Campanhas de desinformação, lideradas por agências governamentais ou por partidos políticos, estão a aumentar significativamente num conjunto crescentemente alargado de países. A utilização das plataformas sociais para “moldar” a opinião pública, para oprimir direitos humanos ou para abafar opiniões dissidentes é cada vez mais uma realidade no mundo digital e a informação falsa é disseminada deliberadamente através de estratégias aprimoradas que contam com os avanços céleres na tecnologia. De acordo com a Universidade de Oxford, são pelo menos 70 os países que sofrem deste tipo de desinformação e o Facebook é o veículo por excelência para a propagar
POR HELENA OLIVEIRA

Um número crescente de países foi alvo de campanhas coordenadas de manipulação de informação nos media sociais. Em 2017, os dados apontavam para 28, em 2018, para 48 e, de acordo com um relatório – The Global Disinformation Order – publicado a semana passada pela Universidade de Oxford, este ano o número de países que sofreu este tipo de campanhas de desinformação ascendeu aos 70.

Apesar de a propaganda sempre ter feito parte do discurso político, estas novas campanhas, realizadas por “ciber-tropas” [do inglês, cyber troops], definidas como actores governamentais ou partidários cuja função é a de manipular a opinião pública online, estão a aumentar de forma preocupante a nível global e, através das plataformas sociais, a fabricar “consensos”, a automatizar a repressão e a minar a confiança na ordem internacional liberal. Ou seja, a utilização de propaganda “computacional” que visa moldar as atitudes públicas através dos media sociais está a tornar-se numa prática comum por parte de muitos governos mundiais e a ir bem mais além do que acções isoladas por parte de actores perniciosos. O estudo em causa inclui também regimes autoritários que estão a reprimir os direitos humanos ou a “abafar” opiniões dissidentes da mesma forma. E, se há uma grande conclusão a retirar deste estudo é a de que estas campanhas de desinformação, nas quais a informação falsa é deliberadamente disseminada para enganar e ludibriar, estão para ficar e num número crescente. 

De acordo com o relatório, que inclui 70 países – desde Angola, China, Rússia, Brasil ou Alemanha, Holanda e Espanha -, no ambiente actual caracterizado por elevados volumes de informação e níveis limitados de atenção por parte dos utilizadores, as ferramentas e técnicas da propaganda computacional estão a transformar-se numa parte comum – e essencial – das campanhas digitais e da diplomacia pública. 

O estudo evidencia a existência de campanhas de manipulação organizadas nos media sociais nestes 70 países, sendo que os 22 novos estreantes face ao ano passado estão a experimentar as ferramentas e técnicas da propaganda computacional durante os seus períodos eleitorais ou como uma nova forma de controlo de informação. A pesquisa, que dura mais intensamente há três anos, identificou um número significativo destes casos de propaganda, os quais revelam um aumento de 150% face a 2017, e os dados que agregaram permite evidenciar que muitos países exibiram elementos de manipulação organizada ao longo da última década, o que leva os autores do estudo a afirmar que este tipo de propaganda se tornou ubíquo e uma parte abrangente do ecossistema de informação digital. 

Por seu turno e em muitos regimes autoritários, a propaganda computacional transformou-se numa ferramenta de (des)informação que é estrategicamente utilizada em combinação com a vigilância, a censura e as ameaças de violência. Os autores catalogaram os tipos de campanhas que os regimes autoritários utilizaram contra jornalistas, dissidentes políticos e contra a sociedade em geral e afirmam que estas são usadas como forma de reprimir os direitos humanos fundamentais, desacreditar a oposição política e “fazer calar” os dissidentes políticos. 

Apesar de existirem cada vez mais plataformas, o Facebook permanece como a que é dominante para a actividade das “ciber-tropas”, facto que se explica não só pela sua gigantesca quota de mercado, mas também pelas próprias especificidades que o definem, como a comunicação com família e amigos, enquanto fonte de notícias políticas e informação de ordem variada, ou a possibilidade da formação de grupos e páginas. Por seu turno, desde 2018 que os autores do estudo têm vindo a recolher evidências de níveis maiores de actividade em plataformas de partilha de imagens e vídeos, como o Instagram e o YouTube, tendo também encontrado campanhas geridas por estas ciber-tropas no WhatsApp, o que sugere que este tipo de plataformas irá crescer em termos de importância ao longo dos próximos anos à medida que mais pessoas utilizarão as tecnologias das redes sociais para a comunicação política.

Desacreditar, dissuadir, impedir e provocar a disrupção

Apesar de os países estarem a testemunhar um aumento em termos de propaganda computacional nos media sociais, a atribuição da mesma a um actor em particular é difícil.

