridade adoptadas na prossecução da consolidação orçamental e de reformas estruturais obrigaram, a Cáritas Europa recorda que a percentagem de pessoas que não recebem apoio ao rendimento é especialmente elevada na Grécia, Chipre, Itália e em Portugal, onde mais de 40% das pessoas que vivem em famílias sem (ou quase sem) trabalho e os pobres recebem apenas até 10% do seu rendimento de transferências sociais. Em Espanha e na Roménia essa percentagem situa-se entre os 30% e os 40%, segundo dados de 2014 do Comité de Protecção Social.

A taxa de risco de pobreza ou de exclusão social (o indicador combinado de pobreza utilizado na Estratégia Europa 2020) cresceu entre 2008 e 2013 na maior parte dos Estados-Membros da UE-28, atingindo no ano passado 122,5 milhões de pessoas, a que equivale 24,5% da população (ou seja, quase uma em cada quatro pessoas), ditam os números do Eurostat. Entre 2012 e 2013, os países que apresentaram aumentos mais significativos nas suas taxas de risco de pobreza ou de exclusão social foram, como referido, Portugal e a Grécia.

Já a taxa média de risco de pobreza (uma medida de rendimento relativo) na UE-28 era de 16,7% em 2013, diminuindo ligeiramente em relação a 2012, mas correspondendo ainda a 83,46 milhões de pessoas, cujo rendimento disponível era inferior ao limiar nacional de risco de pobreza, após transferências sociais. Esta taxa foi mais elevada do que a média da EU em cinco dos sete países abrangidos pelo presente relatório: Chipre e Irlanda são as excepções. Em 2013, também a taxa de privação material severa (indicador de falta de recursos) foi mais elevada do que a média da UE-28 em seis dos sete países incluídos, sendo Espanha a única excepção.

No que concerne o acesso a serviços de qualidade, os impactos dos cortes nos serviços de saúde, bem-estar, educação e coesão e num crescimento económico efectivo só deverão “tornar-se evidentes a médio ou longo prazo”, mas é já uma evidência que estes cortes “afectam de forma desproporcionada as pessoas mais pobres e os grupos mais carenciados”.

[pull_quote_left]“Os povos europeus estão a perder a paciência e querem ver medidas concretas”[/pull_quote_left]

Por último, mas em primeiro no que toca aos grupos mais vulneráveis e que, por isso, requerem maior preocupação, a taxa de risco de pobreza nas crianças (com menos de 18 anos) aumentou em 14 Estados-Membros entre 2012 e 2013, indicam também os dados do Eurostat. A Roménia foi o país que registou, em 2013, a taxa de pobreza infantil mais elevada (32,1%), seguida da Grécia (28,8%). Portugal registou uma taxa de 24,4%, acompanhada de um aumento acentuado (2,6 pp) face a 2012.

Por seu turno, a taxa de pobreza entre os idosos é superior, em todos os países em análise, à taxa média da UE-28, com excepção de Espanha e da Irlanda. O relatório confirma que certos grupos de pessoas idosas (como as que sofrem de doenças crónicas) ficaram especialmente vulneráveis devido aos cortes nas prestações de saúde e da segurança social.

Para a Cáritas Europa, a falta de protecção destas pessoas sugere falta de eficácia do sistema de benefícios para chegar aos mais vulneráveis”. E a melhoria do acesso aos serviços públicos “deve fazer parte da solução para a crise na Europa, se o crescimento inclusivo que está no centro da Estratégia Europa 2020 for para concretizar”.

Neste contexto, “todos os tipos de medidas de natureza política e legal destinadas a contrariar os impactos da crise devem ter por base a promoção e a protecção da dignidade humana, o progresso do bem comum e o apoio à solidariedade”. Porque, como defende o Comité de Protecção Social, o futuro social e económico da Europa “depende fortemente da sua capacidade para acabar com a transmissão de desvantagens de geração para geração”. 

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