É muito difícil conseguir promover um clima ético quando não se acredita nas pessoas. Quando se olha para as pessoas na expectativa de que ajam como máquinas, quando não se dá espaço para o julgamento e para a responsabilidade individual. E, nas empresas, sobretudo nas multinacionais, é muito isso que se observa
POR ANA ROQUE

Aconteceu numa loja de bairro.

Eu esperava a vez de ser atendida e comecei a ouvir a conversa de uma senhora que estava a comprar uma caixa de collants e pedia para pagar com Multibanco.

– Se não der posso pagar em dinheiro, mas, se não se importa, eu queria pagar com multibanco.

A senhora que estava a atender disse que não tinha qualquer problema e foi buscar a máquina. Enquanto isso a cliente foi explicando:

– No sábado de manhã fui fazer uma compra aos chineses e o cartão não funcionou, passou três vezes e não funcionou e eu cheia de vergonha a dizer ao senhor que tinha dinheiro, porque eu tenho dinheiro, até depositei outro dia um cheque. É verdade que às vezes demora e pode acontecer, mas eu sabia que tinha lá dinheiro. Fui para casa e já não dormi o fim-de-semana todo! Nem disse ao meu marido.

A senhora da loja voltou com a máquina passaram o cartão e a cliente disse:

– Se não der, vou já à Caixa.

Pôs o código como quem ainda não está habituado a estas coisas e ficou debruçada sobre a máquina suspensa a dizer as coisas que iam aparecendo no ecrã:

-Está em comunicação…

A máquina autorizou. E foi aí que, para nosso espanto, a senhora começou a chorar e disse:

– Sabem, é que a minha filha zangou-se comigo, não me fala, nem me deixa ver os netos, um grande desgosto! E eu tinha posto o nome da minha filha na conta e quando ela cortou relações comigo, ainda pensei que se calhar devia tirar, mas depois pensei: eu não posso fazer isso à minha filha, não posso deixar de confiar nela! Mas no sábado, quando a máquina não deu, foi como se se tivesse aberto um buraco e eu duvidei, faltou-me a fé, fiquei sem dormir. Mas afinal o dinheiro está lá!

Estava a chorar de alegria!

Eu fiquei sem palavras, só quando ela saiu é que me veio à ideia o que gostaria de ter dito: abençoada seja por acreditar! Pensei na falta que nos faz gente que prefere perder do que magoar, pessoas que correm o risco de acreditar quando eventualmente a prudência aponta em outra direção.

Acreditar não é o mesmo que saber, está completamente fora da ciência e do conhecimento, aquilo que acreditamos não é verificável, comprovável nem tem nenhum dos atributos daquilo a que hoje se designa como conhecimento válido.

Acreditar é, de alguma forma, um salto no abismo, um ato de fé porque “não há continuidade racional possível. O que é crer se não estar em face ao que não é crível? E é somente neste sentido absolutamente paradoxal que o risco pode ser tomado, fazendo um salto que a razão se recusa a fazer.”

É isso que diz Anne Dufourmantelle num livro que li recentemente, Éloge du Risque, e onde num dos capítulos fala exatamente do risco de acreditar, aquele que me parece o mais belo risco.

É da ordem do acreditar quando nos contam um “facto” sobre alguém que gostamos e dizemos: não acredito! É da ordem do acreditar o amor, são da ordem do acreditar muitas coisas nas relações humanas. A própria confiança ainda que possa ter por base a razão é, em parte, da ordem do acreditar, porque o Homem, como refere Michaela Marzano, pode sempre trair, “porque é humano e está vivo e não pode renunciar à complexidade do seu desejo”. Acreditamos, apesar de estarmos conscientes da possibilidade da traição. Pomos as mãos no fogo, apesar de às vezes tremermos (como aquela senhora) com medo de nos queimarmos. De alguma forma é uma escolha, um risco que escolhemos assumir e, repito, é o mais belo risco.

Marzano escreve o que referi num livro que é também um elogio, Eloge de la Confiance. Nesse livro, a autora compara a confiança à fé porque “nenhuma das duas tem resultado garantido”.

A confiança é a base da tranquilidade dos nossos dias, acreditamos constantemente no desconhecido, acreditamos que a comida que compramos não é tóxica, que foi produzida com cuidados de higiene; acreditamos que o engenheiro que “construiu” a nossa casa fez bem as contas e o teto não nos vai cair em cima; acreditamos que a empresa que nos vendeu a fechadura da nossa casa não deu a chave a mais ninguém. Acreditamos sem nenhuma razão para acreditar em pessoas e empresas que desconhecemos completamente e temos uma enorme dificuldade em acreditar em quem nos está próximo.

Acreditamos nos bancos e depositamos lá o nosso dinheiro, mesmo quando não nos pagam juros, mesmo quando nos cobram por ter lá o dinheiro e temos muito mais dificuldade em dar a um amigo para guardar; pomos os nossos documentos mais pessoais numa nuvem que está num sitio que não entendemos e temos em casa password para o computador e para o telemóvel.

