A comunidade científica e a OMS apelaram repetida e reiteradamente à máxima cooperação entre todos os envolvidos neste processo de criar uma ou mais vacinas em tempo recorde. Em vez disso, o mercado entendeu a situação não como uma emergência planetária a requerer a concentração de esforços, mas sim como um enorme negócio no qual todos querem ter a sua quota-parte. Hoje temos mais de 200 consórcios a disputar a conquista desse mercado
POR HENRIQUE LOPES

O anúncio da disponibilidade próxima de vacinas para a COVID tornou-se tema obrigatório dos noticiários, talvez a única boa notícia relacionada com a doença nos últimos meses.

A natureza viral da doença determinou, desde o início em Janeiro, que a única resposta capaz de proteger a população planetária seria a vacinação e muito corretamente aí se apostaram todos os trunfos científicos, tecnológicos e financeiros.

As vias de investimento na investigação em produtos para tratamento não foram esquecidas, mas as necessidades de avanço tecnológico e os tempos de desenvolvimento são tão mais alargados que nunca passaram de trabalhos secundários e de avaliação do saber, para verificar se algum dos recursos farmacológicos já existentes seria útil.

A partir de fevereiro ficou também claro que a pandemia iria criar uma crise económica gigantesca. Nada de novo, sempre aconteceu aquando da existência de pandemias o terrível ciclo de: “crise sanitária – crise económica – crise social”, por vezes tão ou mais mortífero e destruidor das várias formas de capital quanto a pandemia. Importava por isso cortar o ciclo o mais cedo possível. Para o fazer era imprescindível o desenvolvimento, produção e logística de distribuição de várias formas de vacina. A OMS apontou o número de pelo menos seis para que se possa cobrir todos os grupos populacionais (por exemplo nem todas as vacinas podem ser inoculadas a grávidas, recém-nascidos, podem requerer idades específicas de inoculação, ou não se poderem fazer depois de certa idade, etc.).

O problema é que desenvolver uma vacina eficaz e segura é imensamente complexo e caro. Fazê-lo de urgência é ainda mais caro e complexo. Porém, o mundo não poderia esperar os oito a 10 anos (por vezes muito mais) que a criação de novas vacinas demonstrou precisar em média no último meio século.

Por muito caro que fosse um desenvolvimento sob pressão, seria sempre uma ínfima parte dos custos por comparação aos prejuízos causados por confinamentos, restrições comerciais e outros custos indiretos impostos pela pandemia. Os erários públicos dos países mais ricos e o da União Europeia colocaram muitos milhares de milhões de euros à disposição dos consórcios que se criaram para desenvolver as vacinas.

A comunidade científica e a OMS apelaram repetida e reiteradamente à máxima cooperação entre todos os envolvidos neste processo de criar uma ou mais vacinas em tempo recorde. Múltiplas razões apontavam nessa direção: o que um laboratório consegue obter, por razões tecnológicas, metodológicas ou científicas, não é necessariamente o mesmo que outro obtém; os problemas que uma equipa defronta são sempre circunstanciais à envolvente em que está a trabalhar; diferentes olhares sobre os mesmos dados podem conduzir a leituras distintas; a falha que um laboratório encontra pode ter resposta vinda do trabalho de outro; perigos e limitações ao desenvolvimento podem ter solução com trabalho alheio; acima de tudo não se multiplicam custos e esforços a obter a mesma coisa. Em suma, um trabalho em rede aberta permitiria reduzir os tempos de desenvolvimento, aumentar a segurança da vacina e mais tarde otimizar a robustez da capacidade produtiva.

Em vez disso, o mercado entendeu a situação não como uma emergência planetária a requerer a concentração de esforços, mas sim como um enorme negócio no qual todos querem ter a sua quota-parte. Hoje temos mais de 200 consórcios a disputar a conquista desse mercado.

Em vez da cooperação, há uma competição que tudo esconde, onde no lugar de múltiplos artigos científicos que escrutinem cada passo da produção, cada efeito secundário dos ensaios clínicos, recebemos comunicados de Bolsa, muitas vezes alinhados com os interesses de capitalização bolsista, nos quais “temos” de acreditar na veracidade dos números.

