Portugal apresenta os níveis de incidência de bullying mais elevados, entre os quatro países avaliados no “State of the Art Report on Bullying in Children’s Residential Settings”, que analisa a realidade do bullying e do contexto de acolhimento institucional de crianças e jovens. Comparando as políticas, procedimentos e práticas existentes sobre esta matéria no nosso país, em Espanha, Reino Unido e Irlanda, o estudo do projecto Houses of Empathy conclui que não existem estratégias de intervenção adaptadas a casas de acolhimento, mas apenas em ambiente escolar
POR GABRIELA COSTA

“O Bullying é um comportamento que envolve agressão ou ameaças intencionais e repetidas, sem motivo evidente” – A. Vale, 2009 “Bullying. Curso de especialização em psicologia escolar”

Cerca de um terço das crianças e jovens europeus já vivenciou situações de bullying, seja como vítima ou como agressor, a avaliar pelos mais recentes dados disponíveis sobre esta matéria. Portugal é um dos países que apresenta níveis de incidência de bullying mais elevados. Sem motivo evidente, como refere o autor A. Vale, perpetua-se a agressão e a ameaça, de forma intencional e repetida. Numa realidade que afecta principalmente as crianças institucionalizadas, um dos grupos mais susceptíveis ao bullying.

Para compreender este fenómeno, o “State of the Art Report on Bullying in Children’s Residential Settings” reúne informações acerca da realidade do bullying e do contexto de acolhimento institucional de crianças e jovens em quatro países – Portugal, Espanha, Reino Unido e Irlanda -, parceiros do projecto Houses of Empathy (HofE), que coordena este relatório.

O trabalho resulta de um projecto de cooperação internacional desenvolvido pela Associação Par – Respostas Sociais, em colaboração com três organizações parceiras, a espanhola Asociación Hechos, a Voice of Young People in Care, no Reino Unido, e a irlandesa Sticks & Stones, as quais participam no desenvolvimento e implementação do HofE.

Visando alargar o conhecimento e melhorar práticas para reduzir a elevada taxa de violência entre crianças institucionalizadas, desenvolvendo competências sociais e empáticas nas crianças e proporcionando formação aos profissionais e voluntários das Casas de Acolhimento de Crianças e Jovens (CACJ), o projecto-piloto fundado pelo programa Europeu DAPHNE ambiciona também promover a consciencialização social acerca do bullying em crianças institucionalizadas e contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas dedicadas à sua prevenção, neste contexto.

[quote_center]Em média, um terço das crianças europeias já se envolveu em situações de bullying, como vítima ou agressor[/quote_center]

Avaliando as políticas, procedimentos e práticas existentes sobre esta matéria na realidade dos países parceiros, a partir das informações disponibilizadas pelas quatro organizações, a publicação de 2016 é um dos primeiros frutos desta cooperação, contribuindo para contrariar a escassez de informação disponível sobre intervenção no bullying em CACJ. E a verdade é que “a maioria das políticas e programas encontrados e analisados no âmbito desta pesquisa estão relacionados com a prevenção do bullying em contexto escolar”. Uma das principais conclusões do relatório incide na constatação, pelas organizações parceiras do HofE de que a maioria dos programas direccionados ao bullying são concebidos para o ambiente escolar, o que gera a necessidade de desenvolver estratégias inovadoras de intervenção adaptadas a CACJ.

Destinada a todos os envolvidos no contexto da protecção de crianças e jovens, desde os responsáveis pelo desenvolvimento de políticas até aos profissionais que trabalham directamente com crianças e jovens em casas de acolhimento, a análise integra informação geral sobre o conceito de bullying e dados estatísticos em cada um dos países parceiros do HofE e no contexto europeu, com uma perspectiva crítica sobre a forma como as CACJ estão organizadas em cada um deles, e como lidam com situações de bullying.

O relatório explora ainda possíveis abordagens a esta problemática em CACJ. A complementá-lo, está disponível o Best Practices Guide on Bullying Prevention and Intervention in Children’s Residential Settings, que apresenta algumas das mais recentes abordagens na prevenção e intervenção em situações de bullying em escolas e em CACJ (ver caixa):


Quanto mais velhos mais perpetradores

Segundo uma pesquisa da EU Kids Online (rede internacional que promove o estudo das oportunidades, riscos e segurança dos ambientes digitais para as crianças), 31% das crianças europeias estiveram envolvidas em situações de bullying, em 2011, sendo que 19% foram alvos e 12% cometeram actos de bullying, no ano anterior.

