Em 1765 havia um organista talentoso na capela de Bath. Era um alemão de 27 anos apaixonado pela música e pela matemática. Num dia jamais especificado desse mesmo ano da graça, recebeu uma oferta de um telescópio, e assim que os imprevisíveis céus ingleses lhe concederam uma noite descoberta, juntou a óptica ao conjunto dos seus interesses, pois a quantidade de estrelas que viu e a grande variedade de cores que o pasmou encaminharam-no para um achado espantoso
POR PEDRO COTRIM

Voltaremos a este senhor daqui a pouco. O mundo cresceu com os sete planetas que se vêem nestes dias do fim de Junho 2022 pela alba. Sete, pois, que a Terra não estava no céu, e sete porque Sol e Lua entravam nestas contas desde há milénios. E sete sempre foi um número místico. Jamais postos em causa os planetas, poucas vezes posta em causa a sua influência sobre as pessoas, pois que até Kepler, Brahe e Galileu dispuseram o seu saber sob as doutrinas da astrologia. Copérnico, o eclesiástico Copérnico, sempre duvidou dos poderes sobrenaturais dos planetas e dos signos e é óbvio que a história lhe deu razão. Estabeleceu o sistema heliocêntrico, mas enfrentou ferozes críticas da Igreja e dos outros cientistas.

Este cónego polaco propôs que algumas irregularidades observadas nos movimentos dos planetas através das constelações se deviam ao facto de a própria Terra se estar a deslocar, e uma vez que as estrelas não mostravam estes caprichos, Copérnico explicou que em vez de estarem um pouco além dos planetas, conforme os astrónomos supunham, estavam tão (preencher com um advérbio de modo) distantes que o movimento da Terra pouco significava em relação a elas. Vistas da Terra, aparecem como pontos de certos tamanhos ou magnitudes, e a única forma de estarem às (preencher com um adjectivo) distâncias propostas por Copérnico era serem maiores que o Sol. Os outros astrónomos ficaram abesbílicos com a ousadia do padre. Ao clero agradou a questão de
detractar a astrologia, pois o livre arbítrio sempre foi uma proposta de Cristo, mas desagradou questão do Sol no lugar da Terra. Tudo se veio a compor um pouco mais tarde.

Mas uma coisa eram as distâncias, outra coisa eram os corpos mais próximos, e estes sete eram absolutamente canónicos. Mas adiantemo-nos a Copérnico e Kepler e regressemos ao final do século XVIII. Independência dos EUA, Revolução Francesa, primórdios da Revolução Industrial, Pedro o Grande na Rússia, Pequena Idade do Gelo que punha neve em Lisboa alguns dias por ano e gelava o Sena e o Tamisa de modo a se poder patinar e fazer feiras, o balão dos Montgolfier, mais uma anexação russa da Crimeia e demais dias da história, dias em que viveram os pais e os avós dos avós dos nossos bisavós. E o organista de Bath chamado William Herschel.

Recordemos ainda um pormenor não despiciendo no que se vai revelar: a fotografia ainda tardou até à década de vinte do século XIX e acrescentemos ainda que foi Herschel quem descobriu a radiação infravermelha, sendo portanto dois pormenores e não um, afinal, e que muitos mais se poderiam adicionar à vida espantosa de William Herschel. Para o fim que temos em vista, vale a pena, e por último, relatar que ao pequeno óculo de 1765 foi juntando uma plêiade de instrumentos. Em 1774 construiu um telescópio com um espelho de um metro e meio de diâmetro e vasculhou os céus sistematicamente.

No começo de 1781 reparou numa «estrela» azulada de magnitude 6, que corresponde às estrelas mais ténues que se podem ver numa noite longe da poluição luminosa e sem lua a atrapalhar. Trata-se efectivamente de um grão de areia no ventre do cosmos a olho nu. Era uma «estrela» azulada que se movia devagar e que estava então em Gémeos. Mudando as oculares ao telescópio, que a óptica ensina que com o aumento da ampliação se perde poder de resolução, pois menos luz é recolhida, sendo mais fácil procurar o que quer que seja num aparelho que nos mostre um grande campo. Com sucessivas ampliações e trabalho ampliado, percebeu um contorno no ponto, ausente nas estrelas. Herschel jurou que era um cometa, pois muitos anos de sete planetas devem tornar inconcebível a descoberta de mais um.

