O valor é de 1,9 biliões de dólares e foi investido, desde a adopção do Acordo de Paris, por 33 bancos globais. Onde? Em projectos de financiamento de empresas do sector dos combustíveis fósseis. Os resultados são chocantes e demonstram a hipocrisia – para não falar da gigantesca irresponsabilidade – dos maiores bancos do mundo que se comprometeram a abandonar gradualmente os seus investimentos em projectos “sujos” e a iniciarem a transição para as energias limpas, absolutamente crucial para evitar uma catástrofe climática. Um relatório divulgado recentemente esmiúça os investimentos dos principais bancos globais, demonstrando que continua a existir muita gente que acredita que é possível “beber dinheiro”
POR HELENA OLIVEIRA

Um relatório publicado recentemente revelou que 33 bancos globais injectaram, em empresas de combustíveis fósseis, o valor de 1,9 biliões de dólares desde a adopção do Acordo de Paris em finais de 2015. O montante financiado aumentou em cada um dos dois últimos anos. O relatório, divulgado pelo BankTrack, resulta da parceria com a Rainforest Action Network, a Indigenous Environmental Network, a Oil Change International, a Sierra Club e a Honor the Earth  – todas elas organizações que lutam contra as alterações climáticas e pela transição para as energias limpas – e foi aprovado por outras 163 organizações em todo o mundo.

Do total dos 1,9 biliões de dólares, 600 mil milhões foram para os bolsos das 100 empresas que mais agressivamente estão a expandir o negócio dos combustíveis fósseis. Estes resultados revelam que as práticas de negócios dos maiores bancos do mundo continuam a contribuir para o desastre climático, ignorando por completo o mais recente relatório especial divulgado pelo IPCC – Global Warming of 1.5 °C – , o qual sublinha claramente a necessidade urgente do abandono gradual dos combustíveis fósseis e que estima que as necessidades de investimento mundiais em energias limpas sejam de 2,4 biliões de dólares anuais até 2035.

O relatório, intitulado Banking on Climate Change 2019, é já o 10º boletim anual sobre combustíveis fósseis, mas é o primeiro a analisar, de forma extensa, o financiamento dos maiores bancos privados do mundo no sector enquanto um todo, em conjunto com dados de empréstimos e subscrições de títulos de 1800 empresas pertencentes aos sectores do carvão, petróleo e gás ao longo dos últimos três anos. Adicionalmente, rastreia igualmente a expansão dos negócios de combustíveis fósseis, agregando dados que revelam quais os bancos que estão a financiar as 100 empresas mais fortes do sector.

Como comentou Alan Kirsch, investigador principal sobre clima e energia da Rainforest Action Network, “alarmante é um eufemismo”. “Este relatório é um alerta vermelho. A escala massiva da injecção de milhares de milhões de dólares nos combustíveis fósseis por parte dos maiores bancos mundiais é absolutamente incompatível com um futuro ‘habitável”, afirmou, acrescentando ainda que esta realidade “é um insulto à lógica, à ciência e à humanidade”, em particular depois do Acordo de Paris. Ou seja, se as evidências científicas são mais do que chocantes, continuar a investir em energias “sujas”, aumentando, e em vários casos, o seu financiamento, é caminhar para o “colapso planetário”. Na verdade, e se os bancos não abandonarem rapidamente a sua injecção de financiamento neste tipo de combustíveis, a destruição do planeta devido às alterações climáticas provocadas pelas acções humanas “não será apenas provável, mas iminente”.

O Acordo de Paris, o qual os grandes bancos se comprometeram a apoiar, preconiza que os fluxos financeiros sejam “consistentes com um caminho em direcção à baixa emissão de gases com efeito de estufa” e têm sido vários os bancos que publicitaram novas políticas para atingir este objectivo. As quais não estão, de todo, a ser cumpridas.

Os campeões do investimento catastrófico

© 198methods.org

O relatório divulgado pelo BankTrack revela que os quatro maiores investidores de combustíveis fósseis são bancos sedeados nos Estados Unidos – JPMorgan Chase, Wells Fargo, Citi e Bank of America -, com o britânico Barclays (o maior da Europa), o japonês Mitsubishi UFJ Financial Group (MUFG) e o canadiano RBC a integrarem igualmente o top dos maiores financiadores. A taça de pior banco para as alterações climáticas vai para o JPMorgan Chase que, desde o Acordo de Paris, injectou 196 mil milhões de dólares de financiamento no sector dos combustíveis fósseis, o equivalente a 10% de todo o financiamento efectuado pelos 33 maiores bancos do mundo. De acordo com o relatório, o volume de financiamento do JPMorgan é absolutamente chocante e 29% superior ao segundo banco mais “poluidor”, o Wells Fargo.