Embora a prevalência para ser vítima de bullying tenha decrescido significativamente com a idade, tanto entre rapazes como entre raparigas, na maioria dos 38 países e regiões do mundo avaliados no estudo Health Behaviour in School-Aged Children (HBSC) de 2009/2010, realizado com crianças com idades compreendidas entre os 11 e os 15 anos, a prevalência para adoptar comportamentos de bullying (enquanto perpetrador) aumentou significativamente com a idade (rapazes em metade dos países e regiões estudadas; raparigas em menos de metade dos países e regiões estudadas).

[quote_center]O fenómeno está a diminuir em 14 países, mas mantém uma prevalência elevada em todas as idades[/quote_center]

Em quase todos estes países o sexo masculino, mais do que o feminino, afirmou ter cometido bullying e são também os rapazes o alvo mais frequente desta prática. O fenómeno está a diminuir em 14 países, mas mantém uma prevalência elevada em todas as idades.

Portugal apresenta os níveis de incidência de bullying mais elevados, entre os quatro países parceiros do HofE. A percentagem média para alvos de bullying com 11, 13 e 15 anos (pelo menos duas vezes nos últimos 2 meses), calculada pelo HofE com base nos dados disponíveis no estudo HBSC 2009/2010 atinge os 14,5% em Portugal (rapazes 17,3%, raparigas 11,6%); contra 9,8% em Inglaterra (rapazes 9,3%, raparigas 10,3%); 9,2% na Irlanda (rapazes 11,3%, raparigas 7%); 9,2% na Escócia (rapazes 9,7%, raparigas 8,7%); 8,8% no País de Gales (rapazes 9,3%, raparigas 8,3%) e 6% em Espanha (rapazes 7,7%, raparigas 4,3%).

Já os actos de bullying contra outros nas idades 11, 13 e 15 anos (pelo menos duas vezes nos últimos 2 meses) são praticados por 9,5% destes jovens em Portugal (rapazes 13%, raparigas 6%); uma percentagem bem mais elevada que nos restantes países: Espanha – 6,7% (rapazes 9%, raparigas 4,3%); Escócia 4,8% (rapazes 6,3%, raparigas 3,3%); Inglaterra 4,4% (rapazes 6,7%, raparigas 2%); Irlanda 4% (rapazes 6%, raparigas 2%); País de Gales 2,5% (rapazes 3,7%, raparigas 1,3%).

[quote_center]A percentagem média para alvos de bullying calculada pelo HofE atinge os 14,5% em Portugal, muito acima dos restantes países europeus[/quote_center]

Numa análise à realidade de cada país parceiro do HofE, constata-se que na Irlanda, 31% dos estudantes do ensino primário e 16% dos estudantes do ensino secundário têm sido alvo de bullying. Segundo o Estudo Nacional sobre Comportamentos de Bullying nas escolas Irlandesas conduzido pela Trinity College Dublin, do total de estudantes Irlandeses, 23% (200 mil crianças) estão em risco de se tornarem alvos de bullying. 74% das crianças do ensino primário declararam ter experienciado bullying no recreio, mas no ensino secundário os incidentes em sala de aula e nos corredores (47% e 37%, respectivamente) superam os 27% que têm lugar no recreio.

Dados também citados no relatório, mas relativos a Espanha, revelam que actualmente 23% dos alunos do ensino primário e secundário são alvo de bullying. De acordo com o Instituto de Inovação Educativa, uma quase maioria de 43% das crianças e jovens entre os 12 e os 25 anos que são alvo de bullying tiveram pensamentos de suicídio, e 17% tentou mesmo cometer suicídio. Em 2005, o estudo Cisneros concluiu que 39% dos estudantes entre o 2º ano do primeiro ciclo e o 2º ano do Bachillerato (em Espanha, considerado o período escolar pré-universitário) foram expostos a algum tipo de violência na escola. 24% dos estudantes sofreram bullying, principalmente as crianças mais novas e os rapazes. Uma nova análise nacional, em 2006, mostrou que apesar de a incidência em alguns dos comportamentos estudados estar a decrescer, os comportamentos violentos tinham ainda uma forte prevalência.

Já os dados para o Reino Unido fornecidos pela investigação periódica sobre os níveis e motivações para o bullying nas escolas, comissionada pelo Departamento da Educação da Irlanda do Norte, especificamente para aquela nação, detalham que, em 2011, 39% das crianças do 6º ano e 29% das crianças do 9º ano vivenciaram bullying na sua escola, nos dois meses anteriores. E 21% dos alunos do 6º ano e 21% dos alunos do 9º ano praticaram actos de bullying contra outros alunos, também nos dois meses anteriores. Não obstante “as políticas de tolerância zero serem adequadas em alguns contextos”, o relatório de 2016 sobre bullying da Ditch the Label recomenda “a implementação de técnicas de mediação e de justiça restaurativa sempre que possível”.

