“A pobreza está disseminada pela Europa”, que enfrenta “a pior crise humanitária das últimas seis décadas”. Um relatório da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho que avalia os impactos da crise económica no continente alerta que a austeridade está a atirar os europeus para uma espiral de pobreza e desigualdade, com consequências “ainda escondidas” que serão sentidas “por décadas”
POR GABRIELA COSTA

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A pobreza a nível mundial tem vindo a diminuir nos últimos anos. Mas a Europa está mais pobre. O relatório “Think differently: humanitarian impacts of the economic crisis in Europe” revela que 34 dos 52 países analisados no estudo “registam taxas de dois dígitos na proporção de pessoas pobres”, concluindo que “a pobreza está disseminada pela Europa”.

Face à imposição de medidas de austeridade para combater a crise económica nos últimos quatro anos, “milhões estão desempregados e muitos daqueles que ainda têm trabalho enfrentam dificuldades para sustentar a sua família devido aos salários insuficientes e ao aumento desmesurado dos preços”, sublinha a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, confirmando que “não só há mais pessoas a cair na pobreza, como os pobres estão a ficar mais pobres”. Ao mesmo tempo, a desigualdade entre ricos e pobres “está a crescer”.

Apontando que, desde 2009, há um acréscimo que se cifra em milhões, no número de pessoas que têm de enfrentar filas para obter comida, não conseguem comprar medicamentos ou aceder a cuidados médicos, a organização não tem dúvidas: “a Europa enfrenta a sua pior crise humanitária das últimas seis décadas: as vidas das pessoas foram viradas do avesso e a degradação parece estar a aumentar, com milhões a sobreviverem diariamente sem poupanças ou algo que possa amortecer despesas imprevistas”, explicou o secretário-geral da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, no âmbito da apresentação do documento, a 10 de Outubro.

Bekele Geleta deixou um aviso que serve a vários países: “apesar de compreendermos que os governos precisam de poupar dinheiro, alertamos vivamente contra a aplicação de cortes indiscriminados na saúde pública e na Segurança Social, porque estes podem custar ainda mais a longo prazo”.

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Desemprego é uma bomba-relógio
A Cruz Vermelha, que desde os primeiros sinais da crise europeia tem vindo a chamar a atenção para o risco de colocar o foco na estabilização macroeconómica, desvalorizando as consequências humanitárias da mesma, lamenta agora que cinco anos depois, seja tão óbvio “que os mais vulneráveis são os mais atingidos”.

Defendendo que a questão do desemprego na Europa é uma “bomba-relógio”, a organização vaticina uma constatação que soa já banal, como soam, infelizmente, as frases batidas sobre o aumento da pobreza: as “consequências a longo prazo” da crise ainda estão por vir. A maior preocupação centra-se no desemprego jovem, cujo nível é classificado como “catastrófico” em cerca de 25% dos 52 países incluídos no estudo, com valores a atingirem entre um terço do total da população e 60% de todos os jovens de um país.

No que diz respeito aos mais idosos, a realidade não é muito melhor. Desde 2008 e até 2012, o número de desempregados entre 50 e 64 anos nos 28 países da União Europeia cresceu de 2,8 para 4,6 milhões de pessoas, refere o estudo da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho. Por outro lado, dos mais de 26 milhões de desempregados na UE, 11 milhões são desempregados de longa duração, quase o dobro do valor registado há cinco anos atrás.

E percebe-se assim porque é que os efeitos da crise serão sentidos “por décadas”, mesmo que a Europa comece a recuperar em termos de crescimento económico. Afinal, “a taxa alcançada pelo desemprego nos últimos dois anos, por si só, é um indicador do aprofundamento da crise”. E essa espiral negativa tem “custos pessoais severos como consequência, e possível instabilidade e extremismo como risco” que, aliados ao aumento do custo de vida, são “uma combinação perigosa”, considera a organização.

Por ora, a procura de apoio é crescente. Segundo o estudo da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho existem actualmente mais de 18 milhões de pessoas a receber apoio alimentar financiado pela União Europeia, 43 milhões que não têm o suficiente para comer diariamente e 120 milhões em risco de pobreza, em países acompanhados pelo Eurostat. Esta realidade levou a Cruz Vermelha a mobilizar esforços. Entre 2009 e 2012, aumentou em 75% o número de pessoas que dependem das distribuições de comida que efectua em 22 dos países analisados. Só durante o ano passado, 3,5 milhões de europeus receberam estas doações.

No relatório, a Cruz Vermelha sublinha que tem vindo a prestar também “assistência legal, financeira, material ou psicológica” a centenas de milhares de pessoas. Até porque, as medidas de austeridade aplicadas geram efeitos psicológicos, acrescenta o documento: “a crise económica aprofundou-se e hoje milhões de europeus vivem em insegurança, sem certezas sobre o que o futuro lhes reserva. Este é um dos piores estados de espírito para um ser humano. Vemos o desespero silencioso a alastrar entre os europeus, que resulta em depressões, resignação e perda de esperança”.

