Afinal, o mundo não precisa do desenvolvimento, mas de alternativas ao desenvolvimento. Num encontro internacional realizado esta semana, em Lisboa, Boaventura de Sousa Santos explicou porquê, enunciando as grandes ameaças que a humanidade enfrenta
POR GABRIELA COSTA

“Quero ser alguém que tem asas com raízes”

O sociólogo e professor catedrático Boaventura de Sousa Santos foi um dos oradores convidados no Encontro Internacional “Sinergias para a Transformação Social – Diálogos sobre Desenvolvimento”, realizado a 12 e 13 de Janeiro, no ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, pela Fundação Gonçalo da Silveira, no âmbito do projecto conjunto com o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto “Sinergias ED: Conhecer para melhor Agir – promoção da investigação sobre a acção em ED em Portugal”.

Colocando a tónica do seu discurso na inquietação face a “um mundo feio”, crivado de “guerras e injustiças”, o professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, distinguished legal scholar da faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e global legal scholar da Universidade de Warwick, enunciou aquelas que considera serem sete “ameaças que são também enormes desafios”, para enquadrar a importância da educação na resolução dos grandes paradigmas civilizacionais da sociedade contemporânea.

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“Privatizar é uma regulação para desregular”

A primeira refere-se à desfiguração do Estado a que se assiste em muitos países onde o modelo de desenvolvimento vigente – o liberalismo –, assente em princípios do mercado económico, vem alterando o “contributo inestimável” que este teve até aos anos 70, quando “precisávamos de uma sociedade civil forte”. Depois dessa década, “passámos a precisar de um Estado fraco, para que a sociedade fosse forte”, defende o também director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, exemplificando: “privatizar os serviços [públicos] é uma regulação para desregular”.

Em suma, o Estado “está a ser reconfigurado em muitos países, face “à contradição” que o próprio conceito assume perante modelos de desenvolvimento ligados à ideia de acumulação infinita [de competências].

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“Hoje também na política tudo se vende, tudo se compra”

A segunda ameaça, na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos, prende-se com o esvaziamento da democracia. Embora esta represente “realmente o grande modelo político”, também em cada vez mais países, e ao contrário do que seria de esperar, “está a ser esvaziada” do seu sentido, assistindo-se a “baixos níveis democráticos” em muitas lideranças mundiais.

É que, se na democracia liberal coexistem os mercados político e económico, este último é pautado por “valores que se compram e se vendem”, e o que é certo é que ambos “têm vindo a fundir-se, sob a égide do desenvolvimento económico”, defende. Neste contexto, “hoje também na política tudo se vende, tudo se compra”. Por outras palavras, “o dinheiro [ou ambição pelo lucro, diríamos] entrou na política de tal forma que a democracia representativa está a ser sequestrada pelo modelo capitalista”. O resultado? Hoje cada vez mais pessoas estão dependentes de auxílio externo mas, com “os princípios fundadores da democracia a serem erodidos desta forma, já não há direitos garantidos”. Exemplo flagrante disso mesmo é “o direito ao trabalho”, nomeadamente à “contratação colectiva”, considera o professor.

Em conclusão, é preciso não esquecer que a democracia se esvazia “porque há cada vez mais organizações não eleitas que decidem por nós – como a troika ou o Banco Mundial – mas que não passaram por nenhum debate político democrático”, critica Boaventura Santos.

“Não conseguimos um compromisso efectivo sobre o clima”

A terceira ameaça enunciada pelo especialista (com inúmeros trabalhos publicados) em questões como globalização, sociologia do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos, é a destruição da natureza.

Neste campo dos efeitos já bem visíveis das alterações climáticas, Boaventura de Sousa Santos atenta apenas na Cimeira de Paris para concluir o óbvio: “não foi possível conseguir nenhum compromisso efectivo” na COP 21”, que incluísse metas e sansões previstas para o incumprimento das mesmas. Nas negociações, nem o princípio da impunidade nem o do Estado estiveram presentes, acusa.

“O direito ao trabalho perdeu-se”

Já a quarta ameaça que a humanidade enfrenta actualmente diz respeito à desvalorização do trabalho. Insistindo que o direito ao trabalho se perdeu, o professor defende que “certos conceitos fundamentais estão a ir ‘por água abaixo’, como é o caso da diferença entre trabalho remunerado e não remunerado. Distinção subtilmente iludida por “muitas trans e multinacionais, que exigem [sem exigir legalmente] que os seus colaboradores estejam disponíveis 24 horas por dia”, já para não falar que “os pressionam” a não frequentarem certos ambientes e certas companhias, lamenta. E, neste processo, dilui-se também a diferença entre tempo laboral e tempo de lazer, conclui.