Com o Morgan Stanley e o Goldman Sachs em 11º e 12º lugares, respectivamente, na liga dos bancos que mais contribuem para o sector dos combustíveis fósseis, as seis gigantescas instituições financeiras dos Estados Unidos integram o top 12 da banca suja, sendo responsáveis por 37% do total de investimentos globais no sector, sendo que, colectivamente, constituem igualmente a maior fonte de financiamento para a expansão dos combustíveis fósseis desde a adopção do Acordo de Paris.

O representante da campanha Sierra Club Beyond Dirty Fuels comenta os resultados da seguinte maneira: “numa altura em que a ciência nos exorta a uma rápida transição para as energias limpas, os maiores bancos americanos continuam a posicionar-se do lado errado da história, continuando a passar um cheque em branco à indústria dos combustíveis fósseis”. Já o director do BankTrack recorda que “estamos a enfrentar os maiores impactos provenientes das alterações climáticas em todo o mundo”, com o IPCC a “decretar” o ano de 2030 como o prazo final para cortes profundos nas emissões globais de CO2, necessárias para evitar um verdadeiro colapso climático. Johan Frijns acusa ainda que, ao mesmo tempo que continuam a “despejar os seus milhares de milhões de dólares na indústria dos combustíveis fósseis, estes bancos não deixam, todavia, de anunciar “pequenos retoques aqui” e “iniciativas de finanças responsáveis ali”, questionando-se, e de uma vez por todas, quando é que estas instituições financeiras mudarão finalmente a sua trajectória abandonando o sector.

Já na Europa, é o Barclays que ocupa o trono dos “financiamentos sujos” ou, por outras palavras, é o pior banco europeu, com 85 mil milhões de dólares injectados nos combustíveis fósseis e 24 mil milhões de dólares na expansão de projectos para captar novos recursos.

Como resposta a um crescente escrutínio, o Barclays, e outros seus congéneres, começaram a desenvolver novas políticas para os combustíveis fósseis, comprometendo-se, por exemplo, a travar os seus empréstimos para certos tipos de projectos de produção de carvão. Todavia, e como conclui o relatório do BankTrack, nenhum grande banco possui uma política compatível com o objectivo de evitar que o aquecimento global atinja, até ao final do século, um valor inferior a 2°C, muito menos com a meta ideal de 1,5°C.  Pelo contrário, o dinheiro que está a ser investido pelos grandes bancos está a contribuir para que trilhemos uma estrada para o inferno, com a possibilidade de o aquecimento global poder ascender aos 4°C ou mais.

Na Assembleia Geral Anual do Barclays, que teve lugar no início de Maio, o discurso do CEO Jes Stanley foi interrompido por um grupo de activistas climáticos, os quais exigiam que o banco abandonasse os seus investimentos em energias sujas, em particular depois de o governo britânico ter declarado a “emergência climática” – uma medida considerada “hipócrita” por muitos observadores. No dia anterior, um grupo de investidores do Barclays escreveu igualmente uma carta ao seu conselho de administração exortando-o a parar de financiar as empresas envolvidas na extracção de carvão e na extracção de areias petrolíferas.

No discurso na Assembleia Geral, o CEO Staley afirmou aos seus investidores que “o Barclays está determinado a fazer o que for possível para apoiar a transição para uma economia de baixo carbono” e que “já estamos a fazer muito” para atingir este mesmo objectivo, acrescentando que “o banco tem até uma taskforce para considerar e agir face ao seu impacto o ambiental e social”. Jes Stanley reiterou também o apoio do Barclays ao Acordo de Paris, “concordando” também com os recentes alertas do Banco de Inglaterra sobre os riscos financeiros das alterações climáticas. Obviamente que o discurso do CEO não é consonante com os dados do relatório do BankTrack, o qual já tinha sido publicado na altura da Assembleia Geral. E, de acordo com a organização Open Democracy, foi o próprio Barclays a pagar a seguranças privados para que acabassem com os protestos dos activistas, apesar de estes os terem congratulado pelas suas acções reivindicativas.