Como já referido, o relatório em causa tem como enfoque as actividades das ciber-tropas, sendo que em 44 países analisados foram encontradas evidências de agências governamentais a utilizar a propaganda computacional para moldar as atitudes públicas. Esta categoria de actores inclui ministérios de comunicação ou digitais ou campanhas lideradas por militares. Nos países considerados como “não livres” [de acordo com a Freedom House], foram também encontradas evidências que apontam para este tipo de propaganda por parte de ministérios dos governos ou dos partidos no poder para influenciar a opinião a nível doméstico. O relatório dá o exemplo das actividades perpetradas pelo denominado Joint Threat Research Intelligence Group no Reino Unido, que criaram grupos no Facebook e vídeos no Twitter para “desacreditar, promover a desconfiança, dissuadir, impedir, retardar e provocar disrupção”, com actividades similares a serem igualmente reportadas para os Estados Unidos, de que é exemplo a United States Agency for International Development que criou uma rede social falsa em Cuba. 

Para além de iniciativas lideradas pelos governos ou forças militares, o estudo considerou igualmente as actividades dos partidos políticos. Em 45 dos 70 países analisados, foram encontradas evidências de partidos políticos ou políticos individuais que utilizaram também ferramentas e técnicas de propaganda computacional durante as eleições. Os exemplos incluem a agregação de seguidores falsos, como foi o caso de Mitt Romney nos Estados Unidos, Tony Abbott na Austrália ou Geert Wilders na Holanda. Foram encontrados também casos de partidos a utilizarem publicidade para atingir eleitores através de media manipulados ou de micro-targeting ilegal como a utilização da famosa, pelos piores motivos, Cambridge Analytica, no referendo sobre o Brexit no Reino Unido. Partidos políticos a disseminarem ou amplificarem desinformação nas redes sociais constituem também alguns exemplos encontrados como as campanhas no WhatsApp por parte do Brasil, da Índia e da Nigéria.

Uma característica importante da organização destas campanhas de manipulação é o facto de estas ciber-tropas trabalharem muitas vezes em conjunto com a indústria privada, com organizações da sociedade civil, subculturas da Internet, grupos de jovens, colectivos de hackers, movimento marginais, influenciadores sociais e voluntários que, ideologicamente, apoiam as suas causas. Em 25 dos 70 países analisados foram encontradas evidências de actores estatais a trabalhar com empresas privadas ou com firmas de comunicação estratégica que oferecem propaganda computacional como um serviço do seu cardápio. E, em países como o Azerbaijão, Israel, Turquia, Rússia ou Uzbequistão, grupos de jovens ou de estudantes são igualmente contratados pelas agências governamentais para a realização de propaganda computacional. 

Estratégias de desinformação

As contas falsas constituem uma das formas preferenciais para as ciber-tropas disseminarem este tipo de propaganda. Ao longo dos últimos três anos, os responsáveis por este estudo da Universidade de Oxford identificaram a prevalência de três tipos de contas falsas: bots, humanas e cyborgs. Os bots consistem em contas extremamente automatizadas e desenhados para mimetizarem o comportamento humano online e são geralmente utilizadas para amplificar narrativas particulares ou  para abafarem dissidências políticas, com 50 países em 70 a utilizarem-nos com frequência. Contudo, ainda mais comuns que os bots são as contas geridas por humanos, que não utilizam qualquer tipo de automação, mas que se envolvem em conversas através da publicação de comentários ou tweets, ou enviando mensagens privadas aos indivíduos através das plataformas sociais. Contas operadas pelos humanos foram encontradas em 60 (87%) dos países auscultados. As contas cyborg, por seu turno, misturam a automação com a curadoria dos humanos e são usadas por 11% dos países que integram o estudo.

Para a pesquisa deste ano, a Universidade de Oxford adicionou também contas pirateadas ou roubadas à sua tipologia de contas falsas. Apesar de estas contas não serem falsas per se, são utilizadas estrategicamente pelas ciber-tropas para disseminar propaganda pró-governamental ou para censurar a liberdade de expressão, retirando o acesso às mesmas por parte dos seus verdadeiros donos. Um pequeno número de agentes estatais (7%) começou a usar contas roubadas ou pirateadas como parte das suas campanhas, misturando a interconectividade da propaganda computacional com formas mais tradicionais de ciber-ataques.

As ciber-tropas utilizam uma variedade de mensagens e de estratégias de valência quando comunicam com os utilizadores online. A valência descreve quão atractiva ou não é uma mensagem ou um evento em causa. Como informa o estudo, 71% dos países analisados disseminam propaganda pró-governamental ou partidária, 89% utilizam a propaganda computacional para atacar a oposição política e 34% propagam mensagens polarizadas concebidas para gerar divisões no interior das sociedades, sendo também comum a inibição da participação online através de ataques pessoais ou assédio. 

No interior das estratégias de comunicação veiculadas pelas ciber-tropas, foram assinaladas quatro categorias por excelência: a criação de desinformação ou a manipulação dos meios de comunicação, a divulgação massificada de conteúdos ou de contas, estratégias impulsionadas por dados e a ampliação de conteúdos através dos meios de comunicação. A criação de desinformação ou a manipulação dos meios de comunicação é a estratégia mais comum. Em 52 dos 70 países em causa (75%), as ciber-tropas criaram activamente conteúdos como memes, vídeos, websites de notícias falsas ou meios de comunicação manipulados para ludibriar os utilizadores. Por vezes, estes conteúdos criados pelas ciber-tropas têm como destinatários comunidades específicas ou segmentos particulares de utilizadores. Ao utilizarem fontes online e offline de dados sobre os utilizadores e através do pagamento de publicidade em plataformas sociais populares, as ciber-tropas chegam exactamente às comunidades que desejam desinformar ou manipular. 