Ainda no que concerne esta problemática, Boaventura Santos sublinha o papel da mulher, que “persiste menorizado”, quer pela sobrecarga de tarefas que acumula em casa quer como mãe. Neste aspecto, é necessário aumentar o “sentido de partilha”.

“O conhecimento deixou de ter valor”

© Merrill College of Journalism Press Releases via Visual Hunt / CC BY-NC
© Merrill College of Journalism Press Releases via Visual Hunt / CC BY-NC

A mercantilização do conhecimento é a quinta ameaça identificada pelo director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. E é, de facto, incontestável que “a universidade é cada vez mais pressionada para que os seus cursos e actividades tenham impacto [económico] na sociedade”, isto é, “o conhecimento deixou de ter valor”.

Na opinião do especialista, as instituições de ensino superior “estão hoje numa encruzilhada”, na qual “os professores são operários e os alunos são clientes”. Ora, questiona, como se pode ultrapassar esta ideia de que as universidades devem ser geridas como empresas?

“Assistimos a uma onda de xenofobia violenta”

Na sexta posição dos grandes desafios aos actuais modelos de desenvolvimento, Boaventura de Sousa Santos coloca a recolonização da diferença. Na sua perspectiva, “continuamos a discriminar as pessoas que têm grupos sociais que não correspondem às tipificações” sociais. Os EUA, “onde se assiste a uma onda de xenofobia violenta” e o Brasil, onde “nunca se mataram tantos negros [nomeadamente por parte das autoridades policiais, acrescente-se] são disso “um grande exemplo”. Outro será, sem dúvida, a confusão generalizada entre ‘muçulmano’ e ‘terrorista’. No meio desta confusão, o crescente fluxo migratório de refugiados tornou o Mediterrâneo num “cemitério líquido”, recorda.

Para além das questões étnicas e religiosas, esta recolonização aplica-se ainda às discriminações de género e a desigualdades económicas e culturais, entre outras. Em qualquer um destes casos, “o conceito de humanidade já não existe, na nossa contemporaneidade, sem o conceito de sub-humanidade”. Sendo, obviamente, que “um ‘sub-humano’ não tem os mesmos direitos de um humano”.

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“Há um ‘totalitarismo suave’ que parte da ideia de que não existe alternativa”

Na sistematização sociológica de Boaventura de Sousa Santos, a sétima e última ameaça que o mundo enfrenta actualmente é a criminalização do contexto social. Quer isto dizer que “o protesto social é cada vez mais difícil” em muitos países, por exemplo “da América Latina”, onde certa “legislação antiterrorista está a ser aplicada para evitar protestos sociais”.

Na opinião do professor assiste-se mesmo, em alguns casos, a um “totalitarismo suave” – porquanto ocorre em sistemas democráticos – que “parte da ideia de que não existe alternativa” (ao contrário dos “diferentes tipos de capitalismo” que coabitavam há 30, 40 anos, explica). Por outras palavras, o capitalismo liberal “é um pensamento sem saída”, que dita, perante a própria ideia de sobrevivência, que “é isto ou nada”.

“A primeira tarefa agora é desaprender”

Num painel sugestivamente intitulado “Pedagogias subalternas: educar para as alternativas ao desenvolvimento”, Boaventura de Sousa Santos conclui que “não podemos sucumbir à paralisia, nem ficar em casa”, mas precisamos entender, ou até interiorizar, que “estas sete ameaças surgiram em nome do desenvolvimento”.

E é em nome do seu conceito dominante – quer se trate do desenvolvimento humano ou sustentável – que ainda nem atingimos uns objectivos e já perseguimos outros, conclui. A tal ponto que em vez de progredirmos, regredimos, sugere: afinal, “nos últimos quatro anos, não passámos do desenvolvimento ao subdesenvolvimento na Europa?” E Portugal, está a ser desenvolvido ou subdesenvolvido?

Perante a actual realidade, “a primeira tarefa agora é desaprender”. E desaprender na certeza que nos resta somente dois caminhos tortuosos: o do “desenvolvimento alternativo, estratégia legítima” de que o Nobel da Economia Joseph Stiglitz será o defensor “mais controlado”; ou “uma alternativa ao desenvolvimento”, pressupondo que já não é possível pensar em desenvolvimento alternativo”. Nesta segunda linha de pensamento, na qual Boaventura de Sousa Santos trabalha há já duas décadas, importa “criar a consciência de que o mundo é nosso”, bem como inventar “formas de actuar na construção dessa ideia”.

