Apesar de termos de aprender a conviver com “o pior que ainda está por vir”, como vaticinam muitos especialistas, a vida não pode parar. E se pandemia tem trazido à luz as várias vulnerabilidades existentes nos nossos sistemas e instituições, são já muitos os que acreditam que a catástrofe que colocará 2020 no mapa da História oferece a possibilidade de se reconfigurar o mundo, tornando-o mais resiliente e sustentável. Para isso será necessário um grande “reset”, como alerta um novo livro lançado esta semana pelo presidente do Fórum Económico Mundial, Klaus Schwab, em co-autoria com Thierry Malleret, o qual marca igualmente uma iniciativa global com o mesmo nome. Saber escolher qual o melhor caminho a percorrer é o grande desafio, a par de esforços concertados entre todos os sectores
POR HELENA OLIVEIRA

Passados cerca de sete meses depois de o novo coronavírus ter aparecido na China e rapidamente se ter espalhado pelo mundo inteiro, continuam a ser mais as perguntas do que as respostas, não só sobre as características peculiares desta ameaça invisível, como também sobre as feridas abertas que deixará na sociedade. Por mais que desejemos receber notícias animadoras, a verdade é que, todos os dias, surge informação – muitas vezes contraditória – que aumenta a nossa angústia e que adia a esperança de voltarmos a ter a nossa vida de volta, algo que, para a um número crescente de cientistas e analistas, não voltará a acontecer, pelo menos nos tempos mais próximos.

De acordo com a ferramenta concebida pelo Centro para Sistemas de Ciência e Engenharia da Universidade John Hopkins, consultada por mais de 1000 milhões de pessoas por dia e considerada como o mapa mais completo sobre a infecção pelo SARS-CoV-2, no dia em que este artigo está a ser escrito (15 de Julho), existem agora mais de 13 milhões de casos a nível mundial, perto de 600 mil mortes, sendo o top 5 dos países mais afectados liderado pelos Estados Unidos, ao que se segue o Brasil, a Índia, a Rússia e o Peru, e com o Reino Unido a surgir como o país europeu que mais fatalidades acusa.

Na passada segunda-feira, e em mais uma conferência de imprensa da Organização Mundial de Saúde (OMS), o seu director-geral Tedros Ghebreyesus alertaria que sem medidas de controlo e supressão adequadas a nível governamental e em colaboração com “todos”, a pandemia “só vai ficar pior e pior e pior”. Apesar de reconhecer que muitos líderes governamentais estão a trabalhar em condições muito difíceis, tendo de equilibrar “desafios de saúde, sociais e culturais”, o responsável da OMS afirma que “demasiados países estão a ir na direcção errada” e que “os actos de muitas pessoas e governos”, em conjunto com “mensagens contraditórias” proferidas por alguns chefes de Estado e outros líderes estão “a minar os esforços para controlar a expansão” do novo coronavírus.

Assim e num clima de total incerteza face ao futuro, foi lançado esta semana o livro “Covid-19: The Great Reset”, escrito pelo fundador e presidente do Fórum Económico Mundial (FEM), Klaus Schwab, e em co-autoria com Thierry Malleret, fundador do Monthly Barometer, que explora as principais causas da crise que estamos a viver e os motivos subjacentes à necessidade de se fazer uma “grande redefinição” no mundo pós-covid , sob pena de, e se esta não for feita, “exacerbar o risco de choques violentos”, como a explosão de conflitos e revoluções de ordem variada. Este “Great Reset” não é apenas um livro, mas também uma iniciativa lançada pelo próprio FEM, assente numa plataforma colaborativa, e será, também, a temática em discussão na habitual reunião anual de líderes mundiais em Davos em 2021.

O livro, que pode ser encarado como uma análise económica mas também orientado para as políticas públicas, é o primeiro do género, sendo publicado no pico da crise mundial da Covid-19 e numa altura em que possíveis soluções médicas parecem estar ainda num horizonte longínquo.

