Num exercício prévio à ida às urnas no próximo dia 1 de Outubro, para exercerem o seu direito de voto nas eleições autárquicas, os portugueses deram voz à democracia participativa e escolheram, no primeiro Orçamento Participativo realizado a nível nacional, os projectos que mais querem ver implementados no seu país, ou na sua região. Entre áreas como a ciência, a educação ou a agricultura, a cultura distinguiu-se pelas votações na iniciativa Cultura para Todos, nos sete territórios de Portugal abrangidos no OPP, e na Rede Regional de Ludotecas, a implementar, a nível regional, no Norte do País
POR GABRIELA COSTA

“Ler é sonhar pela mão de outrem” – Fernando Pessoa, “Livro do Desassossego”

A cerca de duas semanas das eleições autárquicas, foram conhecidos, a 14 de Setembro, os 38 projectos vencedores da 1ª edição do Orçamento Participativo Portugal (OPP), uma iniciativa do Governo que cria um mecanismo de democracia participativa, e que alarga a sete territórios de Portugal – Alentejo, Algarve, Área Metropolitana de Lisboa, Centro, Norte, Região Autónoma da Madeira e Região Autónoma dos Açores – o exemplo já consolidado, por uma década de existência, do Orçamento Participativo Lisboa (ver caixa).

O OPP resulta num instrumento para melhorar a qualidade democrática através da aproximação dos cidadãos à política, e, na sua estreia, inédita a nível mundial, mobilizou milhares de pessoas, que participaram com um total de quase 80 mil votos nos projectos – nas áreas da cultura, da ciência, da educação e formação de adultos e da agricultura, no continente; e nas áreas da justiça e da administração interna, nas regiões autónomas – lançados também por cidadãos, com que mais se identificaram para melhorar o seu país e/ou a sua região.

No total, registaram-se 78 815 votos num total de 599 projectos validados, 202 de âmbito nacional, isto é, abrangendo mais que uma região do país, e 397 regionais, com impacto em mais que um município da região, distribuídos por 33 284 votos nos primeiros e 45 531 nos segundos.

[quote_center]Quase 80 mil votos dos cidadãos, em quase 600 projectos, decidiram quais as 38 iniciativas a criar de Norte a Sul do país[/quote_center]

A votação por parte dos cidadãos nos projectos do OPP decorreu entre 7 de Junho e 10 de Setembro, através do portal do OPP ou através de SMS, tendo cada cidadão direito a dois votos, um para os projectos de âmbito nacional e outro para os projectos de âmbito territorial. Isto depois da fase inicial de apresentação de propostas (que decorreu de Janeiro a Abril), durante a qual as mesmas foram discutidas em 50 Encontros Participativos (sessões de debate presencial), nos sete territórios do OPP.

Entre 24 de Abril e 12 de Maio decorreu a análise técnica das propostas e a sua transformação em projectos – com definição do valor de investimento e prazo previsível para a sua implementação – por cada um dos ministérios, secretarias regionais e demais serviços com competências nas áreas das propostas, e a 6 de Junho foi publicada a lista definitiva de projectos a votação.

Contas feitas, foram apresentadas 1021 propostas e validados 599 projectos. Aos 38 projectos vencedores (dois nacionais e 36 regionais) é atribuído um investimento que se previa inicialmente na ordem dos três milhões de euros, mas que se fixou nos 3,18 milhões, para garantir que todos eles “recebem a dotação prevista”, já que os projectos têm diferentes valores de investimento (não podendo ultrapassar os 200 mil euros), como sublinhou, no anúncio dos vencedores durante uma cerimónia realizada no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, a secretária de Estado Adjunta e da Modernização Administrativa, que tem sido o rosto do OPP.

Segundo Graça Fonseca “a ligação das pessoas aos [seus] territórios não deixa de ser muito forte”, razão que poderá justificar o facto de a Área Metropolitana de Lisboa ter sido a que menos votos obteve: 1525. Como comenta, este dado significativo “vem desmistificar a ideia de que só nos locais mais centrais é que as pessoas se mobilizam”.