Também nesta linha, os processos educativos “fazem com que o desenvolvimento aconteça às pessoas. Mas não são elas que se desenvolvem”, efectivamente, conclui. Porque hoje, o termo só faz sentido se a ele estiver inerente “um trabalho epistemológico”, e “se não houver justiça cognitiva, não há justiça social”, conclui o sociólogo. Nesta aprendizagem, importa reter o essencial da perspectiva de Boaventura de Sousa Santos: “quero ser um educador de retaguarda, alguém que tem asas com raízes”.


© Gustavo Lopes Pereira | Âmago - Oscar Jara, presidente do Conselho Executivo do Consejo de Educación Popular de America Latina y El Caribe
© Gustavo Lopes Pereira | Âmago – Oscar Jara, presidente do Conselho Executivo do Consejo de Educación Popular de America Latina y El Caribe

A educação emancipadora

Conhecido como ‘educador popular’, Oscar Jara Holliday trabalha há várias décadas em prol da cidadania global e democratização da educação, tendo em vista a capacitação social das populações vulneráveis. Actualmente é presidente do Conselho Executivo do CEEAL – Consejo de Educación Popular de America Latina y El Caribe e director do Centro de Estudios y Publicaciones Alforja, na Costa Rica.

Originário do Peru, este sociólogo e autor de vários livros e artigos sobre mudança social, educação, sistematização de experiências, movimentos sociais e metodologias participativas é, talvez, o maior defensor da difusão do sentido político da educação popular e das metodologias de sistematização das experiências educativas, na América Latina.

Em declarações ao VER, à margem do Encontro Sinergias para a Transformação Social – Diálogos sobre Desenvolvimento, Oscar Jara explica como, desde a Revolução Sandinista (guerra civil que ocorreu entre 1979 e 1990 contra o regime ditatorial na Nicarágua), começou a trabalhar na campanha nacional de alfabetização deste país, para depois alargar o seu campo de actuação, ao nível da cidadania global, a todo o continente.

Através do CEEAL, inicialmente dirigido à formação de adultos, contribuiu para recuperar a ideia de educação popular – dirigida a todos –, “conceito transformador muito forte, mas que se tem perdido”, reforçando os resultados “de um processo de educação que tem por objectivo desenvolver capacidades de mudança”.

Nas suas palavras, a educação popular “aposta tudo na concepção de uma educação transformadora, que se aplica de forma sistemática nas escolas e universidades”, mas também “fora do sistema educativo”, e que significa, acima de tudo, “fortalecer as competências das pessoas”. Trata-se de “uma concepção de educação que tem na sua raiz as experiências que se desenvolvem com comunidades rurais e urbanas populares” (quase sempre vulneráreis), como os camponeses ou os operários. Pessoas “oprimidas, exploradas, que sofrem algum nível de assimetria social”, e a quem é dada uma oportunidade de combater a sociedade a que estão subjugadas”.

No seu sentido mais profundo, ou estrutural, a educação popular “procura a transformação dessas condições de opressão e dessa discriminação”, através de “um projecto político e pedagógico” que desenvolve as capacidades destas pessoas. Estamos assim perante “uma educação libertadora e emancipadora”, conclui o sociólogo.

Na sociedade actual, cada vez mais marcada por desigualdades e vulnerabilidades sociais, e por ameaças como o terrorismo ou a xenofobia face aos crescentes fluxos de migrantes, a educação popular encontra um enorme desafio perante a necessidade, defendida por Boaventura de Sousa Santos no Encontro da FGS, de desconstruirmos o padrão de desenvolvimento vigente: “não é possível continuar com este modelo que tem sido o paradigma do crescimento económico capitalista, corrobora Oscar Jara.

Globalmente, e perante as “ameaças do terrorismo da fome, do terrorismo da guerra”, e de todos os tipos de terrorismo que “ameaçam as populações e a própria existência do planeta”, é emergente “criar novas formas de convivência social, que sejam sustentadas pela participação das pessoas, consciente e criticamente”. Significa isto transformar “radicalmente a nossa perspectiva sobre o mundo”, quer no que respeita ao “vínculo com a natureza”, quer no que toca à “humanização das relações, criando efectivamente uma democracia a nível económico e social”.

Neste complexo processo de mudança, e a bem de um futuro sustentável, a educação popular, dentro e fora da escola, “é essencial”, na medida em que se trata de “uma concepção integradora a todos os níveis”, capaz de emancipar a sociedade para a tão necessária “democracia participativa”, conclui o ‘educador popular’.


Leia também a Entrevista a Oscar Jara, por Jorge Cardoso e Luísa Teotónio Pereira / Revista digital Sinergias – Diálogos educativos para a transformação social