Acreditar no próximo na era digital parece ainda mais difícil e acreditar em quem não conhecemos nunca foi tão mecânico e natural. Entramos num site, dizem que é de segurança (são eles que afirmam), pomos os nossos dados, o número do nosso cartão de crédito, o código secreto que eventualmente não partilharíamos com os nossos amigos porque é melhor uma pessoa não se “pôr a jeito”.

À medida que se desenvolvem mecanismos de “protecção” adoptamo-los um a um e vamo-nos fechando aos próximos como se estivéssemos dentro de uma caixa forte. Tentando diminuir a nossa vulnerabilidade ao próximo em quem temos medo de confiar. O que é mais fácil? Confiar na filha que educámos e que se zangou connosco ou confiar num banco?

Acreditar e confiar é extremamente difícil, é “rendermo-nos ao incrível” com diz Dufourmantelle ou “um salto no desconhecido” como diz Marzano. É isso para cada um de nós e para as empresas também.

É preciso uma maior confiança das empresas nos seus colaboradores, apesar do risco, apesar da consciência de que as pessoas podem sempre trair. Ter confiança no julgamento de cada pessoa parece-me fundamental para que uma qualquer cultura ética seja possível.

Como é que se pode falar de ética nas empresas quando se espera que as pessoas cumpram simplesmente regras e se demitam de fazer escolhas e da sua responsabilidade individual?

Ilustro o que quero dizer com outra história que uma educadora me contou recentemente:

Ela tinha ido fazer um passeio com as crianças pelas ruas de Lisboa e o programa do dia era perceber o mecanismo das trocas e como se chegou ao dinheiro, começando pelas trocas diretas.

Foi pedido a cada criança que fizesse ou pensasse em algo para oferecer que pudesse interessar a outro, um potencial objeto de troca.

Cada criança chegou então, nesse dia, com algo para trocar.

Vão pela rua, escolhem uma loja, entram, e uma criança designada apresenta o que tem para trocar e pergunta ao comerciante se quer fazer a troca.

Vão andando e escolhendo as lojas.

A determinada altura, uma criança vê uma loja de uma cadeia multinacional do outro lado da rua e pergunta se podem ir lá fazer uma troca.

A educadora diz que é melhor não porque nessa loja estão pessoas que seguem regras e não podem tomar decisões.

Explica que há lojas onde estão os donos e que fazem trocas, há lojas onde estão pessoas que os donos conhecem e que conhecem os donos e que podem fazer trocas e há lojas onde estão pessoas que nunca viram os donos, onde os donos estão, eventualmente a milhares de quilómetros de distância, e que por isso não tem a confiança deles para poderem fazer uma troca.

A questão da confiança é, parece-me, uma questão core da ética empresarial: como é que se convence uma pessoa a ter uma postura ética relativamente à empresa quando ela sente que a empresa não confia nela?

Há uma falta de reciprocidade que se faz sentir no contexto empresarial e que torna muito difícil a questão da ética. E não estou só a falar de confiança, estou a falar também de lealdade, por exemplo, que surge na maior parte dos códigos como uma obrigação dos trabalhadores.

Do lado das empresas as palavras parecem muitas vezes vazias.

É muito difícil conseguir promover um clima ético quando não se acredita nas pessoas. Quando se olha para as pessoas na expectativa de que ajam como máquinas, quando não se dá espaço para o julgamento e para a responsabilidade individual e, nas empresas, sobretudo nas multinacionais, é muito isso que se observa.

O facto de se ter trabalhadores dos quais não se conhece o rosto torna muito mais difícil a confiança. Cercamos as pessoas de normas, criamos uma ética normativa, sem sentido, sem espaço para a pessoa nem para o acreditar.

Pergunto-me muitas vezes como é possível promover um clima e uma cultura ética à escala global. No local é mais simples, mais quente, mais humano. No global, o salto é demasiado grande, tudo e todos são muito distantes.

Vemos situações em que alguém recusa por exemplo uma prenda ou ir jantar com alguém com quem desenvolveu uma relação de afeto porque é um fornecedor e porque independentemente do que sinta não lhe é permitido correr o risco de acreditar. Não se confia no seu julgamento, criam-se relações absurdas e potencia-se a esquizofrenia que vemos na sociedade: ser-se uma coisa em casa, ser-se outra no trabalho.

Poder acreditar e haver quem acredite em nós é, parece-me, condição necessária para uma cultura ética. A ética pressupõe uma dúvida, por vezes a angústia da escolha. Sem isso somos autómatos, não há ética possível. Por isso, para além do nível pessoal, creio que também as empresas têm de abraçar o risco de acreditar e o risco da confiança, que trazem naturalmente outros riscos. Mas acho que esses outros os correríamos de qualquer forma.

Activista da ética, investiga, escreve e desenvolve iniciativas no sentido de promover a reflexão ética e o pensamento crítico. Procura formas alternativas de promover a ética empresarial.