O principal objectivo do livro é ajudar-nos a compreender o que está para vir, mesmo com todas as incertezas que caracterizam o futuro, e conta com três grandes capítulos que oferecem uma visão panorâmica do ambiente vindouro: o primeiro aborda o impacto da pandemia em cinco categorias macro, a nível económico, societal, geopolítico, ambiental e tecnológico; o segundo considera os efeitos do mesmo em termos “micro”, tendo em conta os impactos em indústrias e empresas específicas e o terceiro vaticina sobre a natureza das consequências possíveis a nível individual. E a principal mensagem partilhada pelos autores é a de que a crise sanitária global tem vindo “a ampliar as complexas falhas que já assolam as nossas economias e sociedade”, registando igualmente a existência de uma multiplicidade de inquéritos que têm mostrado “muitos desejos colectivos de mudança”. Mas como avançar para essa mudança?

“Nada nem ninguém será poupado”

Como escrevem os autores a propósito do lançamento do livro, o pior da pandemia está ainda por vir e são poucos os países que estão a conter o vírus de forma eficaz, com a maioria das nações a lutar arduamente contra a sua disseminação e muitas delas a lidarem já com o reaparecimento de novos surtos ou “segundas vagas”. Adicionalmente, e como sabemos, espera-se que com a chegada do Outono e com os casos habituais de gripe, a situação possa ficar mais caótica ainda, questionando-se a capacidade das unidades de saúde para assegurar a resposta necessária.

Schwab e Malleret recordam que, em apenas seis meses, a pandemia da Covid-19 colocou o mundo inteiro – e cada um de nós individualmente – no maior dos desafios enfrentados há décadas, considerando por isso que “este é um momento decisivo” e o início de um conjunto de consequências nefastas que irão perdurar ao longo dos próximos anos. A pandemia tem provocado (e continuará a provocar) perturbações económicas de proporções monumentais, criando novos riscos e volatilidade em múltiplas frentes – políticas, sociais, económicas e geopolíticas – ao mesmo tempo que irá exacerbar preocupações profundas já existentes relacionadas com o ambiente e estendendo o seu raio de alcance às tecnologias (que podem ser perniciosas ou não) que fazem parte da nossa vida.

Se quase nenhuma indústria ou empresa será poupada ao impacto destas alterações, com milhões de negócio em risco de desaparecer e muito sectores a enfrentarem um futuro incerto, a nível individual, a vida como a conhecíamos foi desfeita num ápice e ninguém se atreve ainda a fazer projecções das consequências desta disrupção.

Em paralelo, os problemas globais já existentes – como as divisões sociais, a falta de justiça, a ausência de cooperação, o fracasso da governação e das lideranças globais, a par da degradação crítica dos nossos bens naturais – estão expostos como nunca antes, e muitos sentem agora que pode ter chegado a altura da reinvenção. E, como fazem notar os autores, as crises agudas favorecem a introspecção e fomentam o potencial de transformação, sendo possível a emergência de um novo mundo, cujos contornos terão, contudo, de ser reimaginados e redesenhados.

Os autores do livro estão, porém, cientes de que natureza repentina e violenta do choque que a pandemia está a infligir pode fazer com que a escala deste desafio pareça avassaladora. Esta impressão deve-se em grande medida ao facto de que, no mundo interdependente e hiperligado de hoje, os riscos se amplificam mutuamente: riscos ou questões individuais abrigam o potencial de criar efeitos de ricochete provocando outros (como o desemprego que potencialmente alimenta a agitação social e o empobrecimento que desencadeia a migração involuntária em massa).

Os problemas em cascata e fora de controlo

Tendo em conta que a característica que define o mundo da actualidade é a sua “conectividade sistémica”, o “fazer ou pensar em silos” não pode ter lugar nesta reinvenção, em particular porque os riscos convergem. E todas as questões macro que exercem impactos directos e diários nas nossas sociedades, seja na economia global, na geopolítica, no ambiente ou na tecnologia, não evoluem de forma linear. Pelo contrário, funcionam como sistemas adaptativos complexos, partilhando um atributo fundamental: a susceptibilidade a assuntos em cascata fora de controlo, os quais produzem consequências extremas que muitas vezes surgem como uma surpresa e para as quais estamos mal preparados, sendo que a COVID-19 já nos deu uma boa amostra deste tipo de fenómenos.