Perfil em acolhimento faz vítimas

Em Portugal, dados do estudo internacional Health Behaviour in School-Aged Children demonstram que, entre 2002 e 2012, o número de perpetradores manteve-se estável e que o número de crianças alvo de bullying decresceu. No entanto um estudo de Seixas, Coelho e Fischer, de 2013, revelou que a incidência do bullying poderia estar a aumentar, afectando já 40% dos alunos. O sexo masculino encontra-se mais frequentemente envolvido em episódios de bullying do que o feminino, tanto como perpetrador como no papel de alvo, “o que é consistente com outros estudos”, afirmam os autores do Relatório do Estado da Arte sobre Bullying em Casas de Acolhimento de Crianças e Jovens.

O estudo realizado com adolescentes com idades compreendidas entre os 12 e os 17 anos revela que os perpetradores são mais autoconfiantes e sentem-se menos rejeitados e incapazes que as crianças alvos de bullying. Ao contrário dos perpetradores-alvos, que apresentam um perfil inconsistente, oscilando entre uma auto-estima e autoconfiança elevadas e o sentimento de fraqueza e rejeição.

O estudo revela ainda que, em 2013, apenas 57,8% de estudantes não estiveram envolvidos em comportamentos de bullying, 17,9% eram perpetradores, 17,2% eram alvos e 7,1% eram perpetradores-alvos. De acordo com estes resultados, as crianças e jovens envolvidos em comportamentos de bullying têm mais dificuldades de ajustamento; e são os rapazes quem mais frequentemente assume comportamentos de alvo ou agressor.

[quote_center]As agressões contra outros são praticadas por 9,5% dos jovens em Portugal, também bem acima da média[/quote_center]

O recreio da escola é o principal ‘local do crime’, como também concluiu outro estudo (Pereira, 2004), segundo o qual esta realidade se deve à “falta de atenção dada a estes espaços”, com “pobre estrutura e manutenção”, recomendando tornar estes locais atractivos e com actividades de tempos livres.

No nosso país, e legalmente, não existe o crime de violência na escola. Entre os instrumentos jurídicos em vigor para combater estes comportamentos encontram-se o Estatuto do Aluno e da Ética Escolar (Lei nº 51/2012), que estabelece um conjunto de direitos e deveres para os alunos relativamente ao bullying e define que medidas podem ser tomadas em casos de bullying, para perpetradores mas também por professores, pais e órgãos escolares.

Para além das medidas de prevenção e de intervenção no bullying do Ministério da Educação, vários projectos nacionais contribuem para promover a segurança nas escolas públicas portuguesas – o Estatuto e regulamento escolar; o Programa Escola Segura; o Segur@net – Projeto de segurança na internet ou o projecto da Comissão Nacional de Protecção de Dados. Em 2015 foi criada a primeira associação Anti-Bullying em Portugal, a A.A.B.C.J., com o objectivo de pesquisar e intervir no fenómeno.

Por outro lado, o nosso país segue linhas orientadoras de protecção, nacionais e internacionais, relativamente à protecção de crianças e jovens, como a convenção da Organização das Nações Unidas sobre os direitos das crianças e a convenção sobre a protecção infantil e a adopção internacional. E a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Risco é aplicada quando crianças e jovens até aos 18 anos de idade se encontram em situação de perigo que coloque em causa a sua segurança, saúde, educação ou desenvolvimento.

[quote_center]O sexo masculino encontra-se mais frequentemente envolvido em episódios de bullying, tanto como perpetrador como no papel de alvo[/quote_center]

O sistema nacional de acolhimento de crianças e jovens em risco está organizado em acolhimento de emergência (urgente e transitório, não deve prolongar-se mais que 48 horas); acolhimento temporário (para crianças e jovens que precisam ser temporariamente separados da sua família, tipicamente seis meses); e acolhimento prolongado (para crianças ou jovens que são alojados em CACJ, podendo ser definitivo).

Os projectos de vida para crianças e jovens em casas de acolhimento em Portugal têm por objectivo a autonomia (32%), a reintegração na família nuclear (30%), a adopção (10,5%), o acolhimento permanente (8%), a reintegração na família alargada (5,5%) e, raramente, a integração no sistema civil de apadrinhamento, segundo dados de 2015 do Instituto da Segurança Social.