Propaganda computacional já é um grande negócio

Apesar de a informação pública sobre a dimensão e as operações perpetradas pelas ciber-tropas ser limitada, os autores do estudo afirmam “começar” a ter uma ideia bem formada no que respeita aos orçamentos existentes para estas campanhas de propaganda, a forma como cooperam e os tipos de competências e comportamentos organizacionais que as mesmas assumem. 

No que respeita à dimensão e permanência das equipas de ciber-tropas, estas são bastante variáveis de país para pais. Em alguns deles, aparecem temporariamente em tempo de eleições ou em alturas em que é “necessário” moldar as atitudes públicas em torno de eventos políticos importantes. Em outros, as ciber-tropas estão integradas nos próprios meios de comunicação social com equipas contratadas a tempo inteiro para controlar, censurar e configurar as conversas e a informação online. Algumas equipas são compostas por um conjunto reduzido de pessoas que gerem centenas de contas falsas, sendo que em países como por exemplo a China, o Vietname ou a Venezuela, equipas extensas de pessoas são contratadas pelos estados para modelarem as opiniões públicas e o discurso das polícias através de canais online.

De acordo com o estudo, a propaganda computacional assume-se como um grande negócio. Os autores encontraram evidências de largas somas de dinheiro gastas em campanhas de “Relações Públicas” ou em firmas de comunicação estratégica em países como as Filipinas, Guatemala e Síria, sendo que estes contratos podem variar de somas pouco significativas cobradas por firmas regionais até contratos de vários milhões de dólares com contratos com empresas globais como a Cambridge Analytica. A ascensão da “indústria troll” é uma área de interesse académico e público crescente e deve ser seguida no futuro tanto em termos jornalísticos como de investigação, alerta também o estudo.

No que respeita à difusão de competências e conhecimento, esta faz-se tanto formal como informalmente. A investigação da Universidade de Oxford refere que, durante as investigações sobre a actividade das ciber-tropas em Mianmar, comprovou-se que os militares tinham sido treinados por operacionais russos sobre como utilizar os media sociais, o mesmo acontecendo com as ciber-tropas no Sri Lanka, as quais receberam formação formal a partir da Índia. Emails não intencionalmente divulgados demonstraram também evidências de que a Information Network Agency na Etiópia enviou membros do seu staff para receberem formação na China. Para os autores, e apesar de existirem ainda muitas falhas de conhecimento na forma como as competências em propaganda computacional se está a difundir globalmente, esta é também uma área que merece investigações futuras. 

As ciber-tropas com elevada capacidade, afirma também o estudo, envolvem um alargado número de colaboradores e orçamentos pesados em operações psicológicos e em informação bélica. Estima-se que existam igualmente fundos significativos gastos em investigação e desenvolvimento, bem como evidências de uma multitude de técnicas que estão a ser utilizadas de forma crescente. Estas equipas não operam apenas em períodos eleitorais, envolvendo, ao invés, um staff a tempo inteiro dedicado a delinear todo o espaço de informação. Estas equipas de elevada capacidade operam não só a nível nacional, mas também a nível internacional e existem na China, Egipto, Irão, Israel, Rússia, Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Síria, Venezuela, Vietname e nos Estados Unidos. 

O estudo apurou ainda os países que mais desinformação utilizam para influenciar outros estados, sendo que a lista não é, de todo, uma surpresa: China, Índia, Irão, Paquistão, Arábia Saudita e Venezuela. Todavia, é a China que se assume como o maior dos players nesta “ordem de desinformação global”, como lhe chamam os autores. Até aos protestos de Hong Kong em 2019, a propaganda chinesa era, na sua maioria, confinada a plataformas domésticas como a Weibo e a WeChat. Mas está agora a utilizar, e agressivamente, o Facebook, o Twitter e o YouTube, o que deverá preocupar as democracias de todo o mundo, alertam igualmente os responsáveis pelo estudo. 

Em suma, a propaganda computacional transformou-se no “novo normal” na esfera digital pública. E as suas técnicas irão continuar a evoluir à medida que as novas tecnologias – incluindo a Inteligência Artificial, a Realidade Virtual e a Internet das Coisas – se posicionarem para reformular fundamentalmente a sociedade e a política. 

É verdade que uma democracia forte exige o acesso a informação de elevada qualidade e a capacidade dos cidadãos se juntarem para debaterem, discutirem, deliberarem e fazerem concessões, tudo isto passível de ser um realidade comum às plataformas sociais. Mas será que estas estão mesmo a criar espaço para a deliberação pública e para a democracia? Ou são cada vez mais responsáveis por amplificar conteúdos que mantêm os cidadãos perdidos, desinformados e irados?

Editora Executiva