Em grande medida, afirmam também Schwab e Malleret , ocorrências tão diferentes como o acentuado e dramático aumento do desemprego (um risco económico), a onda global de agitação social desencadeada pelos protestos do movimento Black Lives Matter (uma questão social) e a crescente fractura entre a China e os EUA (um risco geopolítico) não se teriam verificado, muito provavelmente, sem a pandemia. No mínimo, foram exacerbados por ela.

Para os autores, a concordância e a gravidade destas ocorrências significam que estamos agora num momento crítico e, como defendem, o potencial de mudança é ilimitado e limitado apenas pela nossa imaginação, seja para o melhor ou para o pior. Ou seja, as sociedades poderão estar preparadas para se tornarem mais equitativas ou ainda mais desiguais; orientadas para uma maior solidariedade ou para um maior individualismo; favorecendo os interesses de poucos ou olhando para as necessidades de muitos, e as economias, quando recuperarem, poderão ser caracterizadas por uma maior inclusão e uma maior sintonia com os nossos bens comuns globais, ou podem simplesmente regressar à actividade normal – agora revelada como tendo (de tantas formas) um status quo insustentável.

Como revelaram no webinar que marcou o lançamento do livro, “estamos numa encruzilhada”,divididos entre dois caminhos possíveis: “um que nos levará a um mundo melhor, mais inclusivo, mais equitativo e com maior respeito pela Mãe Natureza”, e outro que nos conduzirá a um mundo similar ao que acabámos de deixar para trás, “mas pior e constantemente perseguido por surpresas desagradáveis”

Mas e como questionam também os autores – sendo que a pergunta já foi feita muitas vezes face a outros desafios globais – existirá vontade colectiva suficiente para aproveitar esta oportunidade sem precedentes de reimaginar o nosso mundo, numa tentativa de o tornar melhor e mais resistente logo que for possível emergir da crise?

Esta é, sem dúvida, a questão fundamental da qual depende o sucesso do “Great Reset”. O âmbito da mudança necessária é colossal, implicando a elaboração de um novo contrato social e a formação de uma melhor colaboração internacional. “Colossal, mas longe de ser intransponível, como o demonstra o caso do investimento inteligente no ambiente”, afirmam ainda os autores.

A seu ver, o período imediato pós-crise oferece uma pequena janela para uma melhor reconstrução da economia, não desperdiçando os 10 triliões de dólares que os governos de todo o mundo estão a investir para aliviar os efeitos da pandemia COVID-19. E uma forma de investir de forma inteligente é incorporar a resiliência climática e ambiental em pacotes de estímulo e programas de recuperação.

Um paper recente para o qual o Fórum Económico Mundial contribuiu estima que a construção de uma economia com benefícios para o ambiente poderia representar mais de 10 triliões de dólares por ano até 2030 – em termos de novas oportunidades económicas, bem como de custos económicos evitados. A curto prazo, a afectação de cerca de 250 mil milhões de dólares de financiamento de estímulo poderia gerar até 37 milhões de empregos “verdes” de uma forma altamente rentável. Os autores sublinham ainda que o restabelecimento do ambiente não deve ser visto como um custo, mas sim como um investimento que irá gerar actividade económica e oportunidades de emprego e são cada vez mais as vozes a clamar por esta via como o caminho mais adequado a seguir.

As prioridades da “Grande Redefinição”

De acordo com os autores, são três as prioridades a que governos, sector privado e sociedade no geral têm de dar particular atenção.

A primeira terá como objectivo conduzir o mercado a resultados mais justos. Para tal, os governos deverão melhorar a coordenação (por exemplo, nas política fiscais e regulatórias) melhorar os acordos comerciais, e criar as condições para uma “economia das partes interessadas [stakeholders]”. Numa altura de diminuição das bases fiscais e de aumento da dívida pública, os governos têm um poderoso incentivo para prosseguir tal acção. Adicionalmente, os governos deverão implementar reformas há muito necessárias que promovam resultados mais equitativos. Dependendo do país, estas podem incluir alterações nos impostos sobre a riqueza, a retirada dos subsídios para os combustíveis fósseis, e novas regras que regem a propriedade intelectual, o comércio, e a concorrência.