Aliás, o pouco que se sabe de uma das principais concorrentes é que houve melhoria da performance da sua vacina por engano na administração das doses. Erro grosseiro e inaceitável num ensaio clínico. Erro em ensaio clínico é esquecermo-nos de registar um exame feito por uma dada pessoa, é não ter sido verificada uma segunda vez a transcrição de uma informação. A gafe é demasiado grande para caber no conceito de engano. É um erro estrondoso. E se essa, por ter sido vantajosa, foi comunicada, é-nos legítimo perguntar se outros erros de comunicação desvantajosa podem ter sido cometidos e deles nada sabermos. O resultado é que irão ser inoculados milhares de milhões de pessoas com os produtos farmacêuticos possivelmente menos testados dentre os disponíveis na atualidade.

Os políticos estão em burnout um pouco por todo o mundo, esmagados entre uma população que desespera, uma economia que afunda, sistemas de saúde em rutura e a necessidade de manter uma atitude positiva perante os seus governados. Qualquer solução se tornou uma boa solução. E não é. Se há mais de 200 vacinas, por que razão a primeira será a melhor? Será uma hipótese em duzentas de tal suceder. No entanto para o Político as primeiras serão a solução porque tem de apresentar trabalho feito e não ficar atrás do que fazem outros países. Esta pressão que os políticos estão a sofrer, por um lado das populações que anseiam qualquer coisa que funcione, desde que seja já, por lado outro pelas companhias que anunciam soluções fantásticas na praça pública, ainda antes de serem cuidadosamente escrutinadas como se faz em qualquer novo medicamento desde há décadas, apenas pode conduzir a decisões imediatistas. Se mais tarde algo correr mal, alguém nos dirá que foi a solução possível no momento. E, a questão é mesmo essa: queremos ter decisões fundamentadas na pressão do momento ou boas soluções que, para o serem, podem requerer mais tempo?

Significa o que se escreveu que deveremos recusar as propostas de vacinação? Não, não há espaço para parar e corrigir o que falhou para trás. A economia está demasiado depauperada para ações corretoras que demorariam meses. Correríamos o risco de ter um plano de vacinações com produtos de primeira escolha num caos económico, e, portanto, também social.

Há contudo tempo para exigir a cada fabricante toda a informação de modo a que possam decorrer estudos independentes de validação, de apelar uma vez mais (eventualmente forçar como se fez entre os Aliados na segunda guerra mundial em relação ao material de guerra com desenvolvimento urgente e complexo) para a cooperação entre competidores no sentido de mobilizar os recursos existentes para uma reposição, tão urgentemente quanto possível, da normalidade dos dias.

Apesar de haver tempo para este tipo de iniciativas e ser o tempo certo de o fazer, não creio que tal venha a acontecer. O mercado, pela primeira vez na História da Humanidade à escala mundial, sobrepôs-se abertamente à condição humana e isso vai deixar marcas, especialmente se algo correr menos bem. E, nesse caso, mesmo os promotores agora desejosos de colocar produto no mercado irão perder, se entendidos numa esfera mais vasta do que o momento presente. Toda a ação tem uma reação, e em algo que envolve milhares de milhões de pessoas, as suas vidas e saúde, a reação facilmente ultrapassa a medida do controlável.

O próximo lançamento e produção de milhões de vacinas irão ser a nossa esperança de um mundo pós-pandémico com alguma normalidade, mas será também um enorme motivo de reflexão ética, moral e mesmo política. Que mundo queremos? Com que regras de mercado? Onde se situará o valor da Vida Humana? Lembremo-nos das Laudato Si’e Fratelli Tutti.

Uma coisa é certa: passar por tudo isto e não aprender nada é demasiado mau. O mundo que sair da pandemia tem de procurar, no mínimo, ser melhor do que o que havia antes.

Se outra razão não houvesse, bastaria saber que este vai ser o século das epidemias, conforme o declararam as Forças de Defesa e muito abertamente o Instituto de Defesa Espanhol, no seu Cuaderno 203, “El siglo XXI, el Siglo de las Pandemias” (setembro 2019). O que estamos a viver vai-se repetir e com aumento progressivo de frequência à medida que o clima mudar, as pessoas e mercadorias transitarem cada vez mais de um para outro lugar, que forem devastadas mais zonas remotas. Vamos possivelmente, ainda nas nossas vidas, ver de novo o atual cenário. Temos de nos preparar para a próxima pandemia, para que dessa vez se possa agir com cabeça, com planos sólidos e recursos necessários. As vacinas voltarão a ser uma das ferramentas estratégicas.

Co-coordenador da Task Force on War para a guerra da Ucrânia da Associação Europeia de Escolas de Saúde Pública. Coordenador da Educação para a saúde do Comité Mundial de Educação ao longo da vida. Perito UNESCO para a Educação para a Saúde. Professor e investigador sénior de Saúde Pública na Universidade Católica Portuguesa.