[quote_center]A cultura foi a grande vencedora em número de projectos e em número de votos[/quote_center]

Os projectos da região Norte do país foram os que reuniram mais votos (18 657 votos), seguidos dos da região Centro (14 878), Alentejo (5551) e Algarve (3440). Abaixo da votação nos projectos da capital ficaram os das regiões autónomas (Açores, com 806 votos e Madeira, com 674).

Das seis centenas de propostas validadas, 288 inscreveram-se na área da cultura – a grande vencedora em número de projectos, mas também no resultado final da votação, já que para além dos projectos nacional e regional mais votados, alcançou um total de 49 057 votos, no conjunto de todos os projectos em votação -, 99 na área da agricultura (que registou 7034 votos), 97 na da ciência (11 714 votos), 96 na da formação de adultos (9126 votos), 12 na da justiça (1001 votos) e sete na da administração interna (613 votos).

Projectos vencedores da 1ª edição do OPP @ Pavilhão do Conhecimento | © DR

Cultura para Todos, o mais consensual

Conquistando um total de 6614 votos dos quase 80 mil que elegeram as propostas vencedoras do OPP, a iniciativa Cultura para Todos foi o projecto nacional preferido pelos portugueses e demais cidadãos residentes em Portugal (maiores de idade), ainda que registando menos votos que o primeiro projecto regional mais votado, a Rede Regional de Ludotecas, com 8373.

Abrangendo as zonas geográficas do Alentejo, Algarve, Área Metropolitana de Lisboa, Centro, Norte, Região Autónoma da Madeira e Região Autónoma dos Açores, este programa de incentivo da população à cultura assenta na premissa de que esta “é um pilar fundamental da educação” e “sentimento de pertença e de integração do indivíduo na sociedade”.

[quote_center]A Área Metropolitana de Lisboa foi a que menos votos obteve, o que vem desmistificar a ideia de que as pessoas só se mobilizam no centro[/quote_center]

Dotado com um orçamento de 200 mil euros, o projecto Cultura para Todos irá investir, ao longo de 18 meses (período de concretização do programa) na criação de três medidas, que visam ser os pilares da disseminação cultural a nível nacional: um programa para incentivar a doação de livros, em boas condições, por cidadãos a bibliotecas públicas. Os doadores recebem, em troca, um vale para a compra de um livro numa livraria, estimulando-se, assim, e simultaneamente, a leitura e compra de livros e a doação de obras às bibliotecas; um cheque-cultura que será oferecido a todos os jovens que completem 18 anos, para acesso gratuito a museus e espaços culturais durante um ano (medida que será complementada com vales de compra de livros, em parceria com as associações locais); e uma base de dados online e gratuita que reúna livros em suporte digital, em braille e em suporte áudio, adaptada para cidadãos portadores de deficiência.

O segundo projecto nacional mais votado foi a proposta que visa dar início ao processo de inventariação e classificação dos elementos relevantes que caracterizam a cultura tauromáquica. Com 5792 votos, Tauromaquia, Património Cultural de Portugal foi uma iniciativa aceite na área da cultura que, apesar da forte contestação nas redes sociais, por parte de vários grupos anti-touradas, reuniu consenso suficiente para se tornar no segundo projecto que abrange todas as zonas geográficas a concurso no OPP mais votado, entre um total de 202 propostas.

Implicando o trabalho de especialistas para o seu registo no inventário nacional do Património Cultural Imaterial (PCI), envolve o trabalho de cinco elementos (dois antropólogos, um historiador, um sociólogo e um economista), durante dois anos, com vista a apoiar os municípios com actividades taurinas que queiram registar as expressões tauromáquicas presentes no seu território no inventário do PCI; promover o levantamento dos elementos de referência cultural tauromáquica presentes em territórios não localizados nos referidos municípios; alargar a um âmbito nacional a cultura tauromáquica, nomeadamente através dos elementos que têm presença transversal em todo o país; e reunir a documentação necessária para registar no inventário nacional do PCI, pelo menos, duas das práticas taurinas em território nacional. O projecto terá a duração de 24 meses e conseguiu também um investimento de 200 mil euros.