A segunda componente de uma agenda de “Great Reset” asseguraria que os investimentos tivessem como objectivo metas partilhadas, tais como a igualdade e a sustentabilidade. Neste caso, afirmam os autores, os programas de despesas em grande escala que muitos governos estão a implementar representam uma grande oportunidade de progresso. A Comissão Europeia, por exemplo, revelou planos para um fundo de recuperação de 750 mil milhões de euros, sendo que os Estados Unidos, a China e o Japão têm também planos ambiciosos de estímulo económico.

Todavia, alertam, em vez de utilizar estes fundos, bem como investimentos de entidades privadas e fundos de pensões, para preencher fissuras do antigo sistema, a ideia será utilizá-los para criar um novo [sistema] que seja mais resistente, equitativo e sustentável a longo prazo. Isto significa, por exemplo, construir infra-estruturas urbanas “verdes” e criar incentivos para que as indústrias melhorem o seu historial em termos de métricas ambientais, sociais e de governação (ESG).

A terceira e última prioridade passa por aproveitar as inovações da Quarta Revolução Industrial para apoiar o bem público, abordando especialmente os desafios sociais e de saúde. Como sabemos, durante a crise da COVID-19, empresas, universidades, e outras entidades juntaram forças para desenvolver diagnósticos, terapêuticas, e possíveis vacinas, estabeleceram centros de testes, criaram mecanismos para rastrear infecções e “popularizaram” a telemedicina.

Imaginemos o que poderia ser possível se fossem feitos esforços concertados semelhantes em todos os sectores.


Para quando o regresso às “actividades normais”?

A resposta de 511 epidemiologistas é: “depende, pois é o vírus que manda”

O The New York Times pediu a 511 epidemiologistas e especialistas em doenças infecciosas que partilhassem as suas expectativas face ao regresso à vida “normal”, elencando 20 actividades que, antes da pandemia, faziam parte integrante do nosso quotidiano. E se muitos deles já se sentem confortáveis o suficiente para consultarem o seu médico, socializarem em pequenos grupos ou até recolherem o seu correio, a grande maioria alerta que, a não ser que surja uma vacina ou um tratamento, será necessário esperar pelo menos um ano para voltarem a assistir a um concerto, a um evento desportivo ou a um serviço religioso. E são vários os que garantem que não voltarão a cumprimentar as pessoas com um abraço ou um aperto de mão.

Como é explicado pelo The New York Times, as respostas recolhidas integram apenas as circunstâncias individuais de cada um dos respondentes, a sua tolerância ao risco e as expectativas relativas à disseminação dos testes, ao rastreio de contactos, tratamentos e vacinação para a Covid-19, não constituindo estas nenhum “guia orientador”. Todavia, e porque têm acesso ao manancial de dados já existente sobre o novo coronavírus, porque possuem formação específica sobre as dinâmicas das doenças infecciosas e porque são obrigados a pensar nos riscos decorrentes das mesmas, faz sentido olhar para o gráfico resultante das respostas dadas. Para além da concordância quase geral no que respeita a optar-se por actividades ao ar livre, pela presença em grupos reduzidos de pessoas e pela utilização de máscaras durante um período que se espera longo, as respostas apresentam alguma variabilidade. Os comportamentos considerados como tendo um risco acrescido incluem a presença em casamentos ou funerais, os abraços e os apertos de mão, socializar com quem não se conhece bem e assistir a uma cerimónia religiosa. Como afirmam, isto não é uma questão de calendário e tudo dependerá de uma quantidade significativa de variáveis. Ou seja, a vida “em pausa” continuará a ser norma.

Veja aqui a “classificação” das 20 actividades analisadas ou leia o artigo na íntegra [em inglês ou espanhol]


Editora Executiva