Em 2011, há registo de 11572 crianças e jovens sob medidas de protecção em Portugal. 65% foram acolhidas em Lares de Infância e Juventude e as restantes em Centros de Acolhimento Temporário e em regime de Acolhimento Familiar (Gaspar, 2013). Em 2014, cerca de 8470 crianças e jovens foram institucionalizadas (Instituto da Segurança Social, 2015). A taxa de menores institucionalizados – na sua maioria com idades entre os 11 e os 14 anos – atingiu os 9,8% em 2011.

[quote_center]Os projectos de vida para crianças e jovens em casas de acolhimento em Portugal têm por principal objectivo a autonomia[/quote_center]

Em 2013, 88,8% das crianças e jovens institucionalizados em Portugal eram acolhidos em Centros de Acolhimento Temporário e em Lares de Infância e Juventude. Em 2012, 45,4% dos menores estavam institucionalizados há um ano ou menos, 33,8% estavam institucionalizados há quatro ou mais anos, 20,8% há dois ou três anos e 16,9% dos menores estavam acolhidos há 7 ou mais anos, o que confirma que a institucionalização prolongada continua a ser uma realidade nacional (Carvalho, 2013).

Dados de 2014 revelam que a maior parte das crianças e jovens institucionalizados em Portugal, nesse ano, tinham entre 15 e 17 anos de idade, seguidos do período 12-14 anos (onde se encontram mais rapazes). Entre as 8470 crianças e jovens institucionalizados em 2014, 1160 apresentavam distúrbios de comportamento (sobretudo entre os 15 e os 17 anos), um resultado pior que em 2013, segundo o Instituto da Segurança Social.

Distúrbios que podem provocar bullying, o qual afecta muitas crianças e jovens durante os anos escolares, contribuindo para “um aproveitamento académico e uma performance social mais empobrecidas”, como se conclui no relatório da Houses of Empathy. E que, acima de tudo, pode gerar efeitos profundos e de longo prazo no seu bem-estar mental e emocional, com danos para a autoconfiança ou para a capacidade de manter relacionamentos saudáveis, por exemplo.

[quote_center]A institucionalização prolongada continua a ser uma realidade nacional[/quote_center]

É necessária uma intervenção precoce capaz de prevenir os comportamentos que provocam taxas de bullying entre crianças e jovens ainda muito elevadas, ditam as conclusões do documento. E, perante um problema que afecta sobretudo crianças com baixa auto-estima, elevada ansiedade e insegurança e fraca auto-regulação emocional – perfil em que encaixam os beneficiários das CACJ –, é essencial desenvolver programas de intervenção adaptados a estes espaços, colmatando a falta de informação disponível sobre a gestão e prevenção do bullying em contextos de acolhimento.

O fenómeno permanece socialmente complexo e em constante adaptação aos estilos de vida das nossas crianças e jovens. Em casa, importa estar atento. Nas escolas ou nos centros de acolhimento, importa implementar programas de prevenção e de intervenção eficazes. Para tentar combater esta forma de violência para cada vítima, mas também para todos.


Guia para as novas formas de bullying

A consciencialização sobre o fenómeno do bullying cresceu nos últimos anos e tornou-se uma questão mediática na educação, na comunicação social e nas agendas políticas. Mas o número de casos registados na maioria dos países é ainda alarmante e novas formas de socialização entre crianças e jovens fizeram despoletar novas formas de bullying, como o cyberbullying.

A partir de iniciativas identificadas como exemplos de boas práticas no combate ao bullying em Portugal, Espanha, Reino Unido e Irlanda, o Guia de Boas Práticas de Prevenção e Intervenção no Bullying em Casas de Acolhimento de Crianças e Jovens (CACJ) apresenta algumas das mais recentes abordagens políticas e metodológicas em situações de bullying, em escolas e em CACJ. Promovendo a disseminação de boas práticas, com um enfoque na realidade dos países parceiros, o guia fornece pistas para que as organizações elaborem as suas próprias estratégias de prevenção e gestão do bullying e para que os educadores adquiram novas competências e aprendam novos métodos para o combater.

A iniciativa resulta do projecto de cooperação internacional entre a PAR, a Asociación Hechos, a Voice of Young People in Care e a Sticks & Stones, complementando o Relatório do Estado da Arte do Houses of Empathy, e resume boas práticas existentes na esfera política, apresentando linhas orientadoras que podem ser úteis na elaboração de políticas e protocolos anti-bullying.

Incluídos ainda, neste manual de boas práticas, estão vários programas e metodologias concretas para prevenir e gerir situações de bullying, e uma compilação de sítios na internet com informação sobre leis, políticas, abordagens e recursos anti-bullying.