© DR

Ludotecas a Norte, o mais votado

Com uns significativos (e distintivos, face aos restantes projectos votados, incluindo os de âmbito nacional) 8373 votos, a Rede Regional de Ludotecas foi o projecto mais votado de todos, e o de carácter regional eleito pelos cidadãos como o mais relevante, entre outros 398. A área da cultura conquista, uma vez mais, a preferência dos portugueses, desta vez na região Norte, zona geográfica de implementação desta proposta onde será criada uma rede de ludotecas, com o objectivo de divulgar e recuperar o jogo de tabuleiro como ferramenta lúdico-pedagógica, de socialização e integração.

[quote_center]A ligação das pessoas aos [seus] territórios é muito forte” – Secretária de Estado da Modernização Administrativa[/quote_center]

Introduzir o jogo de tabuleiro no seio familiar como ferramenta potenciadora de criação e restabelecimento de laços afectivos; apoiar lares de idosos em actividades que estimulem o exercício mental; apoiar escolas na criação de actividades alternativas geradoras de melhoramentos ao nível do raciocínio, concentração e persistência e, simultaneamente, promover o alargamento da integração inter-grupal; estabelecer protocolos de colaboração com bibliotecas municipais, associações de moradores, lares residenciais de jovens ou idosos, hospitais e centros de dia, entre outras instituições; e criar uma unidade móvel que funcione como uma ludoteca integrante, são as medidas a implementar pela Rede Regional de Ludotecas, que, atendendo aos meios e recursos a afectar, terá um investimento que não deverá exceder os 50 mil euros. O período de execução previsto é de 24 meses.

A segunda proposta eleita, entre as de âmbito regional, é o Parque Botânico de Vale Domingos, em Águeda. Recolhendo um total de 3378 votos, o projecto inscrito na área da cultura, abrangido na zona geográfica do Centro do País (e vencedor deste território), vai criar um centro pedagógico interactivo aberto a todas as pessoas, de todas as idades (incluindo pessoas com necessidades especiais), neste parque botânico já em desenvolvimento. A ambição desta iniciativa é envolver toda a população numa plantação intensiva de magnólias, transformando Vale Domingos numa aldeia turística que seja classificada como a Capital Mundial da Magnólia.

[quote_center]O projecto Cultura para Todos incentiva a doação de livros e o acesso gratuito a museus e espaços culturais[/quote_center]

Dotado com o orçamento máximo do OPP – 200 mil euros – o projecto que inscreve a formação e a logística como principais necessidades, a par de materiais como árvores e sementes, conta com as parcerias da Fundação Mata do Buçaco; da Universidade de Coimbra (Jardim Botânico); da Cerciag de Águeda; da Cruz Vermelha de Águeda; da IPSS Shalom de Vale Domingos; do Bela Vista Centro de Educação Integrada de Águeda; da Junta de Freguesia de Águeda; e da Câmara Municipal de Águeda, entre outras associações locais.

Convocar as pessoas a pensar no país

A caminho dos Encontros Participativos do OPP | © DR

Já o terceiro projecto de âmbito territorial mais votado pelos cidadãos na primeira edição do OPP foi o Centro de Interpretação para a Lagoa de Óbidos. Reunindo 1601 votos, esta proposta também integrada na região Centro, mas a primeira, entre os projectos que mereceram acima de mil votos, inscrita na área da ciência, visa criar um centro interpretativo que, tendo a Lagoa de Óbidos como tema central, permita abordar, divulgar e estudar diversas áreas do conhecimento como a ecologia, a biologia, a história, a sociologia e a etnologia.

Dedicado a esta lagoa que marca a sua presença em dois concelhos, o Centro de Interpretação deverá ter um carácter inovador, fugindo ao tipo de concepção que lhe está habitualmente associada, e criando uma estrutura dinâmica onde, para além de uma estrutura central, possam coexistir pólos temáticos disseminados pela área. Indo ao encontro do visitante, pretende-se que o Centro de Interpretação para a Lagoa de Óbidos desafie, em simultâneo, os habitantes a partilhar os seus saberes, valores e experiências.