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Milhares dormem a céu aberto
A juntar-se aos que já eram pobres e mais ficaram, com a crise, estão hoje os “novos pobres”, termo que também já não causa estranheza. Como recorda a Federação Internacional, “há cinco anos seria inimaginável (existirem) tantos milhões de europeus em fila para conseguirem comida”. Trata-se de “antigos cidadãos da classe média que caíram na espiral da pobreza”, vivem hoje em caravanas, tendas, estações de comboios ou asilos para sem-abrigo, e que hesitam “em recorrer à Cruz Vermelha e a outras organizações para pedir ajuda”, reconhece a organização.

Em Portugal, como na França, em Itália ou nos Balcãs, cada vez mais famílias trabalhadoras solicitam apoio, porque “não conseguem cobrir todos os seus custos básicos e no final do mês enfrentam um dilema – comprar comida ou pagar a renda e as contas de electricidade e de água”, relata o documento.

Por outro lado, verifica-se uma tendência crescente de migração intra-europeia, principalmente de leste para oeste, de cidadãos que procuram um emprego. A instabilidade económica e social tem atraído imigrantes para países menos afectados ou economias em crescimento, mas segundo a Cruz Vermelha, doze meses depois de ter chegado ao destino metade destes imigrantes continua desempregada. Acresce que a maioria tem sido recebida com “posturas mais duras” pelos governos e sociedades de acolhimento.

Considerando que a xenofobia é uma preocupação crescente, a Cruz Vermelha denuncia que existem milhares de pessoas a morar a céu aberto ou em locais improvisados, por exemplo na Europa oriental, onde crescem os “assentamentos temporários”.

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Crise alastra-se a menos pobres
Outra conclusão do relatório que avalia os impactos humanitários da crise económica na Europa é que os seus efeitos se estendem a países europeus “relativamente bem sucedidos”, não se restringindo “aos países do Sul da Europa e Irlanda, devastados pela crise e sujeitos a uma intervenção externa”.

Na Alemanha, um quarto dos trabalhadores recebe actualmente baixos salários, e quase metade das novas contratações registadas desde 2008 refere-se a trabalhos mal pagos, precários ou sem nenhuma protecção social. Em Agosto de 2012, quase 600 mil trabalhadores alemães “tiveram de pedir benefícios adicionais para pagar as suas contas”, indica o documento. Por seu turno, 350 mil franceses passaram a estar abaixo do limiar da pobreza, entre 2008 e 2011.

Sejam cidadãos que lutam diariamente pela sua sobrevivência, no tal desespero silencioso da insegurança, sejam os que são afectados, mas pouco, o relatório “Think differently: humanitarian impacts of the economic crisis in Europe” desafia os europeus a pensarem se conseguiram compreender o que os atingiu e se estão preparados para lidar com as consequências da crise: “perguntamo-nos se nós, enquanto continente, percebemos verdadeiramente o que nos aconteceu”, lê-se no documento.

Insistindo que as medidas de austeridade aplicadas na Europa para combater a crise nos últimos quatro anos a lançaram numa “espiral de pobreza”, a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho sublinha que “as consequências a longo prazo desta crise estão ainda escondidas” e que “os problemas serão sentidos ao longo de décadas, mesmo que a economia melhore no futuro próximo”.

É preciso, pois, “enfrentar a realidade, para que esta crise humanitária não se transforme numa crise social e moral” para o continente, como defende a directora da Federação para a Europa, Anitta Underlin, que deixa um apelo: “não temos todas as respostas, mas encorajamos todas as partes interessadas – incluindo nós mesmos – a pensar em formas novas, diferentes e criativas de lidar com a crise”.

Espanha afunda no “potencial devastador da crise“
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Na mesma semana em que a Federação da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho apresentaram o relatório sobre os impactos humanitários da crise na Europa, o Conselho da Europa, que reúne os chefes de Estado e governo da União Europeia, divulgou um relatório que avalia também os efeitos da crise, mas em Espanha.

Coordenado pelo comissário para Direitos Humanos do Conselho, Nils Muižnieks, o relatório destaca que “cortes em orçamentos sociais, de saúde, educacionais levaram a um preocupante aumento na pobreza das famílias”.

Focando-se no legado devastador das medidas de austeridade, principal ferramenta no combate à crise económica e financeira iniciada em 2008, também no país vizinho, o documento defende que os cortes significativos na educação espanhola nos últimos três anos estão a minar a oportunidade de igualdade entre as crianças, ao tornar mais difícil o acesso ao ensino de qualidade para as que têm dificuldades específicas ou desvantagens para aceder ao sistema educativo.

Somam-se “a crescente pobreza infantil, má nutrição e habitação inadequada, assuntos de grande preocupação pelo seu potencial devastador a longo prazo sobre as crianças e o país”, como afirmou o comissário.

O relatório recomenda que as autoridades espanholas implementem estratégias efectivas para a resolução dos problemas relacionados com a pobreza e a protecção dos direitos sociais.