De regresso à liga dos bancos sujos, o relatório cita ainda o “pior banco dos combustíveis fósseis” – o japonês MUFG, que financiou o sector em 80 mil milhões e 25 mil milhões em novos projectos para captar novos recursos, o campeão mundial do investimento em areias asfálticas, o canadiano RBC, com valores de investimento de 101 mil milhões de dólares e ainda o “banco top do carvão”, o Banco da China, qualificado como o pior da China e com investimentos direccionados para a expansão de novos projectos no valor de 17 mil milhões de dólares entre 2016 e 2018.

O director executivo da Oil Change International comenta os resultados do BankTrack da seguinte forma: “estamos afundados num enorme buraco climático. Existem pessoas que estão a construir escadas, acreditando que é possível chegarmos ao topo, mas também existem outras pessoas que estão a fazer pás, cavando o buraco cada vez mais fundo”. No que respeita aos bancos que integram este relatório, “são eles que estão a financiar as pessoas com as pás, devotando milhares de milhões de dólares à extracção das reservas de combustíveis fósseis as quais, quando queimadas, irão assegurar o fracasso do Acordo de Paris. Financiar a expansão da indústria do petróleo, do gás ou do carvão é agora uma negação clara das alterações climáticas, e nós exigimos que seja travada”.

Nenhum banco cumpriu o que prometeu

© Friends of Earth

O relatório avalia igualmente as políticas futuras divulgadas pelos bancos no que respeita a sectores específicos dos combustíveis fósseis e deste no geral. Na avaliação das restrições ao financiamento da expansão da produção dos combustíveis fósseis, nenhum banco pontua acima do C [de A a D, sendo A a melhor pontuação], sendo que a maioria dos bancos são avaliados com D. Nenhum banco honrou o compromisso do abandono gradual dos combustíveis fósseis no alinhamento com a trajectória proposta no Acordo de Paris para que o aquecimento global não seja superior a 1,5°C, apesar de terem sido muitos os bancos e os banqueiros – incluindo Jamie Dimon, CEO do “recordista” JP Morgan Chase – a declararem o seu apoio ao mesmo.

E, para tornar ainda mais negro o quadro, o relatório analisou igualmente a inaceitavelmente pobre performance dos bancos no que respeita aos direitos humanos, em particular dos direitos dos povos indígenas, na medida em que estes se relacionam directamente com os impactos de projectos específicos de combustíveis fósseis, e com as alterações climáticas no geral. Tom Goldtooth, director executivo da Indigenous Environmental Network afirma que “os bancos estão a financiar um futuro que poderá empenhar o bem-estar das próximas sete gerações de vida e ainda mais”. Acrescentando que a profecia indígena vai ao encontro das evidências científicas – a qual afirma que a Terra está a sofrer um desequilíbrio profundo -, o responsável desta rede ambiental considera que “qualquer instituição financeira que se recuse a agir [para evitar um desastre climático] deveria ser despojada da sua licença para operar e ser responsabilizada pelos seus investimentos”.

Os estudos de caso detalhados no relatório incluem, entre outros, três grandes projectos de oleodutos petrolíferos na América do Norte – que têm enfrentado uma oposição forte por parte de várias organizações ambientalistas, a qual tem sido liderada pelos povos indígenas pois estes violam a sua soberania e os seus direitos, na medida em que, nas suas terras, ameaçadas pela contaminação, poderão ficar sem água; a exploração energética através da perfuração de petróleo e gás no frágil Refúgio Nacional de Vida Selvagem do Árctico, pela primeira vez em mais de 30 anos e “patrocinada” pela Administração Trump, a qual é o ponto migratório de aves para seis continentes e o último habitat de reprodução das renas na América do Norte e os planos da fábrica alemã RWE para expandir a exploração de uma mina de carvão a céu aberto que, caso seja consumado, destruirá a Floresta de Hambach, existente há mais de 12 mil anos. Estes casos ilustram bem a ausência de políticas energéticas e de direitos humanos capazes de evitar o financiamento destes projectos substancialmente problemáticos e de monitorização das empresas que estão por trás dos mesmos.

Ou seja, “business as usual” ou, como comenta Tara Houska, directora de campanhas da organização Honor The Earth, “estamos a falar de uma questão de sobrevivência partilhada, à qual os bancos têm de responder, pois não podemos beber dinheiro”.

Editora Executiva