O projecto constitui-se assim como “uma instalação de intervenção multidisciplinar, com uma vertente fortemente educativa, centrado na recolha e partilha de conhecimento, onde questões culturais, históricas e ambientais se cruzam com actividades humanas de agricultura, pesca e turismo”. Com uma duração prevista de 18 meses, a implementação desta proposta está dotada com um investimento na ordem dos 104 mil euros.

[quote_center]A Rede Regional de Ludotecas, a implementar a Norte, foi o projecto que reuniu mais votos[/quote_center]

Finalmente, na quarta posição entre os projectos de âmbito regional mais votados, com 1436 votos, está a proposta Agricultura e Cultura: Uma Relação Promissora; Intercâmbio de (Agri)Cultura. Também podia estar inscrita na área da agricultura, mas está na da cultura, esta iniciativa que, visando beneficiar a zona geográfica do Norte, propõe o intercâmbio municipal de conhecimentos culturais com experiências e conhecimentos agrícolas.

O objectivo é facultar cultura à população, facilitando, para tanto, o acesso gratuito às infra-estruturas municipais já existentes e, em simultâneo, o financiamento de grupos culturais e artísticos. Mas também promovendo o intercâmbio municipal entre concelhos agrícolas e litorais, para trazer o conhecimento e experiência na produção agrícola ao cidadão comum, nomeadamente aos jovens. E, ainda, dando exemplos práticos sobre o processo de produção, plantação e desenvolvimento agrícola. Considerando os meios e recursos a afectar a este projecto, cujo prazo de execução será de 24 meses, o investimento no mesmo não deve exceder os 25 mil euros.

Para além destes seis projectos, outros 32 mereceram, na 1ª edição do Orçamento Participativo Portugal, financiamento estatal para serem concretizados pelos cidadãos que os idealizaram. A experiência piloto, a nível mundial, segundo a secretária de Estado da Modernização administrativa, Graça Fonseca, quer “convocar as pessoas a pensar no país”, mobilizando-as para o exercício “sempre positivo”de uma cidadania responsável (como o que, se deseja, venha a acontecer a 1 de Outubro).

Já anunciado está o aumento da verba destinada à segunda edição do Orçamento Participativo de Portugal, que, de acordo com o documento aprovado em Conselho de Ministros, no final de Agosto, passará a contar com cinco milhões de euros.


© DR

Lisboetas participam democraticamente na cidade há 10 anos

Lisboa foi a primeira capital europeia a implementar um Orçamento Participativo (OP) deliberativo, através do qual os cidadãos apresentam propostas para melhorar a cidade e votam nos projectos que acreditam serem os melhores para resolver os problemas e colmatar as necessidades da capital, exercendo, assim, o seu poder de decisão sobre uma parcela do orçamento da Câmara Municipal. Visando reforçar os valores da democracia participativa, a CML lançou esta iniciativa com o objectivo de aproximar a autarquia dos cidadãos.

É já há dez anos que os lisboetas participam activamente na cidade, através do OP Lisboa, com ideias em áreas como a mobilidade e transportes, a reabilitação urbana, a habitação, o ambiente ou os direitos sociais. Na edição de 2017/18, em curso – e cuja fase de votação decorrerá entre 17 de Outubro e 22 de Novembro -, o Orçamento Participativo de Lisboa reuniu 434 propostas.

Ao longo das várias edições do OP Lisboa – que, segundo a autarquia, desde 2008 integra um crescimento quantitativo e qualitativo dos projectos apresentados, revelador da maior consciência e intervenção cívica -, os cidadãos apresentaram um total de 5770 propostas, as quais mobilizaram mais de 230 mil votos. Dos 1829 projectos que foram a votação resultaram  105 projectos vencedores. A sua implementação tem beneficiado de diversas formas a cidade, abrangendo todas as freguesias.