O dia ficou registado na história da ciência como 13 de Março de 1781, mas ainda não era o totalmente novo que veio a ser. A um artigo que publicou a propósito na Royal Society no dia 26 de Abril, Herschel chamou Account of a Comet. Para ele e para todos, era disso que se tratava.

O nome deste músico astrónomo repetiu-se pela Europa, com o «sch» alemão transformado nas grafias dos outros idiomas. Quem era afinal este compositor que compunha também nos céus? Os astrónomos tentaram seguir a órbita acentuadamente elíptica daquele novo cometa, mas não obedecia a nenhum pressuposto. Os meses passaram e a suspeita de se tratar de um novo planeta não foi suscitada muitas vezes. Saturno era o guarda dos limites do Sistema Solar há demasiado tempo, e se marcar novas fronteiras nas topografias terrestres era empreitada frequente, mas custosa, nos céus não fazia qualquer sentido.

Mas era um planeta e as confirmações foram chegando, e subitamente o Sistema Solar deu um salto de quase 1500 milhões de km. A distância de Saturno a Úrano, quando estão os dois alinhados com o Sol e «do mesmo lado», é cerca de 10 vezes maior que a distância da Terra ao Sol. Talvez chegue para comparação.

A questão seguinte teve apenas a ver com o baptismo do planeta. Na comunidade científica quis-se dar-lhe o nome do astrónomo, mas William Herschel nunca achou bem, tendo contraproposto Georgium Sidus, a «estrela de Jorge», homenageando deste modo o rei que lhe patrocinou os trabalhos. Houve ingleses que lhe quiseram chamar Neptuno, arranjando um significado celeste para o grande império marítimo, mas surgiu a ideia de Úrano, pai de Saturno e avô de Júpiter, sendo sucessiva a ordenação cronológica familiar.

Já passaram muitos anos desde 1781. Quando a humanidade se julga no apogeu da maioridade, um novo pressuposto abala tudo e exige que se repense o que se pensa. Os grandes teóricos da ciência já nos ensinaram o caminho, e Kuhn e Popper serão sempre incontornáveis, e Descartes, na Parte Sexta do Discurso do Método afirma vigorosamente: «Pela minha parte, se tenho até ao presente encontrado algumas verdades nas ciências (e espero que o conteúdo deste volume possa constituir uma prova), posso afirmar que não são mais que os resultados e as consequências de cinco ou seis dificuldade principais que ultrapassei, e às quais conto por igual número de batalhas em que tive a sorte a meu favor».

Descartes morreu 88 anos antes de Herschel nascer. Galileu foi contemporâneo de Descartes, mas viveu muito mais que o francês. Nem um nem outro sonharam com Úranos ou Neptunos, e ainda menos com outras galáxias para lá da nossa e que apenas apareceram em 1923 pelo olho de Edwin Hubble, e também a ideia de um Big Bang antes de tudo. Chegou-se mais depressa a Andrómeda que a Plutão, o que pode ser de pasmar mas que deixa de o ser quando se estudam ambas as descobertas. No próximo ano a descoberta da galáxia vizinha será centenária.

Os dias não se detêm. Costumamos dizer que a tempestade ruge, mas o que ruge é a rotação da Terra. Usamos tempo para a atmosfera e para a cronologia, tal como franceses e espanhóis. Provavelmente um uso da antiguidade que fazia corresponder o tempo que fazia numa parte do ano, mas isso será tarefa dos linguistas. Em bom português costumamos dizer «Depressa vai o tempo que depressa vem». E daqui a dez dias entramos na segunda parte de 2022. Uma da manhã do dia 2 de Julho. Ainda por cima é sábado: vai uma contagem decrescente e champanhe para este ½?

Pedro Cotrim

Editor